Sidnei Epelman: “É um privilégio poder curar uma criança com câncer”
Fundador da associação de apoio a jovens com a doença, o médico Sidnei Epelman reflete sobre os progressos e a busca por igualdade no tratamento

“Um trabalho incansável guiado pela excelência científica, pela genialidade no ensino e pelo compromisso profundo com a equidade no acesso ao tratamento de futuras gerações.”
Assim foi homenageado o oncologista Sidnei Epelman, fundador e presidente da Associação para Crianças e Adolescentes com Câncer, mais conhecida como Tucca, durante a última edição do congresso da Sociedade Brasileira de Oncologia Pediátrica (Sobope).
Natural de Sorocaba, no interior paulista, o médico encontrou no exterior mentores que o inspiraram a construir, a partir de um centro na zona leste de São Paulo, uma carreira de quatro décadas de combate ao câncer infantojuvenil.
Em parceria com o Santa Marcelina Saúde, hospital localizado no bairro de Itaquera, a Tucca atende mais de 3 mil jovens com câncer todos os anos.
A assistência é gratuita, via Sistema Único de Saúde (SUS) e doações, e viabiliza o acesso a exames e terapias de ponta.
Nesta entrevista, o médico conta como tudo começou e o que espera legar à sociedade e às próximas gerações.
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O senhor tem se dedicado aos cuidados de crianças e adolescentes com câncer desde o início da sua carreira, há mais de 40 anos. É uma vocação?
Eu sempre quis cuidar de crianças e adolescentes. Era um bom aluno e, aos 17 anos, entrei de cara no curso de medicina da Universidade de Mogi das Cruzes
Quando eu estava no último ano da faculdade, fiz um estágio no Hospital do Câncer [hoje A.C.Camargo Cancer Center] e foi muito desafiador. Se hoje ainda é, imagine no início da década de 1980, quase meio século atrás. Foi uma experiência bastante intensa trabalhar com crianças, o que me fez pensar que poderia seguir nesse caminho.
Quando fui fazer residência para oncologia em pediatria, havia duas vagas só, e eu passei em primeiro. Na época, não tínhamos muitos recursos para diagnosticar ou tratar os pacientes, mas nós já curávamos alguns casos de leucemia, retinoblastoma e um ou outro linfoma.
Fiz três anos de residência e, então, houve um boom! As coisas realmente começaram a evoluir.
Nessa época, o senhor teve a oportunidade de viajar para os Estados Unidos e conhecer outra realidade. O que aprendeu no exterior?
Eu viajei com uma bolsa da Organização Pan-Americana da Saúde [Opas], e a minha intenção inicial era aprender novas formas de tratar cânceres ósseos. Na época, a amputação era o padrão para evitar que a doença se disseminasse, mas sabíamos que podia haver formas de curar a criança da doença sem deixar essa marca.
Foi o que fui aprender com o falecido Norman Jaffe, oncologista pediátrico do MD Anderson Cancer Center, uma referência mundial na área, que inclusive foi o responsável por tratar Teddy Kennedy, sobrinho de John F. Kennedy [ex-presidente dos Estados Unidos], que teve osteossarcoma aos 12 anos.
Jaffe sempre dizia: “Eu não quero que você pense igual a mim, eu quero que pense mais do que eu”. Por isso, ele me incentivou a fazer mais dois estágios no país. Um na Clínica Mayo, sob a condução de Gerald Gilchrist, e outro no St. Jude Children’s Research Hospital, com Charles B. Pratt.
Clique aqui para entrar em nosso canal no WhatsAppComo essa experiência mudou a sua prática profissional?
Foram experiências incríveis, tanto do ponto de vista técnico quanto humano, porque lá os médicos realmente enxergavam a criança e a família como um todo, não apenas a doença.
Minha esposa, Claudia, que era psicanalista, também passou pelo MD Anderson e direcionou a carreira dela aos cuidados psicossociais necessários nesse contexto.
Também acabei conhecendo Ian Magrath, um oncologista que discutia como dar acesso ao tratamento em países que não tinham todos os recursos.
Outro mentor importante foi Roger Packer, que me introduziu na minha atual especialidade, que é a de tumores cerebrais. Eles são o segundo tipo de câncer mais comum na infância e na adolescência.
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É nesse momento que surge a semente da Tucca?
Antes de criar a Tucca, eu atuei um bom tempo em hospitais públicos e privados no Brasil, e a sociedade de oncologia pediátrica me incumbiu de desenvolver uma área de estudos sobre tumores cerebrais. Por muitos anos, atendi em uma clínica própria e em hospitais como Einstein e A.C.Camargo.
Em 1998, uma década depois da vivência nos Estados Unidos, fomos movidos por um grupo de pais e colegas a desenvolver uma solução para o atendimento público de crianças com câncer no cérebro. Daí vem o nome Tucca, que significava “Tumor Cerebral em Crianças e Adolescentes”.
Conforme fomos expandindo nossa atuação, a iniciativa virou uma associação para jovens com todo tipo de câncer. Sempre com a missão de aumentar o acesso ao tratamento no sistema público.
As instituições privadas têm grande importância no acesso ao diagnóstico e tratamento do câncer infantojuvenil no país, mas é preciso haver parceria com o setor público, que é responsável por atender de 70 a 80% da nossa população.
A Tucca acolhe pacientes no Santa Marcelina, hospital na zona leste de São Paulo. Qual foi a estratégia de vocês ao escolher essa localização?
Desde o início, a ideia era dar acesso ao diagnóstico e tratamento a quem mais precisa e a quem mora longe dos grandes centros hospitalares, que, até então, estavam concentrados nas zonas central, oeste e sul da cidade.
Em 2001, firmamos a parceria com o Santa Marcelina Saúde [gerido pela Congregação das Irmãs de Santa Marcelina]. É um hospital que possui uma estrutura de alta complexidade, referência na zona leste de São Paulo.
E a ZL é como uma cidade: ela abriga 4,5 milhões de habitantes. Então, ter um centro referendado de atendimento oncológico-pediátrico era uma necessidade da região. Isso ajuda a reduzir o deslocamento das famílias e facilita a própria adesão ao tratamento da doença.
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Quando falamos sobre tratamento oncológico na infância e na adolescência, a questão vai além do acesso aos fármacos. Também é preciso garantir que os jovens continuem se desenvolvendo socialmente. Como vocês trabalham nesse sentido?
Para além da estrutura hospitalar, há também várias frentes que promovem o cuidado integral dos pacientes. Eles têm acesso a fisioterapeutas, fonoaudiólogos, dentistas, nutricionistas, psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais que estão preparados para identificar as necessidades de cada um.
As crianças também não deixam de estudar enquanto estão hospitalizadas — temos uma escola lá dentro. Também oferecemos transporte. E, desde 2013, mantemos o TUCCA Hospice Francesco Leonardo Beira, uma ala de cuidados paliativos. É a primeira voltada ao público pediátrico no Brasil.
Lá, pacientes que não têm chance de cura são acolhidos junto com a família para receber todo o cuidado do qual necessitam, desde o controle da dor física até o apoio psicológico durante a assistência e após a morte da criança ou do adolescente.
Muitos aceitam esse tratamento diferenciado, porque, quando não há mais a possibilidade de cura, essa é uma forma de garantir que o jovem parta com dignidade e que a família tenha condições de se reerguer após a partida, sempre tão dolorosa.
Sua esposa, a psicanalista Claudia Epelman (1959-2020), fundou a Tucca ao seu lado e ajudou a difundir o tratamento humanizado de pacientes com câncer no Brasil. Não quer dividir um pouco do papel dela para o cuidado com esses jovens?
Essa é sempre a hora mais difícil da entrevista, porque eu tive o privilégio de ter na vida alguém que, além de ser minha companheira, era uma pessoa que acreditava em tudo isso sobre o que estamos falando.
Meus filhos sempre dizem que tivemos um terceiro rebento, chamado Tucca. E quem tiver a oportunidade de conhecer os nossos projetos e instalações vai perceber isso.
Há muita coisa com o DNA da Claudia, com esse olhar para o acolhimento, para o atendimento das reais necessidades dos pacientes e de seus familiares. E ela incentivava o envolvimento de todos os profissionais no apoio psicológico a quem está ali precisando de tratamento. Porque temos que dar conta de minimizar o sofrimento e o impacto da doença na vida dessas crianças.
O hospice [centro de assistência voltado a doentes em estágio terminal] é fruto do legado dela e um exemplo disso. E o que a gente recebe de retorno das famílias é gratidão, porque a família sabe que tudo que era possível foi feito e que elas receberam o melhor do melhor — de tecnologia, de acolhimento, de assistência.
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O diagnóstico precoce é um dos fatores essenciais para aumentar as chances de cura do câncer. Mas há desafios, e os próprios profissionais de saúde nem sempre estão capacitados a reconhecer os casos, felizmente mais raros. O que é preciso fazer para mudar esse cenário?
Eu tenho um olhar bem próprio sobre isso. Na minha visão, ter um diagnóstico precoce é importante, sim, mas ter um diagnóstico precoce e não ter onde ser atendido corretamente não adianta. É um erro achar que só a identificação prematura da doença cure.
É necessário ser assertivo e encaminhar a criança rapidamente para um hospital que tenha condições de fazer todos os exames necessários hoje em dia — o histológico, o molecular, o genético, os de imagem.
Na Tucca, inauguramos em 2018 o Laboratório de Patologia Molecular para atender às novas demandas da medicina e promover um diagnóstico mais preciso e individualizado. A estrutura é a primeira do tipo na zona leste.
Estamos tentando levar para a periferia da cidade os mesmos recursos que são encontrados em países desenvolvidos, cujas taxas de cura se aproximam de 100% para alguns tipos de câncer.
Além disso, estamos prestes a introduzir a biópsia líquida, que é uma forma menos invasiva de avaliar a presença e o retorno do tumor pelo sangue.
Quais outros fatores influenciam o sucesso do tratamento?
Além de ter todas essas ferramentas à mão, deve-se levar em consideração outro ponto: há cânceres na criança e no adolescente que são mais agressivos, independentemente do estágio. Então, quando falamos em diagnóstico precoce, também falamos sobre resolutividade.
É essencial pensar nisso porque quem faz o diagnóstico não somos nós, os oncologistas. São os clínicos, os pediatras, os médicos da atenção primária. Eles precisam, sim, ser treinados, mas também precisam ter para onde encaminhar.

O tratamento do câncer infantil evoluiu na mesma proporção que o do câncer entre adultos?
Essa é outra dificuldade: a falta de investimento em pesquisa clínica para novas drogas voltadas às condições que acometem crianças e adolescentes. O que podemos fazer para que a indústria farmacêutica se interesse por isso? Porque, do ponto de vista comercial, não é tão atrativo. São doenças raras, apenas 3% dos pacientes oncológicos são crianças ou adolescentes.
Mas o governo também tem o papel de incentivar esse interesse, atraindo e obrigando as empresas a realizarem mais ensaios clínicos no Brasil, especialmente para aquelas enfermidades cujos tratamentos disponíveis estão aquém do esperado.
Além disso, as pesquisas também são uma forma de dar acesso a terapias de alto custo, pois o estudo não pode cobrar nada de ninguém — nem do hospital, nem do paciente.
Outra necessidade é investigar melhor a população brasileira, que é bastante miscigenada e tem suas próprias características, diferenciando-se dos povos da Europa e da América do Norte, que são os mais estudados hoje em dia.
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Uma vez aprovados, os novos medicamentos costumam chegar ao mercado com preços exorbitantes. Na sua opinião, o que pode ser feito para tornar o acesso a esses fármacos sustentável para o sistema?
Mais doação e mais incentivo na pesquisa são necessários para que os pacientes tenham acesso aos medicamentos essenciais ao tratamento. Temos bons instrumentos de incorporação de novas tecnologias, mas precisamos garantir também que eles funcionem de forma ágil.
Para o governo, hoje há a possibilidade de assinar acordos de compartilhamento de risco, que permitem que os pagamentos das medicações sejam feitos à medida que a eficácia é comprovada e alguns marcos do tratamento são atingidos.
Hoje há mil formas também de trazer pesquisas para cá — e o Brasil tem profissionais capacitados e condições para tanto. Precisamos mostrar que somos capazes de trazer bons resultados.
Eu enxergo a indústria farmacêutica como um grande parceiro, sem dúvida. Só precisamos trabalhar para modernizar e agilizar as formas de acesso.
Quais são as terapias que, na sua visão, devem mudar o rumo da oncologia pediátrica?
Algumas pessoas me perguntam: “Quando vai chegar a cura para o câncer?” Vou responder: já chegou! Ou melhor, já chegaram, porque hoje há várias terapias eficazes no combate à doença. O problema é que elas não chegaram a todos.
Quando você conhece tudo o que está disponível hoje e consegue utilizar da melhor forma — para o paciente certo, no tempo certo —, você terá ótimos resultados. Hoje, é possível curar 80% dos pacientes.
A grande maioria das crianças não vai precisar de ferramentas como as células CAR-T [tipo de imunoterapia em que as células imunológicas do paciente são reprogramadas em laboratório para atacar os tumores].
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Mas haverá espaço para essas terapias mais recentes também, não?
Quanto mais rápida é a resposta ao diagnóstico, menores são as chances de ter que recorrer a essas terapias. Mas são elas que podem dar maior esperança aos 20% que não encontram a cura hoje. São os casos refratários, com retorno do tumor e baixa resposta aos medicamentos convencionais.
Eu sou do tempo em que só existia quimioterapia, que ainda hoje é uma classe importante. Depois vieram os anticorpos monoclonais, as terapias-alvo, que só podem ser usadas quando se conhece um gene alterado.
Isso reforça a importância de ter acesso aos exames diagnósticos e a uma equipe capacitada para reconhecer as necessidades de cada paciente — e também obcecada pela perfeição. É assim que chegamos à cura.
No último congresso nacional da Sobope, você foi homenageado por sua contribuição à área, pela criação da Tucca e pelos mais de 40 anos de prática clínica. O que diria aos profissionais que estão começando agora?
Os problemas de hoje são os mesmos de quatro décadas atrás: o acesso aos exames e terapias ainda é restrito. Quando se tem recursos, é possível desfrutar de excelentes resultados.
A essência da medicina também continua a mesma: você tem que ir atrás daquilo que acredita que é o melhor para o paciente. O que mudou é que agora é muito mais fácil acompanhar a inovação e a tecnologia.
O que sonha em deixar como legado para o cuidado com as crianças com câncer e a saúde no Brasil?
Fazer medicina para mais pessoas é muito melhor do que fazer para meia dúzia. É por isso que eu enveredei minha vida nessa direção — e a Claudia foi junto comigo.
Assim como o dr. Jaffe dizia que queria que seus alunos pensassem melhor do que ele, e não como ele, eu desejo que as próximas gerações sejam ainda mais inquietas do que sou. Porque é um privilégio poder curar uma criança com câncer, e nós precisamos trabalhar para que a cura chegue a todas elas.
Ainda acho que posso contribuir mais, ainda tenho a inquietação de querer fazer mais. Cada criança e adolescente são únicos. É tudo ou nada. E é preciso fazer com que hoje seja melhor do que ontem.