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Alimente-se sem perder o controle

O medo do vírus e o confinamento têm jogado o estresse nas alturas e muita comida para dentro do prato. Como entrar nos eixos sem dietas malucas

Por Thaís Manarini
Atualizado em 23 jun 2020, 19h23 - Publicado em 20 jun 2020, 09h00
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  • A esmagadora maioria de nós pode afirmar, sem receio de soar exagerada, que está vivendo uma realidade sem precedentes. Há quem diga que só dá para comparar a pandemia do novo coronavírus com o que aconteceu com a gripe espanhola, que teria matado ao redor de 50 milhões de pessoas pelo planeta há 100 anos. Lá como cá, a humanidade precisou ficar em casa para minimizar a circulação do vírus. Só que o confinamento em si tem seus efeitos colaterais. Um dos mais comentados e apontados por anônimos e celebridades nas redes sociais é o descontrole alimentar. Enquanto os passeios na rua estão mais restritos, a cozinha e a despensa viraram o point do momento. E o resultado disso pode ser visto em cima da balança ou na frente do espelho.

    Parte desse ato incontrolável de abre e fecha da geladeira pode ser explicado pelo estresse do isolamento — que inclusive tem preocupado especialistas de várias áreas mundo afora. Recentemente, uma revisão de 24 estudos publicada no jornal científico The Lancet pelo Imperial College London, na Inglatera, alertou que “o impacto psicológico da quarentena é amplo, substancial e duradouro”. Entre os fatores de tensão, eles listam o medo da pandemia, a duração do confinamento, as perdas financeiras, as informações contraditórias… Tudo isso, acredite, pode acabar em pizza. Ou hambúrguer, brigadeiros, salgadinhos e outros petiscos.

    Quem ajuda a explicar esse intrincado circuito nervoso, herdado de nossos ancestrais, é a psiquiatra Christina de Almeida dos Santos, secretária da Comissão de Transtornos Alimentares da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP): “Quando estamos diante de um perigo, o organismo se prepara para nos defender. Para isso, ele libera hormônios como adrenalina e cortisol na circulação”, descreve. Com o impulso dessas substâncias, estoques de glicose são jogados no sangue — tudo para gerar energia e facilitar uma reação de defesa.

    No mundo moderno não é diferente: o principal gatilho desse processo é o estresse. Quando ele diminui, vem um apetite cavalar para repor a reserva de combustível utilizada. “Aí vamos atrás de itens com alta densidade calórica, como os ricos em açúcar, gorduras e carboidratos”, relata Christina, que também é coordenadora da ATA — Atenção aos Transtornos Alimentares, de São José dos Pinhais (PR). Ocorre que, devido à pandemia de Covid-19, a doença provocada pelo coronavírus, o alarme do estresse pode ficar ativo quase 24 horas por dia, culminando em uma procura quase constante por comida apetitosa.

    Esse não é o único caminho que leva até o armário das guloseimas. No lugar de tensão, podem surgir tristeza, insegurança, frustração, tédio e desespero. Ao passar por essa montanha-russa de emoções, uma porção de gente é atraída por aquilo que os estudiosos chamam de comer emocional. “Ele acontece quando nos alimentamos não por fome fisiológica, mas, sim, para buscar conforto e alívio em resposta a esses sentimentos”, esmiúça a nutricionista Ana Feoli, professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e coordenadora dos grupos de pesquisa em estilo de vida e saúde da instituição.

    No fim de maio, o programa Vigilantes do Peso divulgou um levantamento sobre hábitos na pandemia que evidencia bem essa situação. Ele foi baseado em um questionário respondido por 2 289 pessoas de todo o território brasileiro — 96,7% relataram estar em isolamento social, sendo que 87,1% viviam confinadas havia mais de um mês. Os dados indicam que 27% dos indivíduos se sentiam descontrolados e ansiosos e, por isso, admitiam que andavam comendo “muito mais do que o normal”. Segundo o nutricionista do programa Matheus Motta, trata-se da tal fome emocional. “O indivíduo come para suprir um sentimento”, ressalta. Mas ele já esperava ver mudanças nos hábitos dos indivíduos à mesa. “Quando há alteração na rotina, a alimentação segue esse movimento”, explica.

    A nutricionista Lara Natacci, pós-doutoranda na Universidade de São Paulo (USP) e estudiosa da relação entre alimentação e emoções, também acha compreensível que a reviravolta no dia a dia acabe interferindo na dieta e resultando no surgimento da confusão entre fome física e vontade de comer. “Fora que estamos passando mais tempo dentro de casa e, consequentemente, perto da cozinha”, lembra. “Isso favorece tanto o comportamento de comer mais quanto o de se alimentar em horários diferentes”, acrescenta Lara. Nasce, assim, o famoso perfil beliscador.

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    O outro lado do apetite

    Enquanto tem gente que procura refúgio na comida, há uma parcela que se vê desestimulada a se alimentar na quarentena. Ou pior: decide se impor uma dieta rigorosa na tentativa de controlar o peso. Esse pessoal também merece um olhar cuidadoso. “Há risco de o sistema imunológico sair abalado”, alerta Lara Natacci, nutricionista de São Paulo. “Uma alimentação restrita pode não entregar os nutrientes necessários para o metabolismo funcionar direito”, justifica. Para o nutricionista Matheus Motta, do programa WW Vigilantes do Peso, também não é a melhor ocasião para definir grandes metas, como virar vegetariano. “Se quiser realizar mudanças, o ideal é fazê-las aos poucos”, orienta. Assim, cai a probabilidade de se frustrar. De emoções fortes, bastam as desencadeadas pela pandemia em si.

     

    Na pesquisa do Vigilantes do Peso, 47% dos entrevistados admitiram ser mais difícil manter a alimentação equilibrada durante a quarentena justamente porque acabam comendo qualquer coisa que esteja disponível. Motta lembra que, se as guloseimas dão sopa em casa, é porque elas foram compradas. Portanto, o impacto emocional na dieta fica evidente desde a ida ao supermercado. “Nesses dias, durante as compras, tive a impressão de que faltava leite condensado”, exemplifica o nutricionista.

    Não é coincidência. Ao investigar os hábitos de mais de 5 mil consumidores, pesquisadores do Centro de Inteligência do Leite da Embrapa Gado de Leite constataram que, depois do início da crise da Covid-19, 14% das famílias aumentaram o consumo desse ingrediente obrigatório na receita de brigadeiro. A manteiga, outro item indispensável em sobremesas, foi mais buscada por 16% dos respondentes. São dados que trazem à tona o maior interesse por alimentos associados ao prazer.

    Aliás, essa é outra característica da fome emocional: há desejo por receitas consideradas superapetitosas. Já reparou que ninguém fica fora dos eixos diante de brócolis ou maçã? “Os alimentos mais palatáveis, como os açucarados, elevam os níveis de dopamina e serotonina, neurotransmissores que atuam nos sistemas de recompensa, prazer e bem-estar”, ensina Ana. “Mas as sensações são momentâneas”, acrescenta a professora.

    Não à toa, esse modo de comer, baseado na tentativa de lidar com os sentimentos, ocorre repetidamente e se torna mais associado a um descontrole alimentar. Essa foi uma das conclusões de Lara em sua pesquisa de mestrado. A nutricionista ainda conseguiu identificar, por meio de questionários, que as fontes de carboidratos eram realmente as grandes promotoras de alívio emocional entre os voluntários. Vale lembrar que, dentro do corpo, esse nutriente é convertido em açúcar. “Para muitas pessoas, ele remete a conforto”, interpreta. Ela própria carrega essa memória. “Quando eu chorava, lembro da minha mãe molhando a chupeta no açúcar”, diz.

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    Enxergar na comida um atalho para a felicidade está longe de ser um pecado, diga-se de passagem. Para a nutricionista Sophie Deram, autora do livro O Peso das Dietas (clique para comprar), um prato gostoso faz a gente se sentir vivo, alegre e seguro. “Não há nenhum problema em decidir preparar uma receita aconchegante”, tranquiliza. Ou até mesmo ligar naquele restaurante e pedir para entregar o seu prato favorito. O sinal de alerta deve acender, porém, quando esses episódios deixam de ser conscientes e planejados. É a urgência que fala mais alto. “Aí temos o comer transtornado”, crava Sophie.

    Há outras pistas para descobrir se, mais do que fonte de prazer, os alimentos viraram uma muleta emocional. De acordo com a nutricionista Marcela Kotait, coordenadora da equipe de nutrição do Ambulatório de Anorexia Nervosa do Programa de Transtornos Alimentares (Ambulim) do Hospital das Clínicas de São Paulo, a maneira de comer entrega muita coisa. “Ela ocorre com mais voracidade, com menos mastigação e não há escolha específica de alimentos nem programação”, lista. Ou seja, muito diferente daquela vontade genuína que faz a gente resolver que o almoço do próximo domingo será uma bela feijoada. “Além disso, normalmente há consumo de uma grande quantidade de alimentos, sem oportunidade de sentir o gosto e apreciá-los”, observa Ana. E o pior: ao fim da comilança, a sensação de culpa costuma emergir.

    Rota desgovernada

    Na visão de Sophie, há um grupo mais suscetível a perder a linha neste momento. “São as pessoas que sempre travaram uma briga com a comida”, aponta. A nutricionista informa que viver de restrições mexe com o cérebro, que acaba desencadeando mais apetite ainda. Agora, com fortes emoções e o acesso fácil a guloseimas, cresce a probabilidade de uma autoliberação seguida de descontrole. “É como se a comida virasse a coisa mais importante no ranking da recompensa”, analisa.

    Quem segue a mesma linha de raciocínio é Marcela: “Comportamentos restritivos elevam o risco de episódios de compulsão”. Na contramão, pessoas que tinham uma relação saudável com os alimentos, no sentido de entender o que as motivava a comer, tendem a passar menos apuros em um período turbulento como este. “Esses indivíduos construíram um vínculo mais profundo com a comida”, explica a nutricionista do Ambulim. Outro traço perceptível nessa turma que não cai de boca nos beliscos é uma maior autonomia. Afinal, não há uma visão padronizada de dieta. “Quando você entende que pode comer de tudo, isso naturalmente acontece de forma mais equilibrada”, interpreta a especialista.

    Mas Marcela reconhece que, em um contexto tão peculiar quanto o atual, outros perfis (não só quem vivia focado na dieta rígida) se tornam mais propensos ao abuso alimentar. De novo: na hora de ver um filme, ninguém precisa abdicar da pizza e da taça de vinho. Está tudo bem se permitir gostosuras e até exagerar vez ou outra. O que preocupa é a frequência e a intensidade com que as refeições volumosas acontecem, servindo de tapa-buraco emocional. “A comida não pode virar protagonista da quarentena”, resume a expert do Ambulim.

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    (Ilustração: Pevê/SAÚDE é Vital)

    Se ficar atrás de comida se transformar na atividade central deste período, uma das consequências mais óbvias pode ser o acúmulo considerável de peso — potencializado pelo fato de que nem todo mundo tem conseguido se manter engajado numa rotina de atividade física dentro de casa. Em atendimentos online, Lara já identificou essa queixa. Na verdade, ela vem sendo reportada por gente do mundo inteiro. “O ganho de peso tem repercussões físicas e mentais”, esclarece Christina, da ABP. Do ponto de vista psicológico, a médica menciona a insatisfação com a imagem corporal, capaz de contribuir para o surgimento de quadros de ansiedade e depressão ou agravá-los. Fora isso, existe o famoso elo entre a obesidade e diversas doenças, como diabetes, hipertensão, gordura no fígado…

    Hoje, o que tem se ressaltado bastante é a influência do peso na própria Covid-19. É que diversas publicações científicas colocam a obesidade como um fator de risco relevante para desenvolver as formas mais graves da doença causada pelo coronavírus. Um desses trabalhos, conduzido por cientistas da Alemanha, do Reino Unido e dos Estados Unidos e divulgado na Nature Reviews Endocrinology, traz algumas prováveis explicações. Segundo os autores, a obesidade é relacionada a disfunções respiratórias, a exemplo de maior resistência nas vias aéreas, prejuízos na troca de gases e fraqueza nos músculos envolvidos no ato de respirar. Essas condições facilitariam o ataque do vírus aos pulmões. Muitos especialistas recordam ainda que, por si só, a obesidade incita um estado de inflamação no corpo, o que seria exacerbado na presença do Sars-CoV-2.

    Por essas e outras, faz sentido encontrar maneiras de viver esse “novo normal” com mais equilíbrio. Principalmente porque ninguém sabe ao certo por quanto tempo o agente infeccioso vai atormentar o planeta — e novas temporadas de confinamento podem ser essenciais até a descoberta de um remédio eficiente ou do surgimento de uma vacina contra ele. “É preciso aprender a se reconectar e se escutar. O ideal é permanecer longe da mentalidade de dieta restrita”, aconselha Sophie.

    Uma sugestão de Lara é realizar um planejamento alimentar que não envolva só as refeições principais, mas os lanchinhos também. “Caso contrário, abrimos o armário e comemos o que tem lá”, argumenta. Aliás, essa programação tem tudo para tornar a lista de compras automaticamente mais equilibrada. Outra estratégia válida é deixar à mão alimentos como frutas, oleaginosas, iogurte, e por aí vai. “O primeiro a ser visto é sempre o escolhido”, brinca. Então, que seja uma banana em vez de um pacote de bolachas recheadas, certo?

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    Apesar de a rotina de uma parcela da população estar do avesso, mais uma medida essencial é tentar colocar o mínimo de ordem na bagunça. “Tenho paciente que está almoçando às 17 horas e jantando às 2 da madrugada”, compartilha Christina. Ela diz que é importante manter os horários de certas atividades mais definidos. Nessa programação, a médica chama atenção especial para o sono — outro hábito que anda todo desregulado atualmente.

    Nesse sentido, pesquisadores da Universidade Grand Canyon, nos Estados Unidos, chegaram a incluir o descanso inadequado entre os fatores de risco para o ganho de peso na quarentena. Isso depois de avaliarem questionários que foram enviados para cerca de 1 200 pessoas via Facebook. Não é de agora que se estabelece essa conexão. Segundo Christina, já foi demonstrado que a privação de sono reduz os níveis do hormônio da saciedade, enquanto aumenta os da fome. Resultado: um apetite indomável.

    Não dá para se esquecer do grande calcanhar de aquiles da comilança: o turbilhão de sentimentos impulsionado pelo isolamento. Para lidar com eles, uma das recomendações é investir em válvulas de escape que não fiquem para os lados da cozinha. “Que tal arrumar os armários, ligar para os amigos, ouvir música ou tomar um banho quente?”, cita Christina. “Aposte em atividades de relaxamento, como meditação”, reforça Lara.

    Para a hora das refeições, a dica é se alimentar com atenção plena. “Preste atenção na cor, no sabor, na textura e no aroma do que está comendo. Dedique-se exclusivamente a esse momento”, receita Ana. Há fortes indícios de que evitar distrações à mesa favorece a noção da saciedade e reduz a probabilidade de um consumo exagerado. Mais: se curtir, aventure-se entre panelas e fogões. “Resgate receitas de família”, encoraja a professora da PUC-RS. Quem se arrisca a cozinheiro tira mais proveito de ingredientes frescos, minimamente processados e vantajosos para a saúde, criando também uma ligação de mais harmonia com a comida.

    Se estratégias assim não forem suficientes para aplacar a fissura por mastigar o dia inteiro, compensa procurar auxílio especializado. Durante a pandemia, o Conselho Federal de Nutricionistas liberou os atendimentos online — e há médicos e psicólogos fazendo consulta a distância também. “Nosso papel é, mais do que nunca, auxiliar as pessoas a melhorarem sua relação com a comida”, defende Ana. Para Marcela, do Ambulim, o primordial é buscar profissionais que tenham experiência em lidar com transtornos alimentares. Tudo para evitar uma prescrição de dieta nesta fase. Para quem anda devorando as emoções, o buraco é mais embaixo.

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    Compulsão é outra coisa

    Embora a pandemia do novo coronavírus tenha contribuído para os episódios de descontrole frente à comida, isso não significa que o indivíduo sofra do transtorno de compulsão alimentar. Esse quadro é definido por ataques de gula que levam ao consumo de uma quantidade absurda de comida (às vezes a ingestão chega a 15 mil calorias). Eles duram poucos minutos e, em geral, são escondidos. Leva-se em conta ainda a frequência dos acessos de exagero. “O diagnóstico acontece quando há um episódio por semana durante pelo menos três meses”, esclarece Christina, da ABP. “Nesses casos, é fundamental ter o apoio de nutricionista, psicólogo e psiquiatra, todos especializados em transtornos alimentares”, orienta Marcela, do Ambulim. Na pandemia, quem convive com esse ou outro quadro (como anorexia) deve manter o tratamento à risca.

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