Faz sentido adotar um treino ou dieta para ter mais mitocôndrias?
Periodicamente esse mito volta a circular pela internet. Conversamos com um especialista que explica por que esses métodos não funcionam
Circulam por aí dietas e exercícios físicos com o objetivo de acelerar a produção e a função das mitocôndrias. O objetivo vai de emagrecimento à cura de doenças ou mais energia para o corpo. No entanto, não há estudos científicos que comprovem essa relação. Além de não ter resultado, tal esforço pode fazer mal.
É o que explica Luiz Gustavo de Almeida, doutor em microbiologia e pesquisador do Laboratório de Genética Bacteriana do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP).
Para começar, ele esclarece o papel das mitocôndrias. São estruturas que estão dentro das nossas células e servem como fonte de energia para elas.
“Elas funcionam como uma bateria que transforma energia química em energia elétrica no nosso organismo”, explica Almeida. Mais especificamente, o papel delas é produzir uma molécula chamada trifosfato de adenosina (ATP).
“A mitocôndria é semelhante a uma bactéria, então algumas pessoas pensaram: vamos alimentar esse ‘micro-organismo’ para ele possa fabricar ainda mais energia”, relata Almeida.
Os efeitos colaterais da tática
Alguns experimentos foram feitos, porque essa lógica até faz sentido na teoria, mas não se mostraram frutíferos. Além disso, deve-se considerar os efeitos colaterais da receita.
“O raciocínio é: ‘vou me alimentar de mais glicose, açúcar ou de gorduras para que as mitocôndrias funcionem melhor’. Mas essa carga faz aumentar também a produção de radicais livres”, conta o microbiólogo.
Os radicais livres têm sua função no corpo, mas em excesso podem acelerar o envelhecimento e de provocar doenças.
Não à toa, a máxima da vida saudável e prevenção de doenças é ter uma dieta equilibrada. Sempre que exageramos no consumo de algum tipo de nutriente, o corpo sofre.
Essa tentativa de forçar dietas ou treinos específicos ainda mexe com algo feito para funcionar bem. “A produção natural de mitocôndrias ocorre dentro do necessário para a boa regulagem do organismo. Tanto que elas são criadas e mortas o tempo todo justamente para manter o equilíbrio, é uma coisa bem estruturada”, afirma o cientista.
Existem doenças mitocondriais que afetam a função dessas estruturas, mas elas têm sintomas pronunciados e são consideradas muito raras.
Treino para as mitocôndrias
As pesquisas que relacionam exercícios físicos a essas organelas têm como intenção usar os treinos de resistência para aumentar seus níveis. “Fizeram estudos bem pequenos, apenas em homens, sem considerar as diferenças de gênero, e mesmo assim foi constatado que não houve uma produção elevada de ATP”, relata Almeida.
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Artigos que circulam por aí sobre essas práticas não estão levando em conta os resultados negativos ou o fato de que as pesquisas são pequenas ou feitas em roedores, dentro do laboratório — e nossos genomas são diferentes ao dos animais.
“Esses estudos costumam ter um viés controverso (tendencioso) e não contam que já houve mortes relacionadas a isso. Quando se produz energia demais, o corpo esquenta além do necessário e sai do controle”, explica Almeida.
É o mesmo princípio dos produtos termogênicos, que prometem emagrecimento, mas, por outro lado, provocam taquicardia, irritabilidade, distúrbios do sono e até casos mais graves, como infarto e AVC.
Tratamento de doenças neurodegenerativas
Ao pesquisar sobre a moda das dietas à base de gordura que prometiam turbinar as mitocôndrias, Almeida e chegou no nome da médica americana Terry Wahls, que desenvolveu o Protocolo Wahls.
Ela fez uma conferência sobre tema, e sua teoria se espalhou pela internet, até culminar na publicação de um livro em 2017.
Terry passou a estudar as mitocôndrias após ser diagnosticada com esclerose múltipla. Debruçada em todos os males da mesma família, como Parkinson e Alzheimer, ela concluiu que essas doenças tinham em comum a baixa produção das mitocôndrias — mas essa relação nunca foi comprovada por estudos.
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A partir disso, a médica criou uma dieta que indicava o consumo de grandes porções de frutas, legumes, verduras e proteína animal. “É a dieta que nossos ancestrais caçadores-coletores supostamente comiam há mais de 40 mil anos, conhecida hoje como dieta paleolítica”, explicou Almeida na revista do Instituto Questão de Ciência.
Terry afirma que melhorou com a dieta, mas só tem a si mesma como prova, e em redes sociais ainda aparece batalhando contra o avanço da doença, que não tem cura. Não há outros estudos que atestem a teoria da médica americana, e a disseminação dessa desinformação pode levar pessoas a restringirem sua dieta de forma perigosa.
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Além disso, há muitos “especialistas” na internet vendendo pacotes de treino, dietas e suplementos para aumentar as tais mitocôndrias. Nesse caso, além do prejuízo à saúde, o bolso pode sair prejudicado.
Resumindo, a recomendação de Almeida é deixar que as mitocôndrias trabalhem bem sozinhas, mantendo uma dieta equilibrada, com variedade de nutrientes e a prática regular de exercícios físicos.