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Vale tudo por um abdômen sarado?

Barrigas chapadas se tornaram ainda mais cobiçadas, principalmente entre as mulheres. Mas procedimentos e atalhos para isso podem fazer mal à saúde

Por Ingrid Luisa
15 mar 2024, 14h31

O corpo é o novo rosto.” Essa expressão resume a última onda fitness que invadiu as redes sociais. Ela sustenta que um shape definido, de preferência com o abdômen trincado, é o padrão de perfeição que qualquer pessoa que se considere jovem e ativa deveria buscar… e mostrar.

Nunca a estrutura física das mulheres precisou tanto ser atlética. E, claro, isso não significa deixar de lado os cuidados com o rosto, as unhas e os cabelos. “O ideal de beleza mudou muito no decorrer da história. Nos últimos anos, passamos da valorização de um corpo muito magro para o magro e musculoso”, afirma a educadora Fabiana Stein, pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), no Sul do país.

Ter gominhos aparentes na barriga e pernas e braços hipertrofiados se tornou também não apenas um trunfo estético a desfilar no TikTok e Instagram, mas a imagem de um discurso que reivindica dedicação, resiliência, foco e vitória na vida.

Mas será que um abdômen sarado representa tudo isso?

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Conheça o novo padrão de beleza fitness (Ilustração: Midjourney/SAÚDE é Vital)

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É fato indiscutível que, em um país como o Brasil, onde mais da metade da população está acima do peso, o estímulo a uma rotina de exercícios com alimentação balanceada é positivo. Mas não é incomum que a “missão tanquinho” deturpe a essência desse estilo de vida: sentir-se bem consigo mesmo.

“Ter gominhos não diz se uma pessoa é mais ou menos saudável. É algo puramente estético”, diz a nutricionista Desire Coelho, especialista em comportamento alimentar e autora de Por Que Não Consigo Emagrecer? (Fontanar – clique para comprar).

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O problema com o sonho de chapar a barriga é que ele instiga muita gente a procurar atalhos para conseguir realizá-lo. E, aí, o que teoricamente começou com uma mudança pela saúde se transforma na busca por um novo padrão de corpo ideal. “Dependendo da estratégia que a pessoa adota, ela pode realmente ficar doente, como acontece com restrições calóricas pesadas e uso de anabolizantes”, avisa Desire.

Esse mercado — sim, um mercado! — é impulsionado por celebridades e influenciadores digitais, que diariamente expõem sua rotina e dão dicas de dieta e treino. Assim, as chamadas “musas fitness” exibem barriga sarada como resultado de muita academia e aversão a certos alimentos, criando o mito de que eles são proibidos.

Mas a verdade é que não dá para acreditar em muito do que é compartilhado nas redes: uma pesquisa da Universidade de Glasgow, na Escócia, avaliou conselhos de saúde de nove blogueiros fit famosos no Reino Unido e apontou que oito estavam dando orientações erradas, que não faziam sentido à luz da ciência. Isso provavelmente se repete no Brasil.

Outro ponto: não raro o corpo “perfeito” dos astros da internet é resultado de táticas potencialmente perigosas ou procedimentos, inclusive cirúrgicos. Na feira das vaidades, não falta ilusão à venda. E o preço, às vezes, é cobrado da saúde.

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Apesar do boom nas redes sociais, essa onda fitness não é de hoje, e sim resultado de mudanças que vêm se acumulando há mais de dez anos.

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Especialistas entendem que tudo começou em 2010, com o surgimento de grandes redes de academias populares que cobravam apenas 50 reais à época, e ofereciam não só musculação, mas também aulas de spinning, pilates e danças, diversificando opções de treino para quem não gostava de pegar peso.

De acordo com uma pesquisa realizada pelo International Health, Racquet & Sportsclub Association (IHRSA), o Brasil hoje ocupa a 2ª posição no ranking de países com maior número de academias no mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos.

E, assim, diversos setores relacionados a esse universo, como suplementação, cosméticos, moda e restaurantes fitness, passaram a nadar de braçada. Um movimento bem-vindo, diga-se, porque ajudou a popularizar o acesso a um estilo de vida ativo.

Em 2020, por causa do isolamento social exigido pela pandemia de Covid-19, os exercícios extrapolaram as paredes da academia. Uma pesquisa do Google revelou que as buscas por atividades em casa dobraram. Segundo levantamento da consultoria Sport Track, 39% do público declara ter começado a praticar alguma atividade no período, como caminhada ou corrida.

Foi na crista dessa onda que decolaram os blogueiros fitness, com seu discurso sedutor e muitas fotos e vídeos mostrando a rotina a fim de inspirar os outros a seguir seus passos. Geralmente eles acordam cedo (pelo menos nos posts), tomam shots matinais (algo sem chancela científica), consomem suplementos (ganhando dinheiro para fazer propaganda de marcas), exibem refeições lindíssimas, malham com personal e escrevem legendas motivacionais do tipo “Quem quer consegue”.

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Pode ser bonito ver esse feed, mas ele não corresponde à realidade da maioria dos brasileiros. O resultado, cujo ápice são as imagens de barrigas trincadas, é que, em vez de estimular os outros, o mantra pode gerar comparação, frustração e desmotivação entre os seguidores.

Esse efeito, bombado nos últimos anos, vem de longa data: em 2012 uma pesquisa americana já apontava que a exposição a fotos de modelos magras ou saradas deixava estudantes universitárias mais insatisfeitas com a própria aparência.“Muitas das imagens na internet têm filtro e photoshop. Assim as pessoas acabam buscando um corpo que, tantas vezes, é irreal”, ressalta a médica Andrea Fioretti, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem).

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Além disso, mesmo que a pessoa treine e se esforce, é preciso deixar claro que nem todo mundo vai ter os famosos six pack perfeitos no abdômen. A razão está num fator determinante que não podemos mudar: a genética.

“Há pessoas que vão treinar excessivamente e até adoecer de tanto treinar e nunca vão ter gominhos, simplesmente porque essa não é a genética delas”, afirma Desire. “Mas isso não significa que o abdômen desses indivíduos não é forte. Apenas seu aspecto visual talvez não fique como desejam”, completa.

De fato, algumas pessoas têm mais facilidade para ganhar músculos e deixá-los aparentes. O educador físico Renato Barroso, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), explica que isso tem a ver com o tipo de fibra muscular, ou seja, o tipo de célula do músculo que predomina em cada ser humano.

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“Há pessoas que vão ter uma proporção maior de fibras do tipo 1, que são predominantemente utilizadas nas atividades de longa duração, como correr uma maratona. Já quem tem mais fibras do tipo 2, aquelas usadas em atividades que exigem bastante força ou velocidade, tendem a ter mais facilidade para hipertrofiar”, esclarece.

É conhecendo seu corpo e montando um treino adequado junto a um profissional que, ao final, chegamos aos melhores resultados — e, mesmo assim, sem ilusões.

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Também convém botar o pé no chão e ter em mente que boa parte das pessoas com o corpo malhado são ou atletas profissionais ou gente que depende do corpo para o trabalho (artistas, inclusive). E eles não só são acompanhados como treinam muito mais que a média da população.

“Não estamos falando de pessoas que fazem uma ou duas horas de exercícios por dia. Atletas treinam de seis a oito horas, além de ter uma alimentação extremamente regrada”, observa Andrea, que é vice-presidente do Departamento de Endocrinologia do Exercício da Sbem. “Como uma pessoa comum, que não tem esse tempo e disciplina para se dedicar, quer ter o mesmo corpo?”, indaga.

Nesse contexto, aumentou o número de mulheres e homens que partem para atalhos a fim de atingir seu desejo estético. Um deles é a famosa Lipo LAD, uma cirurgia plástica que visa deixar à mostra a musculatura da barriga. Mas nem essa técnica cirúrgica é capaz de driblar a genética.

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“A anatomia do abdômen é muito específica. Nem todos os pacientes têm seis gominhos, alguns têm quatro, outros cinco. A cirurgia é delicada e individualizada, porque não se trata de criar gominhos, e sim de aspirar os contornos para realçar o que o próprio paciente já tem”, desmistifica o cirurgião plástico Juan Montano, consultor científico da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP).

+Leia também: Entre a beleza e o perigo: os riscos dos procedimentos estéticos

Outras prescrições comuns para esculpir um corpo seco e sarado, principalmente na barriga, é caprichar nas sessões de abdominal, que estimulam os músculos da região, e passar por sessões de drenagens e massagem regularmente, o que ajuda o organismo a não acumular líquidos. Até aí, tudo bem, está dentro das quatro linhas da saúde.

Mas o perigo espreita quando se opta por caminhos comprovadamente prejudiciais, como o uso de esteroides anabolizantes. “Infelizmente, o nosso dia a dia como endocrinologista está sendo desconstruir, corrigir e reeducar os diversos pacientes que aparecem no consultório manipulados pela pressão de que todo mundo tem que ser malhado e definido, com barriga tanquinho, e acabaram partindo para essas drogas”, afirma o endocrinologista Clayton Macedo, também da Sbem.

“Muitos nem sabem que as sequelas podem ser graves e irreversíveis”, completa o especialista, um dos coordenadores da campanha Bomba Tô Fora, que visa alertar a sociedade sobre os riscos dessas substâncias para fins estéticos.

Proibidas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), elas têm no currículo uma lista de efeitos colaterais. Podem causar piripaques no fígado, nos rins e no coração, sem falar em aumento nos pelos do corpo e do rosto, queda de cabelo e espinhas.

Nos homens, pode gerar excesso de agressividade, redução dos testículos e impotência sexual. Nas mulheres, atrofia das mamas, engrossamento da voz, infertilidade e até aumento do clitóris, que pode crescer cinco vezes de tamanho, algo só revertido com cirurgia.

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Atalhos em busca da hipertrofia podem colocar a saúde em risco (Ilustração: Midjourney/SAÚDE é Vital)

Em meio a um cenário de banalização dos anabolizantes, um dos pontos que mais preocupam os especialistas é a prescrição de hormônios de forma irresponsável por outros profissionais.

Não existe testosterona baixa em mulheres. Estão dosando e alegando isso para convencer pacientes a aplicarem, afirmando que vai melhorar a disposição, a força e a hipertrofia, o que pode comprometer a saúde delas”, alerta Andrea. “A única indicação para solicitar dosagem de testosterona é quando a mulher tem algum sinal de masculinização, como muitos pelos, acne e irregularidade menstrual, sugerindo que ela pode ter excesso desse hormônio”, explica a endocrinologista.

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Andrea também frisa que as mulheres não precisam elevar a quantidade de testosterona no corpo para conseguir um bom rendimento nos treinos.

É fato que o hormônio é importante para o aumento dos músculos, mas a carga natural no corpo feminino já cumpre esse papel. Fora isso, o estrogênio, hormônio responsável pelas características femininas, também é crucial para o ganho de massa muscular.

Ou seja, a hipertrofia é possível para as mulheres com uma rotina disciplinada de exercícios e alimentação regrada. Não é preciso arriscar a saúde com implantes ou injeções hormonais. A questão é calibrar as expectativas e os componentes do treino.

“Após a puberdade, os homens desenvolvem mais a musculatura devido aos níveis mais altos de testosterona. Essa é uma diferença fisiológica normal. Mas homens e mulheres adultos, realizando o mesmo treinamento de força, ganham massa proporcionalmente de forma igual”, esclarece Barroso.

Desire chama a atenção para um aspecto cultural que influencia essa história: “As mulheres são menos estimuladas a trabalhar a força. É o contrário dos meninos, que desde pequenos estão carregando peso nas brincadeiras”.

Então, sim, mulher pode e deve puxar ferro. Só é preciso cuidado com os excessos, como muita gente expõe nas redes.

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É falso que a mulher não pode hipertrofiar naturalmente (Ilustração: Midjourney/SAÚDE é Vital)

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Toda essa discussão também tem a ver com o bem-estar mental. A ânsia por alcançar um novo “eu”, bombado e definido, pode desencadear um círculo vicioso de frustrações. E até mesmo levar a uma condição patológica, o transtorno dismórfico corporal (vigorexia), que faz com que pessoas musculosas nunca se deem por satisfeitas e se achem fracas na frente do espelho.

Fabiana Stein chama a atenção a respeito, lembrando que esse problema pode afetar tanto homens como mulheres. “Sempre se falou mais da vigorexia nos homens, como se as mulheres só tivessem problemas devido à busca por magreza. Mas essa não é mais a realidade atual. O distúrbio tem crescido entre as mulheres”, sublinha.

A pesquisadora interpreta que há um pano de fundo social nessa busca pelo shape perfeito. “Vivemos numa era que estimula a competitividade e o autoempreendedorismo. A mulher, quando faz de tudo para alcançar um corpo definido e mostra que consegue, está validando seu capital humano. Só que nunca há linha de chegada, sempre dá para melhorar, e isso gera uma obsessão, podendo virar um transtorno”, analisa.

Como se já não bastasse isso, a ala feminina ainda precisa encarar outra forma de pressão e opressão social: o machismo. E, aí, mulheres muito saradas e definidas ouvem críticas constantemente por terem um corpo “masculino” demais. A saída desse beco está em ocupar espaços e tentar não ligar para opiniões alheias — do mesmo ou de outro gênero.

O fato é que você não precisa ter o abdômen chapado da influencer piscando na tela do celular. Mas deve, sim, fazer o que estiver ao seu alcance para se sentir bonita — sem comprometer a saúde. Afinal, o corpo é seu, e de mais ninguém.

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