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A febre do planeta: como o aquecimento global mexe com a nossa saúde

As mudanças climáticas são a maior ameaça à saúde da humanidade e ao mundo em que vivemos, O que está ao nosso alcance para detê-las

Por Chloé Pinheiro
Atualizado em 31 jan 2022, 15h36 - Publicado em 21 jan 2022, 14h28

Um político de terno e gravata discursando na abertura de uma das maiores conferências mundiais de 2021. Nada de anormal, até que o plano da câmera se abre, revelando que as pernas dele estão debaixo d’água.

A fala é gravada e transmitida de uma parte de seu país que já foi engolida pelo mar. “Estamos literalmente afundando, mas o resto do mundo também está”, declarou Simon Kofe, ministro de Tuvalu, arquipélago da Oceania com 12 mil habitantes, na abertura da 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP26).

Além dos moradores dessa pequena nação, estima-se que mais de 250 milhões de pessoas terão que deixar sua casa nas próximas décadas por causa do aquecimento global. Ele tornará alguns lugares mais áridos, outros mais úmidos e alguns serão submersos de vez.

Os cidadãos de Tuvalu e outras regiões litorâneas representam a faceta mais visível do risco, mas nem de longe são os únicos sofrendo com as consequências das mudanças climáticas. Mudanças que são resultado do modelo vigente de produção e consumo e do nosso estilo de vida, que drenam quase o dobro dos recursos que a Terra é capaz de fornecer ao ano.

De brasileiros a siberianos, passando por americanos e australianos, todos, independentemente da classe econômica, já estamos com a saúde em perigo em função dos danos ao meio ambiente e das reações da natureza a esse processo.

A desigualdade social aumenta o impacto das ondas de calor, tempestades e outras catástrofes, mas, desta vez, a corda não vai arrebentar só do lado mais fraco. Basta ver as mansões pegando fogo na Califórnia e as enchentes na Alemanha. Todos somos responsáveis pelo problema, vítimas dele e, ao mesmo tempo, parte da solução.

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Não à toa, a Organização Mundial da Saúde (OMS) elegeu as mudanças climáticas como a principal ameaça à existência e ao bem-estar do homem.

“Não há a menor dúvida de que nossa saúde já está gravemente afetada, seja pelos efeitos do aumento da temperatura, seja pela maior transmissibilidade de infecções, seja pelos riscos da poluição atmosférica, já associada a doenças respiratórias, baixo peso ao nascer, câncer e outras condições”, afirma o físico Paulo Artaxo, da Universidade de São Paulo (USP) e do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC).

Em seu último relatório, o IPCC pontua que o aquecimento global é irreversível. Até 2050, a média de temperatura subirá no mínimo 1,5 °C se pararmos de gerar gases de efeito estufa imediatamente; ou 4 °C se mantivermos tudo como está. Parece pouco e distante, bem menos preocupante do que pagar as contas e cuidar da casa. Mas não é!

Tudo que degrada o ambiente pode respingar em nosso organismo. Existe até um novo termo para disseminar essa noção e que norteia uma aliança com mais de 200 instituições ao redor do mundo: saúde planetária.

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“Precisamos encontrar a harmonia entre o homem e a natureza, pois não há como ser saudável em um planeta doente”, resume a médica Mayara Floss, membro da coalizão e alguém que busca fazer a diferença deixando sua rotina mais verde e encorajando os pacientes a seguir o exemplo.

Afinal, pequenas atitudes serão decisivas para salvar o planeta e a vida aqui dentro.

Projeções IPCC para o aquecimento global até 2050
(Infográficos: André Moscatelli/SAÚDE é Vital)

Do calor da mãe África ao gelo do norte do Canadá. Desde que nós, Homo sapiens, começamos a expandir nossos domínios há cerca de 70 mil anos, passamos por um processo de adaptação genética para sobreviver em condições climáticas diferentes, sobretudo mais frias.

Nas regiões com poucos dias de sol e calor, a pele do ser humano ficou clara, capaz de absorver a vitamina D de forma mais eficiente. No frio extremo do Ártico, camadas extras de gordura foram bem-vindas para manter o corpo aquecido.

“Essas mudanças alteraram nossos termorreceptores, uma espécie de sensor de temperatura que temos na pele e que envia informações ao cérebro para que nosso corpo se ajuste ao ambiente. A pressão evolutiva nos empurrou para uma adaptação ao frio”, ensina o patologista Paulo Saldiva, do Instituto de Estudos Avançados da USP.

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Tudo ia caminhando, até que, nos últimos 100 anos, o planeta começou a esquentar. O documento do IPCC, publicado em agosto de 2021, é o primeiro a sentenciar, após análise de milhares de pesquisas, que é inequívoca a influência humana sobre o planeta e o aquecimento climático.

O painel mostra que a Terra esquentou 1,09 °C desde a Revolução Industrial, no século 19, e, desse total, 1,07 °C é provavelmente atribuível ao homem.

Nas décadas passadas, a velocidade da subida da temperatura bateu recordes, acompanhando o aumento da emissão de gases ligados ao efeito estufa, em especial do dióxido de carbono (dos automóveis, das indústrias e das queimadas) e do metano (liberado com o derretimento de geleiras e pelos rebanhos bovinos).

+ Leia também: Queda da poluição na pandemia de coronavírus já evitou milhares de mortes

Calcula-se que 85% de toda a queima de carbono da história ocorreu desde a Segunda Guerra Mundial, sendo a maior fração dela nos últimos 30 anos.

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Na atmosfera, esses gases interagem com a radiação solar, retendo o calor. Isso resulta, em primeiro lugar, em dias mais quentes, que desregulam nossos termossensores, até então programados para certa estabilidade.

Quando está calor demais, os vasos sanguíneos dilatam, perdemos mais líquidos e o nível de oxigênio disponível para o corpo também cai. “São situações que favorecem quadros de desidratação, sobrecarga renal, infecção urinária e até o surgimento de trombos na circulação, levando a mais infartos e AVCs”, aponta Saldiva.

Idosos sofrem particularmente com isso: a OMS estima que, nas últimas duas décadas, a mortalidade de pessoas acima de 65 anos por causas ligadas ao calor aumentou pelo menos 50%. Um estudo do British Medical Journal com dados de mais de 70 milhões de americanos constatou um risco 63% maior de visitar um pronto-socorro devido a problemas desse gênero nos dias em que a temperatura bate 34 °C.

Sobe até a probabilidade de parar no hospital por transtornos mentais — um aumento de 8%, segundo o mesmo trabalho.

É de perturbar a cabeça, a menos que você seja um dos brasileiros que acham que essa história não conversa conosco porque nascemos num país tropical, bonito por natureza e longe de ondas de calor como as que assolaram a Europa ou de invasões do mar como na Oceania.

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“Aqui ocorre um aumento mais sutil da temperatura, mas prolongado e associado a um tempo mais seco, que traz outras consequências para a saúde”, esclarece o sanitarista Christovam Barcellos, coordenador do Observatório Clima e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

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A projeção para nós é, por sinal, mais pessimista. “Áreas continentais sofrerão um aumento de 1 a 1,5 °C acima da média global, que leva em consideração os oceanos, onde é mais fresco.

No Brasil, em particular, o aumento previsto é maior, e isso já está causando secas e eventos climáticos extremos”, observa Artaxo.

Alguém poderia argumentar que as oscilações do verão paulistano ou as enchentes recentes no sul da Bahia indicam que não estamos na mira de um calorão permanente e de estiagens.

Mas essas anomalias também são exemplos do desgoverno em curso: o clima fica instável e sujeito a guinadas drásticas e inesperadas, o que exigirá planos de adaptação sob medida de acordo com a realidade de cada lugar.

Lista dos maiores emissores de Co2 no mundo
(Ilustrações: Marcus Penna/SAÚDE é Vital)

O jornalista americano David Wallace-Wells, que costumava ver a questão ambiental como papo de ecologista, acumulou tantas más notícias que mudou de ideia. No livro A Terra Inabitável (clique para comprar*), ele reúne suas pesquisas e explica que estamos longe de conseguir reduzir as emissões de dióxido de carbono para segurar o aquecimento global.

Pelo contrário, no ritmo atual, não é que estamos enxergando a “nova cara” do clima, mas colocando “o pé para fora na prancha do navio pirata” — e estão aí as variações extremas de temperatura e a maior frequência de furacões e enchentes pelo mundo para provar. Para o jornalista, “mal adentramos esse admirável mundo novo, que cede sob nós assim que pisamos nele”.

Até existe uma meta, estabelecida pelo Acordo de Paris em 2015, de zerar as emissões de CO2 até 2050, ano em que a humanidade terá 10 bilhões de bocas para alimentar e precisará ser ainda mais criteriosa no uso de recursos naturais.

“Mas ainda não estamos no caminho certo, ou, ao menos, não na velocidade certa”, diz Nicole de Paula, fundadora da Women Leaders for Planetary Health.

+ Leia também: Viver em bairros com mais verde reduz o risco de doenças cardiovasculares

A Ph.D. em relações internacionais, que há anos acompanha as discussões ambientais, vê sinais de progresso com a realização da última COP. “Pela primeira vez, tivemos um pavilhão da OMS para falar sobre a relação entre clima e saúde, houve um reconhecimento geral de que é preciso acabar com os subsídios para combustíveis fósseis, além de acordos para reduzir o desmatamento. Só que precisamos saber quanto disso será colocado em prática e monitorado”, analisa.

Nesse contexto, foram estipuladas as NDCs, sigla para as metas de redução a serem estabelecidas por cada país. “A questão é que não temos um dispositivo legal para fiscalizar e punir quem não cumpre essas metas”, explica a advogada especialista em justiça ambiental Flávia Bellaguarda, que também esteve na COP.

O objetivo do Brasil é diminuir em até 50% suas emissões até 2030 e zerar o desmatamento ilegal até 2028, metas consideradas tímidas pelos estudiosos.

É que, embora não estejamos entre os maiores emissores de dióxido de carbono e utilizemos bastante energia renovável, aqui há uma ameaça direta do homem aos sistemas naturais que estabilizam o clima no planeta.

“O desmatamento da Amazônia e as queimadas são as principais preocupações ambientais em nosso país e já têm efeitos na saúde da população, não apenas no Norte. A fumaça das queimadas, que não ocorrem de maneira natural na região, é tóxica e capaz de viajar longe”, conta Artaxo.

Quem não se lembra do céu negro que caiu sob uma tarde de São Paulo em 2019? É mais um exemplo de que estragos num lugar repercutem em outros. Uma pesquisa publicada no The Lancet Planetary Health aponta que 47 mil brasileiros são internados por ano por causa dos incêndios florestais, sendo que as crianças e os idosos são os mais vulneráveis.

Desmatamento e queimadas no brasil
(Infográficos: André Moscatelli/SAÚDE é Vital)
hospitalizações por queimadas no brasil
(Infográficos: André Moscatelli/SAÚDE é Vital)

Outra preocupação, no Brasil e em nações como China e Índia, é a poluição urbana, alimentada principalmente por carros, motos e caminhões. A exemplo das queimadas, os veículos liberam, além do dióxido de carbono, compostos nocivos ao organismo, como monóxido de carbono e material particulado fino.

Já existem evidências de que esses gases aumentam o risco de tumores e doenças cardíacas e pulmonares. “Embora as séries históricas mostrem redução da poluição numa cidade como São Paulo devido a melhorias nos próprios carros, nosso tempo de deslocamento aumentou, e, assim, respiramos esse ar por mais tempo”, relata Saldiva.

Por essas e outras, o médico, que estuda os impactos dos poluentes entre os paulistanos desde a década de 1980, calcula que viver na já chamada terra da garoa equivale a fumar dois cigarros por dia.

“Se estivéssemos falando de cigarros, o risco individual não seria tão grande, mas só 10% da população fuma, enquanto 100% está exposta a esses gases, então o risco atribuído é bem maior”, completa Saldiva.

“E a combinação de poluição e ar seco ainda intensifica crises de asma e outras alergias respiratórias”, registra o professor Barcellos.

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mudanças climáticas
(Ilustrações: Marcus Penna/SAÚDE é Vital)

No nosso país, 70% das emissões de gases do efeito estufa, aqueles que fazem o planeta esquentar, são provenientes da agropecuária e do uso do solo, lembrando que, na maioria das vezes, as queimadas e o desmatamento visam “liberar” terreno para pastos e plantações.

Para mudar esse número, precisamos repensar nosso jeito de produzir e consumir comida. “O sistema agroalimentar tradicional, que tem base química e privilegia a monocultura [cultivos extensos de um alimento só],é altamente poluente e contribui significativamente para as mudanças climáticas, tanto do ponto de vista do alto gasto energético por causa dos insumos derivados de petróleo quanto pela intensa fertilização do solo”, afirma a nutricionista Elaine de Azevedo, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).

“Além disso, existe toda a cadeia de processamento e industrialização, com seus efeitos ambientais e sociais, já que o pequeno produtor acaba não conseguindo participar desse sistema em pé de igualdade com as grandes empresas”, continua a professora.

+ Leia também: O que você come tem tudo a ver com o meio ambiente

Não há como parar de plantar e ninguém deve demonizar a agricultura. A proposta dos especialistas é encontrar um meio de cultivo mais inteligente, respeitoso e sustentável, sendo que é urgente repensar nossa dependência excessiva dos mesmos grãos e da carne.

“A monocultura está no cerne dos problemas, pois transforma a paisagem natural, exige que o solo seja revolvido anualmente, causando erosão e assoreamento dos rios próximos, e exaure a terra depois de alguns plantios, deixando o solo infértil e incentivando a busca por novas áreas de cultivo”, argumenta a produtora agrícola Paula Costa, fundadora do Preta Terra, consultoria que implementa sistemas agroflorestais.

De acordo com a Embrapa, só na Amazônia 25% do território desmatado é degradado ou abandonado.

O modelo de agrofloresta é defendido como uma das saídas a esse impasse. Ele se ampara na preservação da mata nativa, na plantação de árvores (que ajudam na nutrição do solo, fornecem sombra e melhoram o clima local) e no cultivo diversificado.

Quanto aos fertilizantes e defensivos agrícolas, a ideia é usar só quando estritamente necessários. Ocorre que uma das frases que mais escutamos quando se critica a agricultura intensiva é que é “impossível alimentar tanta gente” se não for dessa forma.

“Mas isso é uma falácia, tanto que já não damos conta de alimentar todo mundo com os padrões de hoje”, contra-argumenta Elaine. “Fora que há uma abundância de produtos aos quais boa parte da população nem tem acesso”, complementa Nicole.

No cenário atual, tem gente passando fome, gente desperdiçando comida e gente ficando doente se alimentando basicamente de ultraprocessados (salgadinho, embutido, bolacha e afins).

Para reverter esse modelo, que não está funcionando de modo saudável e sustentável, a revolução no campo deve abraçar outra à mesa.

“É absolutamente viável produzir alimento o bastante com as agroflorestas”, diz Paula, que, com seu sócio, Valter Ziantoni, ensina produtores de todo o país a reformular seus processos, medida útil inclusive diante das mudanças climáticas e da previsão de períodos de seca, que devem atrapalhar o cultivo e a disponibilidade de alimentos no futuro.

Diante do prato, também temos responsabilidades, e, não há como fugir, a principal delas é comer menos carne. “Para cada quilo de carne bovina produzido, 44 quilos de gases de efeito estufa são lançados na atmosfera, o equivalente a um carro percorrendo 250 quilômetros. E, no Brasil, 80% da população ingere mais carne do que o recomendado, que são cerca de 70 gramas ao dia”, expõe a nutricionista Aline Martins de Carvalho, coordenadora do Sustentarea, núcleo da USP para a promoção de uma alimentação sustentável.

A fórmula é: menos bife e hambúrguer, mais saúde para o corpo e o planeta.

alimentação e mudanças climáticas
(Infográficos: André Moscatelli/SAÚDE é Vital)

O período que atravessamos na história do planeta é chamado por um grupo crescente de cientistas de Antropoceno, pelo fato de ele ser moldado principalmente pela ação do homem.

O termo existe desde o fim do século 19, mas só ganhou força nos anos 1980 com o ganhador do Nobel de Química Paul Crutzen, que dedicou sua vida ao estudo da poluição e foi um dos responsáveis por entendermos o efeito estufa e o aquecimento global. Sob essa ótica, nossa influência no ambiente é tamanha que inauguramos uma era geológica.

Não só elevamos a temperatura atmosférica como também a dos oceanos (que ficaram mais ácidos) e derrubamos a biodiversidade ao acelerar a extinção de inúmeras espécies. Veja: nem tudo é culpa do homem, mas é consenso entre os especialistas que o que fazemos altera o planeta — e vice-versa.

+ Leia também: Mudanças que melhoram sua vida e a do planeta

A preservação de habitats, plantas e animais tem mais a ver com a saúde humana do que se imagina. O desequilíbrio dos ecossistemas desestabiliza a fauna e a flora e nos coloca à mercê de vírus, bactérias e outros micro-organismos, alguns deles incógnitos por aí. E é assim que pode irromper uma pandemia ou se estabelecer uma endemia.

Antes de falar de Covid-19, não dá para esquecer as doenças transmitidas por mosquitos, um fardo do Brasil e de muitos países abaixo da linha do Equador. “A mudança no padrão de chuvas e a elevação da temperatura em alguns locais fazem com que os insetos transmissores de malária, dengue, zika e chikungunya se proliferem mais rápido”, observa Saldiva.

“Não é que a dengue e outras doenças transmitidas pelo Aedes aegypti ficam mais graves, mas se espalham para o Brasil inteiro, tornando-se comuns em regiões onde antes só apareciam eventualmente, como o sul de Minas e o Paraná”, exemplifica Barcellos. Só que o aquecimento global ainda pode levar esses males e seus vetores ao Hemisfério Norte, tornando algo antes relegado ao “terceiro mundo” um problema também da Europa e dos EUA.

Fora os temporais, naquelas regiões mais secas ou que passam por crises de abastecimento hídrico, o drama envolve os reservatórios de água, sujeitos à proliferação de mosquitos transmissores de doenças e à multiplicação de micróbios causadores de diarreia.

E os desastres naturais, como enchentes, além dos danos diretos e do trauma coletivo imposto a quem sobrevive para contar história, também aumentam o risco de disseminação de infecções ao comprometer a infraestrutura de saneamento básico e nos colocar em contato com água potencialmente contaminada. Sim, sobra para todos os lados.

E tem as pandemias. “Quanto mais preservamos as florestas e demais ecossistemas, menor é o risco de que doenças emergentes surjam entre as pessoas”, sentencia o virologista Paulo Eduardo Brandão, da USP.

O professor lembra que há muitos vírus conhecidos e desconhecidos vivendo entre animais silvestres e capazes de saltar para nossa espécie após transformações genéticas. “Conforme as fronteiras agrícolas e o ambiente urbano se expandem, vamos nos aproximando desses hospedeiros”, explica.

Alguns deles até estão voando por aí, caso de pássaros migratórios que carregam o vírus influenza. “Se essa ave perde seu local de pouso tradicional para um criadouro de porcos, por exemplo, o contato com esses animais pode produzir uma recombinação entre vírus e dar origem a uma nova gripe”, descreve Brandão.

De acordo com Nicole, se pegarmos dez doenças transmissíveis hoje, seis se originaram de zoonoses, aquelas que “pulam” de um animal para a nossa espécie. A própria Covid-19 engrossa a lista, pois tudo leva a crer que o Sars-CoV-2 veio de morcegos, que também podem sofrer com as “invasões” humanas — embora muitos já vivam próximos de nós.

Quem sabe esta pandemia, a quinta nova doença a surgir nos últimos 20 anos, taxa que chama a atenção dos cientistas, não nos faça entender de vez quão conectados nós estamos com o planeta. Não há melhor exemplo de como nossas ações diante da natureza provocam reviravoltas em larga escala.

doenças transmissíveis e mudanças climáticas
(Infográficos: André Moscatelli/SAÚDE é Vital)

Entre as lições da pandemia e de outras catástrofes ambientais, está a compreensão de que ninguém está seguro até todos estarmos seguros. “Assim como a desigualdade na distribuição de vacinas prejudica a todos, o clima não vê fronteiras ou classe social”, aponta Antonio Saraiva, coordenador do Grupo de Estudos em Saúde Planetária da USP.

Saraiva é um dos signatários da Declaração de São Paulo sobre Saúde Planetária, lançada pela aliança global mencionada no início da reportagem. O documento clama por uma “grande transição” no nosso modo de vida. Teremos que ser menos ávidos por recursos e lucros e repensar as noções de felicidade e sucesso, tão ligadas a meios materiais.

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Mas o pesquisador visualiza potencial de mudança na sociedade: “Mostramos com a pandemia que somos capazes de mudar rapidamente nosso estilo de vida se for necessário, e é mais do que necessário fazer isso agora pensando no clima e na saúde”.

É urgente que empresas — sobretudo as do segmento de combustíveis fósseis, a indústria agroalimentar e o setor automotivo — se mobilizem, assim como as lideranças governamentais e outros atores políticos não podem ignorar ou, pior, repudiar a agenda da sustentabilidade.

Durante a apuração desta matéria, perguntei a todos os especialistas entrevistados se veem a situação com otimismo ou pessimismo e se atitudes individuais, que parecem tão pequenas, são capazes de moldar nosso futuro.

Para a minha surpresa, todos têm um olhar positivo, mais por causa da mobilização social do que pela boa vontade dos governantes.“Na última COP, tivemos a maior delegação jovem do Brasil, além de movimentos negros e indígenas, que são diretamente afetados pelo clima”, destaca Flávia.

Um dos nossos desafios é minimizar a desigualdade social para que mais pessoas consigam promover ajustes no padrão de vida e consumo — algo que é bom para a saúde delas e a do ambiente à sua volta. É preciso, na verdade, rever o próprio paradigma em operação, baseado na drenagem de recursos em prol de um desenvolvimento que, no fim das contas, beneficia um número relativamente pequeno de cidadãos.

+ Leia também: Como (e por que) respirar melhor

“O problema não é só a mudança climática, mas o que nos trouxe até ela. Vivemos uma crise de valores. Se eu poluo porque não faz diferença na minha vida, é porque não me preocupo com o próximo. Se me recuso a tomar uma vacina, também”, avalia Saraiva.

Sim, precisamos nos ver como seres ligados uns aos outros e ao planeta — como já ensinavam os povos indígenas, que tanto servem de inspiração a cientistas e teóricos do clima. “Do nosso divórcio com a nossa mãe, a Terra, resulta que ela está nos deixando órfãos”, escreve Ailton Krenak em Ideias para Adiar o Fim do Mundo (clique para comprar*).

A visão pode soar apocalíptica, mas nos coloca o dever e a oportunidade de vivermos de um jeito novo. Mais leve, fresco e saudável.

Efeitos do calor na saúde

Boa parte dessas consequências já é sentida pela população do Brasil e de outros países. O clima seco e quente é considerado o mais prejudicial. Veja os principais problemas:

+ Infarto: Em períodos mais quentes, especialmente quando não esfria um pouco de noite, o número de ataques cardíacos é maior. Culpa do estresse térmico.

+ Desidratação: A preocupação maior é com os idosos, que sentem menos sede. Como perdemos mais líquido no calor, é preciso caprichar na hidratação.

+ Doenças renais: Com menos líquidos em circulação, a capacidade de filtragem dos rins também pode ser comprometida. Eles dependem de água para trabalhar.

efeitos do calor na saúde

Efeitos da poluição na saúde

+ Infarto e AVC: Além de fazerem os vasos sanguíneos envelhecer mais rapidamente, os poluentes contribuem para a inflamação e a obstrução das artérias.

+ Asma e bronquite: Respirar substâncias tóxicas provoca danos nos pulmões, intensifica crises alérgicas e aumenta episódios de falta de ar. Estuda-se o elo com o câncer.

+ Infecções: Na cidade poluída e seca, as barreiras de proteção das vias aéreas ficam prejudicadas, ampliando o risco de doenças virais e bacterianas.

poluição e saúde humana

 

Quais são as principais fontes emissoras de CO2
(Infográficos: André Moscatelli/SAÚDE é Vital)

O Brasil no futuro (e o que já perdemos)

Previsões IPCC Brasil e avanço do desmatamento
(Ilustrações: André Moscatelli/SAÚDE é Vital)

Comida que mexe com o clima

Para os especialistas, rever o cardápio é uma das principais atitudes que podemos tomar em prol da nossa saúde e a do meio ambiente. Os principais problemas:

+ Monocultura: O uso intensivo do solo para um único cultivo modifica o ecossistema local, diminui a biodiversidade e chega a afetar o clima.

+ Carne em excesso: Um estudo aponta que o consumo elevado de carne vermelha foi o responsável direto por 990 mil mortes no mundo em 2017.

+ Ultraprocessados: Fora os males à saúde, exigem muitos recursos naturais para a produção. Já foram tratados como a saída para alimentar todo o planeta. Não são.

+ Pesca insustentável: No Brasil, 80% dos recursos pesqueiros, como mares e rios, são explorados para além de sua capacidade de regeneração.

+ Desperdício: A Embrapa estima que o brasileiro desperdiça em média 115 gramas de comida por dia — são 40 quilos de alimentos indo para o lixo todo ano.

Precisamos falar sobre justiça alimentar

Vinte milhões de brasileiros estão passando fome. É hipocrisia discutir mudanças no nosso padrão de consumo sem tocar nesse assunto, e também um ponto que exige ação governamental, redistribuindo a terra e apoiando iniciativas que ampliem o acesso da população a alimentos de qualidade.

Enquanto boa parte dos cidadãos não tem opção a não ser comer ultraprocessados mais baratos, o ciclo de produção e consumo se mantém danoso ao meio ambiente.

O elo entre mudanças climáticas e as pandemias

Veja como o modelo atual e nossos hábitos facilitam o surgimento de vírus como o da Covid:

+ Perda do habitat: Desmatamento, queimadas ou alterações bruscas no clima podem tornar certos locais inabitáveis, forçando a migração de animais selvagens.

+ Contato: Os bichos se aproximam das fronteiras das cidades ou plantações, podendo transmitir micróbios tanto aos humanos quanto aos animais domésticos.

+ Interação: Um vírus da gripe carregado por aves migratórias pode sofrer mutações ao entrar em contato com os vírus do porco ou do frango e passar a infectar pessoas.

+ Desequilíbrio: Ainda pode acontecer de o predador de uma espécie sumir. Se os sapos desaparecerem de uma região, aumenta a população de mosquitos vetores de doenças.

A mudança envolve todo mundo

o papel de todos nas mudanças climáticas

(Infográficos: André Moscatelli/SAÚDE é Vital)

O que as empresas podem fazer?

  • Investir em conservação: Reparar os danos do consumo é ser responsável socialmente. Qualquer empresa pode apoiar iniciativas de preservação.
  • Carbono zero: Criar planos para zerar emissões de carbono é uma das urgências para frear o aquecimento global. Todo mundo tem que entrar nessa.
  • Questão de princípio: Valores e missão da companhia devem estar alinhados à saúde planetária e balizar os negócios da firma.
  • Articulação: Empresários podem usar sua voz e a influência econômica junto ao governo para defender e implementar avanços políticos e sociais.

O que os governos podem fazer?

  • Prioridade máxima: A mitigação das mudanças climáticas precisa ganhar a escala de importância de temas como emprego, saúde e educação.
  • Justiça climática: A desigualdade social tanto contribui para as mudanças climáticas como faz com que muita gente fique mais vulnerável a elas.
  • Cidades verdes: Investir em transporte público, meios ativos de deslocamento (como a bicicleta) e áreas de lazer é questão de saúde pública.
  • Preservação ambiental: Incentivos a produtores agrícolas sustentáveis ajudam, mas é essencial fiscalizar melhor as queimadas e a mineração.

mundo e mudanças climáticas

O que o setor da saúde pode fazer?

  • Outros parâmetros: Médicos deverão considerar o grau de exposição do paciente à poluição e ao calor como parte da rotina de um check-up.
  • Qualificação: Enfermeiros e demais profissionais terão de ser treinados em saúde planetária e incluí-la no código da profissão.
  • Resgatar conhecimento: Incorporar práticas ancestrais e indígenas vai ajudar a promover mais sustentabilidade e conexão com a natureza.
  • Processos sustentáveis: Hospitais também são grandes emissores de carbono. É preciso repensar a estrutura para reduzir as emissões a zero.

O que os consumidores podem fazer?

  • Alerta do greenwashing: A expressão se refere a produtos e serviços que se vendem como “verdes” mas não são. Atenção aos rótulos e informações.
  • Pegada ecológica: Calculadoras online ajudam a entender seu gasto individual de carbono. Clique para conhecer uma delas.
  • Consumo consciente: Comida, energia ou água: qualquer recurso é valioso e deve ser usado racionalmente. O Instituto Akatu tem um guia a respeito.
  • Olho no lixo: Separar o material reciclado e batalhar pela coleta seletiva é o básico para reduzir o impacto dos resíduos que produzimos.

Fonte: Bruna Tiussu, gerente de comunicação do Instituto Akatu

Para ler e saber mais

Algumas dicas de leituras sobre o tema:

A Psicologia das Mudanças Climáticas (clique para comprar*)
Autores: Geoffrey Beattie e Laura McGuire
Editora: Blucher

A Terra Inabitável (clique para comprar*)
Autor: David Wallace-Wells
Editora: Cia. das Letras

Ideias para Adiar o Fim do Mundo (clique para comprar*)
Autor: Ailton Krenak
Editora: Cia. das Letras

A Economia da Vida (clique para comprar*)
Autor: Jacques Attali
Editora: Vestígio

Contágio (clique para comprar*)
Autor: David Quamenn
Editora: Cia. das Letras

O Dia em Que Voltamos de Marte (clique para comprar*)
Autora: Tatiana Roque
Editora: Crítica

*As vendas realizadas através dos links neste conteúdo podem render algum tipo de remuneração para a Editora Abril

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