A dura verdade sobre a dieta carnívora
Viralizou nas redes pessoas comendo só bife, caldo de ossos e até tabletes de manteiga, apenas ingerindo alimentos de origem animal. Mas isso faz bem?

Imagine o seguinte cardápio: bacon e ovos no café da manhã; um filé bovino gordo de 300 gramas no almoço, um tablete de manteiga no lanche da tarde (se sentir fome) e mais um bowl de camarões ou um caldo de ossos no jantar.
Pode parecer meio absurdo se nos lembrarmos das prescrições para uma alimentação equilibrada, mas, acredite, tem gente compartilhando e vangloriando menus do gênero na internet.
Posts e vídeos de pessoas magras e aparentemente vigorosas dizendo ter deixado de comer todo e qualquer item de origem vegetal acumulam milhões de visualizações nas redes.
A mesma turma alega uma série de vantagens à saúde: perda de mais de 10% da gordura corporal, zero vontade de exagerar nos pratos ou comer doces, remissão de diabetes e até melhora em problemas de pele como psoríase. Dá pra acreditar?!
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Aos 53 anos, o atleta brasileiro Alessandro Medeiros afirma em entrevistas comer só carne há quatro anos. Atribui a esse hábito ter concluído uma ultramaratona de 160 quilômetros em Miami, ainda angariando a medalha de prata na prova.
Segundo ele, na preparação, consumia até 800 gramas de proteína animal por dia. “Carne é sinônimo de longevidade, deveria ser vendida em farmácia”, eis um dos motes que Medeiros e outros adeptos da dieta carnívora defendem.
“A gordura da carne é natural, não faz mal à saúde”, pregam. “Picos de insulina são os grandes vilões, pare com os carboidratos e mude de vida”, continuam os seguidores.
Um dos argumentos que subsidiam as teses viralizadas pelo mundo foi um suposto estudo da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, que teria comprovado os benefícios de passar seis meses ingerindo apenas carne — e nenhuma folha de alface.
A ideia tem despertado curiosidade e atraído cada vez mais pessoas que pensam em aderir a um novo estilo de vida com o bônus da perda de peso.

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Então vamos aos fatos: a dieta carnívora nada mais é que um tipo radical de dieta cetogênica.
O programa alimentar original surgiu em 1921 como uma forma de tentar controlar a epilepsia e tem como pressuposto obrigar o corpo a queimar gordura para obter energia.
Na verdade, o macronutriente preferido do nosso organismo para obter combustível é o carboidrato, que, na forma de glicose, entrega energia de forma rápida e eficiente. Ao fornecer quase nada de carboidrato, a dieta cetogênica induz o metabolismo a utilizar um subproduto da quebra da gordura, os corpos cetônicos.
Esses compostos liberados na corrente sanguínea até conseguem alimentar as células do corpo, mas é apenas quando o glicogênio (o estoque de glicose armazenado principalmente no fígado e nos músculos) se esgota que órgãos como o cérebro começam a consumir os tais corpos cetônicos.
É como se o organismo se adaptasse sob uma situação de estresse. Um cardápio cetogênico normal sugere que de 70 a 75% das calorias diárias venham da gordura, 20% da proteína e não mais que 10% do carboidrato.
Sim, é um plano altamente restrito e nem sempre fácil de adotar. “Na fase de adaptação de uma alimentação equilibrada para uma cetogênica, a pessoa sente a privação do combustível mais comum, que é a glicose, e costuma ficar bem pra baixo, muito mal”, observa a nutricionista Desire Coelho, doutora em ciências pela Universidade de São Paulo (USP).
“Só quando a pessoa já está um pouco mais adaptada, e o cérebro começa a se acostumar com outra fonte de energia, que ela vai melhorando. Mas isso pode demorar de semanas a meses”, esclarece a autora de Por Que Não Consigo Emagrecer? (Fontanar).
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Se a cetogênica por si só já impõe desafios, a dieta carnívora complica ainda mais as coisas: além de zerar as fontes de carboidrato, ela receita basicamente produtos animais e com alto teor de gordura saturada, nutriente cujo excesso é particularmente perigoso para as artérias.
A grande propaganda a favor dessa invenção veio em 2018 com a publicação e promoção do livro The Carnivore Diet, inédito no Brasil, do ex-cirurgião ortopédico americano Shawn Baker.
Segundo ele, focar nas carnes e afins é um caminho para tratar obesidade, diabetes, depressão, doenças autoimunes e outras encrencas. Baker costuma postar nas redes sociais diversos depoimentos de seguidores que mudaram de vida com a dieta, mas a questão é que não há nenhuma pesquisa científica até o momento que respalde suas alegações.
A saber: o americano teve a licença médica revogada no estado do Novo México devido a preocupações sobre sua competência profissional.
A escolha do padrão alimentar é individual, e cada um tem direito de decidir o seu. Mas é preciso muito cuidado com extrapolações infundadas de melhoras fantásticas propagadas por aí.
Cura de diabetes, artrite e depressão? Não há evidência alguma de que isso seja fruto do alto consumo de carne. “Hoje a dieta média da população anda tão ruim, tão cheia de ultraprocessados, que é plausível que uma pessoa melhore ao adotar essa dieta pelo simples fato de priorizar alimentos in natura. Mas o benefício não vem do excesso de carne. É provável que ela tivesse uma resposta ainda melhor se seguisse um cardápio balanceado”, interpreta Desire.
Isso quando a sanha dos carnívoros não desata problemas de saúde…

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Antes de detalhar os efeitos da dieta carnívora no organismo, é importante destrinchar o já citado estudo de Harvard, tão usado como prova de validação pelos fãs.
Intitulado Características Comportamentais e Estado de Saúde Autorrelatado entre 2 029 Adultos Que Consomem uma Dieta Carnívora, o artigo é, como insinua o título, mais uma pesquisa de opinião do que uma investigação controlada.
Ela foi feita por meio do envio de formulários a comunidades em redes sociais como Facebook, Instagram e Twitter que simpatizavam com a dieta carnívora, deixando óbvia a existência de um viés — a tendência era que as respostas dos entrevistados fossem positivas mesmo.
Nenhuma avaliação médica foi feita com os participantes para averiguar os ganhos à saúde referidos. Ao checar os números, vê-se que 67% dos respondentes admitiram ter comido outros alimentos fora a carne (31%, verduras, e 34%, frutas, por exemplo).
Ou seja, nem se levava a proposta original tão a sério. “Nosso questionário mediu a percepção dos indivíduos que seguem uma dieta carnívora e não analisou objetivamente o andamento da dieta, o estado dos nutrientes e os desfechos relacionados com a saúde”, ponderaram os autores na conclusão do trabalho.
Em hipótese alguma isso serve de comprovação para os benefícios de uma dieta.
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Uma moda reciclada
O fato é que não é de hoje que se busca uma dieta rica em proteína ou com predominância de alimentos de origem animal para salvar o organismo. Há relatos desde o século 19.
Na década de 1970, o médico americano Robert Atkins propôs o que ficou conhecido como “dieta da proteína”, que priorizava alimentos como carne (incluindo bacon e embutidos), ovos e derivados do leite. Também era rica em gordura saturada, mas ainda permitia um pouco de carboidrato, como algumas frutas e verduras.
O cardápio foi bastante contestado e há anos saiu de moda, mas acabou se reinventando, com algumas alterações, sob novos nomes. A saber: Atkins faleceu vítima de um infarto, problema ligado, entre outras coisas, ao abuso de gordura saturada.
Então como é que, em pleno século 21, a dieta carnívora pode pregar o alto consumo desse nutriente? Ora, seus advogados recorrem a uma explicação pseudocientífica: os lipídios das carnes não causam doenças porque “são naturais”.
“Isso não tem absolutamente nenhum fundamento”, critica o cardiologista Andrei Sposito, diretor da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp). “Você pode engordar, ficar hipertenso ou mesmo diabético exagerando em comida natural”, afirma.
O professor esclarece que gordura saturada demais — seja de um produto natural, seja de um industrializado — estimula o aumento do colesterol, contribuindo para o entupimento dos vasos.
É curioso constatar como uma onda dessas se encorpou nestes tempos em que também avança o vegetarianismo e se discutem os impactos do consumo de carne tanto para a saúde humana como para o meio ambiente.
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Veja: consumir 800 gramas diários de bifes e companhia, a meta ousada de alguns defensores da dieta carnívora, é impensável para a maioria das pessoas (até pelo preço!), mas há quem ingira metade dessa cota achando que está tudo bem, quando não está.
“O máximo que deveríamos comer por semana é 500 gramas de carne vermelha, não mais que isso”, diz a nutricionista Luciana Grucci Maya, chefe da área técnica de Alimentação, Nutrição, Atividade Física e Câncer do Instituto Nacional de Câncer (Inca), fazendo referência aos limites preconizados pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Repare: 500 gramas por semana!
“A evidência de que o consumo excessivo de carne processada aumenta o risco de câncer de intestino é incontestável. São dezenas de estudos, feitos com populações enormes e por décadas demonstrando essa relação”, afirma o oncologista Samuel Aguiar, líder do Centro de Referência de Tumores Colorretais do A.C.Camargo Cancer Center, em São Paulo.
No pacote da carne processada entram embutidos, nuggets e bacon, um dos queridinhos dos carnívoros. Aguiar conta que, pelos dados da literatura médica, comer 100 gramas de bacon por dia aumentaria em 70% a propensão à doença. Com a carne ao natural, o risco é menor, mas ainda assim fica na casa dos 22%.
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Como se já não bastasse, quem vive num banquete carnívoro pode sabotar os próprios rins. É que o excesso de proteína força a barra para a dupla de órgãos que filtra o sangue.
“Além de sobrecarregá-los, esse hábito aumenta o risco de cálculos renais”, avisa a nutricionista Maria Helena Gusmão, da Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN).
A especialista explica que, ao ingerirmos proteínas e sal além da conta, colocamos esse par literalmente sob pressão. E a cota de gordura completa o desserviço. “Quem exagera está mais suscetível ao ganho de peso, um fator de risco para a doença renal crônica”, diz Maria Helena.
As pedras nos rins e no sapato não param por aí. Entre indivíduos com predisposição genética, o abuso de proteína animal pode desencadear o aparecimento da gota, uma doença marcada por inflamação, dor e inchaço nas articulações disparada pelo acúmulo de ácido úrico.
“Uma dieta rica em purinas, encontradas em carne vermelha miúdos e frutos do mar, tende a levar à maior produção de ácido úrico no organismo desses pacientes”, expõe o reumatologista José Eduardo Martinez, presidente da Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR). “Por isso que uma alimentação equilibrada faz parte do tratamento da gota”, completa.
Se por um lado o exagero em um ingrediente faz mal, a carência de outro também tem seus efeitos adversos. Não há razão para cortar completamente os carboidratos. Alimentos como arroz, batata e trigo são importantes fontes de energia, o problema — lá como cá — é se entupir deles.
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Um dos equívocos disseminados pelos seguidores da dieta carnívora é a história de que esses nutrientes disparam “picos de insulina”. Cabe contextualizar as coisas. A insulina nada mais é que o hormônio responsável por fazer a glicose entrar nas células para alimentar órgãos e tecidos.
Quando consumimos carboidratos simples, como doces ou açúcar refinado, que têm rápida digestão e absorção, a glicose no sangue aumenta quase imediatamente, e aí o pâncreas logo secreta insulina para dar conta do recado.
Mas esse fenômeno é atenuado quando consumimos carboidratos integrais e fontes de fibras, que demoram mais para serem processados.
Outro ponto: a insulina só estimula a estocagem de energia na forma de gordura corporal quando você se entope rotineiramente de carboidratos.
O mal não está em um pico isolado, mas na constância. E, sim, esse é um problema hoje quando se vive à base de ultraprocessados como bolacha, salgadinho e macarrão instantâneo. Aí são cinco, seis, sete picos glicêmicos por dia!
“O pâncreas pode se sobrecarregar e passar a não funcionar tão bem, abrindo caminho ao diabetes”, descreve Desire. Não adianta apontar o dedo para uma ou outra peça isolada; o perigo está na dieta inadequada.

É prudente salientar também que, apesar de os carnívoros se pavonearem de que o padrão de dieta deles é perfeito para os músculos, cortar carboidrato pode minar o desempenho esportivo.
“Todas as associações internacionais mais respeitadas de medicina esportiva preconizam a ingestão do nutriente, pois é a forma mais fácil de obter energia. Quanto mais intenso o exercício, mais dependemos dele”, afirma a nutricionista esportiva Patrícia Batista, da Rede MaterDei.
“É muito difícil para um atleta ter um bom desempenho sem esse cuidado. Mesmo com um aporte de proteína elevado, pode haver prejuízos no progresso dos treinos e até no ganho de massa muscular”, prossegue.
Por último, mas não menos importante: abandonar os vegetais, com os quais nossa espécie se alimenta há milhares de anos, é uma enrascada.
“A dieta carnívora representa uma grande monotonia alimentar, que ainda priva o indivíduo do acesso a diversos nutrientes essenciais à saúde presentes em frutas, verduras e legumes”, ressalta o nutrólogo Durval Ribas Filho, presidente da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran).
“Além do risco de constipação, pela falta de fibras, haverá carência de vitaminas, minerais e compostos de ação antioxidante”, completa o médico.
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Que fique claro: ninguém está demonizando a carne e a proteína animal. “Uma dieta bem-vinda ao coração e a todo o corpo visa ao equilíbrio, e tem, sim, espaço para carnes, principalmente as magras, peixes e ovos”, sintetiza a nutricionista Valéria Machado, da Socesp.
No fundo, há lugar para todo mundo entre os nutrientes, sempre na medida certa. E, convenhamos, não trocar um abacate por um tablete de manteiga pura logo ao acordar é algo que o bom senso e o paladar hão de agradecer.
