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A dieta planeterrânea

Pesquisadores usam o cardápio mediterrâneo, modelo mais louvado pela ciência, para propor menus que priorizam ingredientes e preferências regionais

Por Por Regina Célia Pereira (texto), Laura Luduvig (design), Éber Evangelista (ilustração)
30 ago 2023, 11h52

Entre os preceitos dos povos que vivem às margens do mar que banha o sul da Europa, o norte da África e um pedaço do Oriente Médio, um dos mais célebres é propagar receitas de geração em geração, compartilhando e perpetuando sabores e tradições.

Espalhar saberes oriundos daquela região, desta vez aos quatro cantos do globo, é também o que permeia o projeto Planeterrânea, concebido pela cátedra Unesco de Educação para a Saúde e Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Nápoles Federico II, na Itália.

O propósito dos seus mentores é exportar ideias e benesses colhidas com a dieta mediterrânea, cardápio que, com frequência, é eleito, com base em condecorações científicas, o mais proveitoso ao bem-estar. “Ele já é associado a menor risco de obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e câncer”, sintetiza a nutricionista Claudia Vetrani, uma das autoras do programa.

Sinônimo de plano alimentar ideal, o menu mediterrâneo junta o colorido de frutas vermelhas, figos, uvas, berinjelas, tomates e favas ao perfume de manjericões e sálvias, passando pela crocância de nozes e grãos integrais, pela consistência do iogurte e pelo gostinho dos pescados, tudo regado a azeite de oliva extravirgem e dentro do devido equilíbrio.

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Clique para ampliar (Ilustração: Éber Evangelista/SAÚDE é Vital)

Adaptando o padrão mediterrâneo

Quem vive em nações como Itália, Espanha, Grécia, Líbano e Tunísia, entre outras agraciadas pelas ondas daquele mar, tem à mão esses ingredientes frescos.

Aqui, deste lado do oceano, feiras livres e hortifrútis podem até exibi-los, mas nem sempre eles são acessíveis ou caem nas graças da família.

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Para transpor obstáculos sociais e culturais, a equipe responsável pela Planeterrânea dediciu utilizar o menu original como inspiração para outros cantos do mundo, mas dando a liberdade de se valer de itens e temperos locais, com propriedades nutricionais semelhantes às da dieta exemplar.

Sim, a ideia é adaptar a mediterrânea.

Com esse objetivo em vista, os estudiosos italianos se debruçaram em centenas de artigos, coletaram informações sobre comidas típicas e entrevistaram nativos a respeito de hábitos e preferências em cinco continentes: América do Norte, América Latina, África, Ásia e Oceania.

O resultado desse esforço, publicado no periódico Frontiers in Nutrition, é uma carta de navegação para tornar os princípios da festejada dieta parte do cotidiano de brasileiros, australianos, sul-africanos e grande elenco.

E já ganha fãs por aqui. “A Planeterrânea estimula escolhas locais, respeita tradições e se adéqua às questões de sustentabilidade”, avalia a nutricionista Carolina Pimentel, doutora em ciências pela Universidade de São Paulo (USP).

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Na prática, a ideia é levada a cabo com a criação de pirâmides alimentares idealizadas para cada uma das cinco regiões contempladas no projeto.

O lema é democratizar sem padronizar, preservar a saúde dos comensais e poupar o planeta. “A dieta mediterrânea original preza muito o respeito pela biodiversidade, incentivando a sazonalidade no consumo de vegetais e pescados”, nota a nutricionista Lara Natacci, colunista de VEJA SAÚDE.

+ Leia também: Comida de época: por que respeitar a sazonalidade dos alimentos

Nesse sentido, não se trata de apenas um cardápio, mas de estilo de vida. “Ele envolve cuidados com o ambiente, a celebração da cultura e a promoção de atividade física, lazer, descanso e interações sociais”, resume a nutricionista Juliana Watanabe, que mora na Espanha e vivencia os ensinamentos de perto.

A dieta mediterrânea tem estofo e história, a ponto de ser considerada Patrimônio Imaterial da Humanidade pela Unesco. “Suas origens remontam aos padrões da antiga tradição romana, que, por sua vez, se baseia no modelo grego. Nele, trigo, vinho e azeite de oliva eram considerados símbolos da agricultura, da vida rural e cultural e da espiritualidade”, conta Juliana, que tem mestrado sobre esse padrão alimentar pela Universidade Internacional de Valência, em solo espanhol.

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É, portanto, um precioso legado dos povos que se desenvolveram na bacia fértil do velho mar.

Nem tudo, claro, é unanimidade em meio às prescrições históricas. O vinho é considerado o personagem mais controverso do menu. Embora integre a mesa das comunidades mediterrâneas, de acordo com recomendações internacionais, não existe consumo seguro de álcool.

Tamanha apreensão se dá porque há indivíduos suscetíveis ao alcoolismo, entre outras mazelas físicas e mentais.

As taças costumam ser liberadas, caso a caso, junto às refeições, de preferência em ocasiões especiais — com parcimônia e se não houver contraindicações. Para aqueles que não se enquadram nesse perfil, é melhor obter as substâncias protetoras da uva por meio do suco integral.

Como não dá para copiar ipsis litteris o modelo do outro lado do Atlântico, a turma da Planeterrânea advoga adequá-lo de acordo com a realidade geográfica, econômica e social. “É desejável que cada país redescubra suas heranças para desenvolver um padrão saudável baseado em comidas tradicionais e locais, preservando sua identidade, a comunidade e o meio ambiente”, sugere Claudia.

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Profissionais de saúde vêm assinando embaixo. “Esse projeto pode se tornar uma ferramenta para resgatar e renovar a alimentação em diferentes lugares”, elogia a nutricionista Denise Kunitake Maeno, de São Paulo.

Um dos alimentos preconizados para a pirâmide asiática, por exemplo, é a soja. “Ela faz parte do cardápio de países de tradição budista, que privilegiam o consumo de proteínas vegetais”, comenta Denise, que passou uma temporada de estudos no Japão.

Por lá, a leguminosa aparece em diversas roupagens, em grãos cozidos, em preparações fermentadas como o missô e o nattô e, ainda, sob a forma de tofu, uma espécie de queijo.

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Clique para ampliar (Ilustração: Éber Evangelista/SAÚDE é Vital)

Aliás, a soja é matéria-prima de um óleo popular aqui no Brasil, e que pode entrar no lugar do azeite de oliva no dia a dia. Bom exemplo da ideia de flexibilizar as escolhas sem perder a essência nutricional. “O preço de determinados ingredientes tende a ser um empecilho para a adesão à dieta mediterrânea”, diz a nutricionista Amália Almeida Bastos, da Faculdade de Saúde Pública da USP.

E, aí, basta comparar o preço do óleo que vem da oliva com o que procede da soja no mercado. Embora o Brasil produza azeite de excelente qualidade, ainda não há quantidade suficiente para suprir a demanda. Assim, ele precisa vir de fora, numa operação de custos salgados.

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Conhecido como “ouro líquido”, apelido dado por Homero, poeta grego que teria vivido entre os séculos 8 e 9 a.C, para muitos o alimento vindo da oliveira é a estrela maior da dieta do Mediterrâneo.

O extravirgem — que é o puro suco da azeitona — presenteia o organismo com um arranjo harmonioso de ácidos graxos, isto é, de partículas de gordura, sendo a maior parte de monoinsaturados, associados à saúde das artérias.

Sem contar a bela concentração de antioxidantes. Coroando toda essa riqueza, esbanja sabor e aroma e transforma uma singela salada de folhas em um primor.

Diante de tantos predicados, parece difícil competir, mas análises asseguram que tanto o óleo de soja quanto o de canola apresentam uma mistura adequada de ácidos graxos. Então, se não der para ser sempre azeite, tudo bem…

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Por falar em gordura, ao que tudo indica, foi a proporção no consumo desse nutriente que deu pistas sobre os benefícios do menu mediterrâneo.

Acredita-se que os atributos do modelo começaram a ser notados na década de 1950 por um fisiologista americano, Ancel Keys (1904-2004), que, pelo tempo que viveu, deve ter seguido à risca os aprendizados.

Um dos trabalhos do cientista longevo revelou maior proteção cardiovascular entre gregos, espanhóis, italianos e franceses que viviam ao sul de seus países. E uma das hipóteses levantadas por Keys foi justamente a ingestão de maior quantidade de gordura monoinsaturada, em detrimento da saturada, aquela de carnes, laticínios e outros itens de origem animal.

Décadas de pesquisas têm mostrado que o excesso de ácidos graxos saturados financia o aumento das taxas de LDL, o colesterol ruim.

Também há evidências de que exageros sirvam de estopim para inflamações, numa cascata de efeitos que machuca os vasos e pode obstruir a passagem do sangue.

Os próprios mediterrâneos provam que não é preciso abolir as fontes de gordura saturada do cotidiano — até porque existem versões mais esbeltas dos produtos no mercado.

Mas o que seria do espaguete ao sugo dos italianos sem o parmesão ralado no final? Ou dos gregos sem aquele iogurte cremoso no café da manhã? Nem só de nutrientes se vive, convenhamos. E o prazer à mesa é uma das receitas desses povos.

Como a civilização mediterrânea se moldou em meio às oliveiras, o azeite emergiu como o maior fornecedor de gorduras ali, mas ele, obviamente, tem companhia nessa função. Nozes, amêndoas e toda a sorte de nuts também são deliciosas provedoras de ácidos graxos.

Se por lá sobram opções, por aqui temos as nossas. “Que tal alternar a castanha-do-brasil e a castanha-de-caju, além do amendoim?”, sugere Lara, que concluiu seu pós-doutorado na Faculdade de Saúde Pública da USP sobre o elo entre alimentação e saúde mental e pretende adaptar a dieta mediterrânea às cores tupiniquins.

No terreno das oleaginosas, cabe notar que todas oferecem um punhado de vitaminas, sais minerais e, para completar, incrementam as refeições com pequenas porções de proteína.

Séculos antes de termos como plant-based ou flexitarianismo darem as caras, os mediterrâneos já convidavam para a mesa menos carne vermelha e mais fontes de proteína vegetal. Hoje, rebatizado, esse modelo desponta como aliado do corpo e do planeta.

Nas últimas versões das pirâmides nutricionais — um símbolo que baliza as melhores escolhas no prato —, ganhou relevância a questão da sustentabilidade. Hoje as representações trazem ícones sobre o impacto ambiental de cada um dos grupos alimentares colocados.

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E pedem atenção à sazonalidade, muito embora os antigos já se valessem dessa premissa. O recado é atual: itens de época tendem a ser cultivados com menor quantidade de pesticidas e fertilizantes. São saborosos e nutritivos, já que saem do pé na hora certa.

Além de frutas, verduras e legumes, defende-se respeitar a sazonalidade inclusive em relação aos pescados. A atitude tem tudo a ver com a reprodução e o tamanho das espécies. Não só colabora para a fauna aquática como é garantia de peixe fresco.

Aliás, o que é sazonal costuma ter melhor preço — outro argumento em prol da democratização das propostas mediterrâneas. Apesar do tamanho da nossa costa e da quantidade de rios dentro do país, o brasileiro, em geral, come pouco pescado. “Um dos motivos é o alto custo”, repara a nutricionista Maísa Mota Antunes, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Privilegiar o que é produzido localmente é sugestão reforçada no projeto Planeterrânea. Esses alimentos não precisam viajar muito para chegar ao consumidor, reduzindo desperdícios na cadeia de produção. E, quanto menor a distância, menos emissão de carbono e de outros poluentes.

Juliana Watanabe conta que, em alguns supermercados da Espanha, no setor de hortifrúti, há avisos sobre produtos cultivados nas imediações. “São identificados como KM zero”, detalha. A proximidade promove a valorização do que é regional e dá um chega pra lá na monotonia alimentar. Atualmente, devido ao fenômeno da globalização da dieta, muita gente come sempre a mesma coisa.

Em passeio pelo Mato Grosso, a professora Maísa se surpreendeu em um rodízio só de pescados, preparados de tudo quanto é jeito. “Saboreei pintado, pirarucu, pacu, mas o melhor foi a piraputanga, espécie de que nunca tinha ouvido falar”, relata.

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É um aperitivo do potencial brasileiro. Com a maior biodiversidade do mundo, não temos desculpa para deixar de ampliar o cardápio. A lista de escolhas nativas é enorme — dentro e fora da água.

Abacaxi, cacau, cupuaçu, goiaba, guaraná, jabuticaba, maracujá, pequi e umbu são só algumas das frutas lotadas de substâncias que resguardam nossas células e ajudam a reduzir o risco de males associados ao envelhecimento. Sem contar as plantas alimentícias não convencionais, as PANC, caso de taioba, ora-pro-nóbis e beldroega.

No modelo da Planeterrânea, a pirâmide da América Latina traz o açaí como um dos representantes do Brasil.

E veja só: o suco feito com o frutinho amazônico possui 33 vezes mais antocianinas, um tipo de antioxidante, do que o vinho. “Mas a forma como ele é consumido em várias partes do país é bem diferente da Região Norte, berço da espécie”, observa a nutricionista Adélia da Costa Arruda Neta, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Pois é, digamos que a tradição não vê com bons olhos um pote de açaí cheio de leite condensado. O modo de preparo pode pôr as virtudes a perder.

E, quem diria, o puxão de orelha vale até para a população mediterrânea dos dias atuais, que, encantada com a praticidade, em meio à correria tem recorrido cada vez mas a produtos prontos industrializados.

Juliana, que também é chef, constatou em seu mestrado na Espanha que as habilidades culinárias colaboram para a adesão ao modelo mediterrâneo.

O processo envolve desde o planejamento das compras, passando pela seleção de itens na gôndola do mercado ou na banca da feira, até a confecção das receitas.

Na cozinha a mágica acontece.Vale até botar a criançada para participar. “Quanto mais cedo ocorre o aprendizado, mais chance de os hábitos se enraizarem”, afirma Adélia.

Como você deve se lembrar, a convivência e as trocas entre as gerações estão entre os pilares do estilo de vida mediterrâneo. Tudo temperado com a alegria típica daqueles povos. Vai dizer que não vale importar e nacionalizar essas ideias?

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Clique para ampliar (Ilustração: Éber Evangelista/SAÚDE é Vital)

Para todo mundo

Na dieta planeterrânea, há adaptações para diversas culturas. Veja exemplos:

África: pela extensão do continente, existem distinções entre as regiões. Na pirâmide elaborada, destaca-se o teff, um grão rico em fibras, proteínas e cálcio.

América Latina: um dos ingredientes que aparecem no menu é a quinoa, que, além de carboidrato, fornece fibras. O abacate, fonte de gordura boa, também marca presença.

América do Norte: o óleo de canola entra no lugar do azeite. Os cientistas recomendam ainda maior consumo de leguminosas, sobretudo de feijão, valorizado nos EUA.

Oceania: na Austrália, a macadâmia pede passagem por fornecer gorduras saudáveis. Frutas como ameixa e certos tipos de pimenta dão
o ar da graça.

Colheita de benefícios

Pesquisas ligam a dieta mediterrânea a menor risco de várias encrencas.

Obesidade: Tanto o equilíbrio das porções quanto a variedade de opções do cardápio (com direito a muita hortaliça) favorecem o controle do peso.

Diabetes: O mix de ingredientes, sobretudo as fibras vindas de frutas, verduras e grãos integrais, ajuda a afastar e frear o diabetes tipo 2.

Coração: Um dos benefícios mais celebrados é o controle dos níveis de colesterol na corrente sanguínea e a proteção das artérias e do peito.

Câncer: Há evidências de que aderir ao cardápio rico em fitoquímicos protetores diminua a propensão a câncer de mama e de intestino.

Cérebro: Graças à grande oferta de antioxidantes, a massa cinzenta é defendida de males como AVC e Alzheimer.

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