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Machismo faz, sim, mal à saúde

Como o conjunto de crenças e regras impostas pela sociedade, como a que afirma que “homem que é homem não chora”, prejudica o bem-estar deles e do entorno

Por André Bernardo
30 jun 2021, 12h22

O parceiro de uma amiga perdeu o emprego. Em algumas semanas, passou a sair menos com os colegas. Alguns meses depois, deixou de atender suas ligações. Ninguém entendeu nada. Qual era a razão do sumiço? A resposta é uma só: vergonha. O sujeito que cresceu ouvindo que homem que é homem tem que ser “forte”, “corajoso” e “bem-sucedido”, entre outros atributos, estava com tanta vergonha por estar desempregado que entrou em depressão.

Resultado: levou mais de um ano até reconhecer que precisava de ajuda para sair daquele buraco. Essa é apenas uma das muitas histórias que Guilherme Valadares conta nas palestras e nos workshops que dá Brasil afora. “Os homens estão mal. Apenas três em cada dez têm o hábito de conversar sobre seus maiores medos com os melhores amigos. Muitos, infelizmente, só se abrem para mudanças quando estão no fundo do poço”, alertou o editor do site Papo de Homem e professor de equilíbrio emocional numa apresentação dentro do ciclo TEDx.

Para entender o que passa pela cabeça de quem carrega os cromossomos XY, o Instituto PdH realizou a pesquisa “O Silêncio dos Homens” com 27,7 mil brasileiros, entre maio e junho de 2019. Chama a atenção, entre os achados do estudo, o que os adultos aprenderam com seus pais quando garotos e levaram para a vida: ser bem-sucedido profissionalmente (85%), ser responsável pelo sustento financeiro da família (67%) e não expressar as emoções (60%) foram algumas das principais respostas.

Por essas e outras, dá para entender por que o personagem do início desta reportagem sofreu calado e sozinho a vergonha de estar desempregado. E a raiz do problema, dizem os especialistas, tem nome e sobrenome: masculinidade tóxica.

O termo foi criado em 1986 pelo psicólogo americano Shepherd Bliss. Segundo o sociólogo Túlio Custódio, doutorando pela Universidade de São Paulo (USP) e um dos entrevistados do documentário O Silêncio dos Homens, masculinidade tóxica é o apelido dado ao que ficou conhecido entre os acadêmicos como masculinidade hegemônica patriarcal. É a mãe do machismo, digamos assim.

“Por essa lógica, o homem é o provedor e a mulher, a cuidadora. E ela alimenta situações como a do homem que tende a não cuidar da saúde e reluta em ir ao médico porque acha que nunca vai ficar doente”, explica Custódio.

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Menos cuidados e anos pela frente

A relutância da ala masculina em agendar uma consulta pode ser traduzida em números. Segundo o Programa Nacional de Saúde, do governo federal, 76% da população brasileira, algo em torno de 160 milhões de pessoas, consultaram um médico em 2019. Desses, 82,3% eram mulheres e 69,4%, homens.

Na matemática da masculinidade tóxica, pouca atenção com a saúde costuma ser igual a menor expectativa de vida. Não por acaso, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que, em 2016, os homens viveram cerca de sete anos a menos que as mulheres. Enquanto elas chegavam, em média, aos 79,3 anos, eles não passaram dos 72,2.

Mas o fenômeno não é exclusivo do Brasil. Um relatório da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) calcula que a masculinidade tóxica reduz a expectativa de vida da população masculina em todo o continente, da Groenlândia ao Chile, em até 5,8 anos. Segundo o estudo Masculinidades e Saúde na Região das Américas, de 2019, um em cada cinco homens morre antes dos 50 nesse extenso território.

Dos números apresentados pela Opas, três são alarmantes: a proporção de mortes por homicídio é de sete homens por mulher; de acidentes de trânsito, três por um; e de cirrose hepática causada pelo álcool, dois por um.

“Não bastasse reduzir a expectativa de vida, a masculinidade tóxica ainda estimula comportamentos de risco, como direção perigosa, consumo de álcool e sexo sem proteção”, adverte Catharina Cuellar, assessora científica do escritório de Equidade, Gênero e Diversidade Cultural da entidade pan-americana.

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“Os homens ainda vão pouco ao médico e, quando vão, não tomam a medicação prescrita nem seguem o tratamento recomendado”, observa. Conclusão: eles adoecem e sofrem mais.

Consequências em várias esferas

A masculinidade tóxica repercute em diversos ambientes. Reconhecê-la é o primeiro passo para superá-la em todos esses contextos:

No consultório: eles não só vão menos ao médico como aderem menos ao tratamento proposto, quando não fogem de exames preventivos. Não são poucos os motivos: desde a vergonha de demonstrar fraqueza até o medo de descobrir doenças.

Na escola: adolescentes criados em ambientes machistas tendem a reproduzir em sala de aula o que aprendem em casa. Contam piadas preconceituosas, usam termos agressivos para atacar colegas de classe e não respeitam ideias e opiniões dos outros.

Na terapia: seis em cada dez homens dizem enfrentar um distúrbio emocional, como vício ou depressão. Muitos nem sequer recebem o diagnóstico por evitar apoio psicoterápico. Coincidência ou não, eles se suicidam bem mais do que elas.

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No trânsito: enquanto as mulheres são mais cautelosas e empáticas ao dirigir, os homens se mostram mais agressivos, competitivos e impacientes. Daí que eles correm mais, batem mais o carro e se machucam mais em acidentes pelas vias.

No trabalho: duas demonstrações de machismo no ambiente corporativo são o bropriating (apropriar-se de uma ideia da mulher e levar o crédito) e o mansplaining (explicar algo óbvio a uma mulher como se ela não tivesse capacidade para entender).

Preconceito, tabu, desinformação

Nos consultórios de urologia, os estragos do machismo ganham contornos dramáticos. Médicos dessa especialidade veem homens desenvolvendo câncer de pênis por não higienizar corretamente o órgão depois das relações sexuais e diagnosticando câncer de próstata tardiamente por se recusar a fazer o exame de toque retal.

Se os tumores no pênis matam um pouco menos de 500 homens por ano, segundo o Instituto Nacional de Câncer (Inca), o número de vítimas fatais da doença na próstata pode superar os 15 mil. Para Roni Fernandes, diretor de comunicação da Sociedade Brasileira de Urologia (SBU), a maioria dos homens ainda resiste a fazer exames preventivos e a buscar o diagnóstico precoce porque associa o cuidado com a saúde a uma demonstração de fraqueza.

“Se não sinto nada, doutor, por que tenho de ir ao médico?” é uma das frases que ele mais escuta quando indaga aos seus pacientes por que demoraram tanto para agendar uma consulta. “Muitos homens se acham super-heróis e se consideram indestrutíveis. Pensando assim, alguns morrem de doenças que, se detectadas a tempo, poderiam ter sido facilmente tratáveis. Onde está o heroísmo nisso?”, indaga o urologista.

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A percepção equivocada se soma ao preconceito: em pesquisa do Datafolha encomendada pela SBU em 2017, 21% da população masculina insistia em dizer que o exame de toque retal, que apura problemas na próstata, não era “coisa de homem” — no limite essa turma concede em fazer um PSA, dosagem de uma substância no sangue que também delata perrengues na glândula e, sozinha, muitas vezes não é conclusiva. Para 38% dos homens com mais de 60 anos ouvidos, o toque nem sequer era necessário. Justo eles, os mais propensos ao câncer de próstata.

O urologista João Brunhara, da plataforma de cuidados com a saúde masculina Omens, lembra que o exame de toque retal é simples, rápido e indolor. “Por incrível que pareça, esse assunto segue um tabu entre os homens. Muitos acham que vão perder a masculinidade por isso, sendo que ninguém é menos viril por cuidar da saúde”, desmitifica.

Para combater essa ojeriza sem cabimento, Fernandes ressalta a necessidade de aprofundar as campanhas de conscientização — a mais recente delas, a #VemProUro foi destinada aos adolescentes — e Brunhara vê uma oportunidade de criar ou estreitar a relação com o médico a partir de consultas online.

Se serve de consolo aos urologistas, os homens também resistem aos consultórios de psicólogos, psiquiatras e psicanalistas. O que é preocupante: segundo o Ministério da Saúde, eles se suicidam quatro vezes mais que as mulheres. “Quando se trata de pedir ajuda a profissionais do campo ‘psi’, a população masculina demonstra preconceito e resistência. Parece até que se submeter a um processo psicoterapêutico é sinal de fragilidade”, analisa a psicóloga Fátima Niemeyer da Rocha, doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autora do estudo Os Impactos da Masculinidade Tóxica no Bem-Estar do Homem Contemporâneo. “Muitos têm dificuldade de enfrentar dilemas existenciais e problemas potencialmente dolorosos.”

Mas o que leva os homens a fugir do médico como o diabo da cruz? O próprio Ministério elucidou e listou alguns dos motivos que levam os marmanjos a adoecer e a morrer mais que as mulheres: eles estão envolvidos na maioria das situações de violência, utilizam álcool e outras drogas com maior frequência e estão mais expostos aos acidentes de trânsito e de trabalho.

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De fato, sete em cada dez mortes registradas em 2014 em indivíduos de 20 a 59 anos envolvem homens. No ranking das principais causas de mortalidade masculina, as razões externas, como agressão por meio de disparo de arma de fogo, dividem o topo da lista ao lado de infarto, AVC e câncer.

Por falar em acidentes de trânsito, sabe aquela frase típica de para-choque de caminhão: “Mulher ao volante, perigo constante”? Então, ela não procede mesmo! Em 2019, segundo dados do governo, 31,3 mil pessoas perderam a vida em acidentes pelas estradas, ruas e avenidas. Oito em cada dez vítimas fatais eram homens.

“Enquanto os homens, desde criança, são encorajados a ser competitivos e agressivos, as mulheres, por sua vez, são educadas a ser mais cuidadosas e pacientes”, compara o médico Dirceu Rodrigues Alves, diretor da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet). “Na prática, elas demonstram maior segurança ao dirigir, respeitam mais as leis de trânsito e provocam menos acidentes”, resume.

Por incrível que pareça, os homens não cometem mais acidentes só no trânsito, não. No trabalho, eles também são campeões. O Anuário Estatístico de Previdência Social aponta que, em 2018, 576,9 mil brasileiros sofreram acidentes de trabalho. Do total de acidentados, 65,96% eram homens e 34,03%, mulheres.

“Na infância, o garoto aprende que homem que é homem não chora, não sente medo nem demonstra sofrimento. Quando cresce, desafia o perigo e adota um comportamento de risco para provar que aquilo ‘não é perigoso’”, analisa o sociólogo do trabalho Ângelo Soares, professor da Universidade de Quebec, em Montreal, no Canadá. “Sob essa ótica, muitos trabalhadores não seguem as normas de segurança, não usam equipamentos de proteção e, pior, se expõem a riscos que, muitas vezes, se traduzem em acidentes e mortes”, completa.

O entorno também sofre

A masculinidade tóxica, é preciso deixar bem claro, afeta a saúde de todo mundo. Não só do homem em si, mas de todos ao seu redor. É como uma bomba-relógio. Quando explode, sobra estilhaço para qualquer lado. Para outros homens, para as mulheres, para pessoas trans, para crianças, para indivíduos de outras culturas…

“Afeto e sensibilidade sempre foram sentimentos associados às mulheres. Os homens não foram ensinados a cuidar de si, do outro e do meio em que vivem. O ambiente tem sido destruído por práticas que não olham para o cuidado coletivo e por ações imediatistas que não pensam no longo prazo”, analisa o sociólogo Fábio Mariano da Silva, professor do curso Masculinidades Contemporâneas da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

A essa altura, o leitor deve estar se perguntando: como desarmar essa bomba chamada masculinidade tóxica? Simples não é. Há muitos fios a ser cortados. Ou melhor: há muitas ações a ser tomadas. O Ministério da Saúde elenca algumas delas: procurar os serviços de saúde não apenas quando estiver com alguma doença mas para se prevenir; conversar sobre problemas e preocupações com a(o) parceira(o), familiares, amigos e profissionais; e pedir ajuda quando se sentir sobrecarregado por alguma situação de estresse, seja no trabalho, seja em casa.

Doutor em saúde coletiva pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor do artigo Saúde do Homem e Masculinidades na Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem, Marco Antônio Separavich pondera que, na prática, a realidade é outra: como os homens podem ir ao médico se os serviços de saúde funcionam no horário em que estão trabalhando? “Não há um arranjo institucional que garanta a esses trabalhadores a busca pelos serviços preventivos sem prejuízo da remuneração do trabalho. Muitos deles só procuram os serviços de urgência e emergência quando já estão em estágio avançado de alguma doença”, argumenta o sociólogo e pesquisador.

Para a psiquiatra Carmita Abdo, coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade da USP e diretora da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), a solução para o problema passa pela educação das novas gerações. Da mesma forma que as mulheres são orientadas a procurar o ginecologista desde o momento em que entram na puberdade ou iniciam sua vida sexual, muitos homens chegam aos 40 sem nunca ter ido a um consultório.

“Sozinho, o homem não vai ao médico. Na infância, era a mãe que o levava ao pediatra. Na vida adulta, é a mulher que agenda as consultas. O adolescente não vai criar esse hábito do nada. Precisa ser educado pelos pais”, defende a professora.

Isabela Venturoza, doutoranda em antropologia social pela Unicamp, não é adepta ou simpatizante do termo “masculinidade tóxica”, que classifica como “generalista” e “raso”. A menção à “toxicidade”, explica, passa uma ideia equivocada de “doença”.

“Quando tratamos o autor de uma violência contra a mulher como um doente, estamos individualizando o problema. Não é só ele que pensa que a mulher é inferior. É a sociedade que o educou a pensar assim”, aponta Isabela, que considera importante apoiar os serviços de atendimento a homens denunciados por crimes de violência contra a mulher. “Não se trata de ensinar a mulher a não apanhar, mas os homens a não bater”, sintetiza.

Nas palestras que dá sobre o silêncio dos homens, Guilherme Valadares costuma apresentar sete gatilhos de transformação. Um deles é o acesso a espaços seguros e de acolhimento para homens — no site do Papo de Homem, ele lista mais de 120 iniciativas do gênero.

“Os homens podem e querem se transformar. Mas não vamos conseguir fazer isso sozinhos”, afirma em sua fala no TEDx. Assim como as feridas da masculinidade tóxica se abrem por toda a sociedade, é de imaginar que a cura também dependa de uma reflexão e um engajamento geral. Vamos nessa?

Veja, leia, participe…

Alguns filmes e livros nos instigam a refletir sobre a masculinidade tóxica, enquanto grupos e serviços ajudam a lidar com ela no dia a dia:

Filmes, docs e livros

• Meninos Não Choram (1999), de Kimberly Peirce
• Moonlight: Sob a Luz do Luar (2016), de Barry Jenkins
• Eu Não Sou um Homem Fácil (2018), de Éléonore Pourriat

• A Máscara em Que Você Vive (2015), de Jennifer Newsom
• Mexeu com Uma, Mexeu com Todas (2017), de Sandra Werneck
• O Silêncio dos Homens (2019), de Ian Leite

• O Mito da Masculinidade (1993), de Sócrates Nolasco
História dos Homens no Brasil (2013), de Mary Del Priore e Márcia Amantino
O Homem Subjugado (2018), de Malvina Muszkat

Grupos e serviços

Papo de Homem: o site reúne mais de 120 projetos espalhados pelo Brasil que apoiam e estimulam os homens a se expressar e se cuidar. E dá até um passo a passo de como criar um grupo de acolhimento e escuta na sua região.

Paternando: é um exemplo de grupo que incentiva a paternidade ativa — outro é o Balaio de Pais. Eles ensinam o homem a compartilhar com a parceira os cuidados com a criança, como dar banho, trocar fraldas, ninar e contar histórias.

Grupo Reflexivo para Homens: é voltado para autores de violência contra mulher. A própria Lei Maria da Penha recomenda a criação de espaços para “educação” e “reabilitação” dos denunciados por crimes de violência doméstica.

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