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Síndrome do intestino irritável: entenda a relação com o estilo de vida

Marcada por desconfortos abdominais, ela confunde os pacientes. Mas um ponto começa a se esboçar: nosso comportamento impacta a prevenção e o controle

Por Regina Célia Pereira (texto), Estúdio Coral (design e ilustração), Gustavo Arrais (foto), Itcha Estúdio (Arte em crochê)
7 Maio 2024, 08h54
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Estima-se que 10% da população sofre com gases, inchaços e dores abdominais da síndrome do intestino irritável (Gustavo Arrais; Arte em crochê: Itcha Estúdio; Ilustração: Letícia Raposo/Estúdio Coral/Veja Saúde)
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Até pouco tempo atrás, o órgão em formato de tubos emaranhados que ocupa grande parte da barriga vivia envolto em mistérios. Achavam que sua atuação se limitava à digestão, à absorção de nutrientes e, claro, à eliminação das sobras. Graças ao empenho de inúmeros cientistas, porém, descobriu-se que o intestino tem conexões diretas com a imunidade e a saúde mental.

Na verdade, quando ele desanda, o corpo todo padece. Mas, complexo por natureza, aquele labirinto armazenado no ventre segue despertando dúvidas, angústias e confusões. Uma das principais diz respeito a uma condição cada vez mais diagnosticada nos consultórios, a síndrome do intestino irritável (SII).

Estima-se que ela atormente ao menos 10% da população com gases, inchaços e dores abdominais. Não raro, o quadro aparece embolado em meio à suspeita de outras encrencas, como intolerâncias alimentares, doenças inflamatórias e até verminoses. Só o olhar meticuloso do médico e alguns exames conseguem desfazer enganos — um processo que nem sempre é simples e rápido.

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Diagnóstico e sintomas

“A síndrome do intestino irritável é um distúrbio funcional, definido por parâmetros baseados em sintomas e na exclusão de causas orgânicas para essas manifestações”, caracteriza o problema o cirurgião do aparelho digestivo Flávio Kawamoto, do Hospital Moriah, em São Paulo. Ou seja, os testes não apontam questões anatômicas ou lesões físicas no órgão.

Para o diagnóstico certeiro, os experts lançam mão de um método conhecido como classificação Roma, que abarca a ocorrência de desconfortos recorrentes, ao menos uma vez na semana, por três meses. “Dor relacionada à evacuação, assim como alteração na frequência e na aparência das fezes, são alguns dos critérios considerados”, pontua a médica Cristiane Koizimi, da Sociedade Brasileira de Coloproctologia.

Diarreia e prisão de ventre costumam dar as caras e, ainda que cada uma se manifeste com maior frequência que a outra, de acordo com o perfil, não é raro que se alternem. O mesmo indivíduo pode experimentar os dois tipos de desarranjo. As dores também variam: há quem relate cólicas insuportáveis e quem reporte um incômodo que quase passa batido.

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Os sintomas tendem a surgir após a ingestão de certas comidas ou quando o estresse toma conta (Editoria de Arte/Veja Saúde)
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Para alguns, a ida ao banheiro ajuda a dar aquela aliviada. Para outros, nada feito. “É comum pacientes relatarem que a evacuação piora os sintomas”, diz o gastroenterologista Álvaro Delgado, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, na capital paulista.

Se a visita ao trono pode desatar aflições em uma parcela das pessoas com SII, para a maioria delas o principal gatilho é a própria comida. Mas o médico Durval Ribas Filho, presidente da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran), faz questão de acrescentar outro componente das crises na barriga, o estado emocional.

“Tensão, nervosismo e ansiedade favorecem problemas no trato digestório”, afirma. Afinal, o que dá origem a esse imbróglio todo? Outra vez, há um balaio de hipóteses. Existem indícios de influências genéticas que levariam a uma hipersensibilidade nas terminações nervosas das paredes do intestino, que controlam os movimentos locais.

Nesse caso, estímulos mínimos, como fazer um lanche, seriam capazes de disparar respostas exacerbadas. O DNA não está sozinho na jogada.

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Bem-estar global

Um novo estudo, publicado pela Sociedade Britânica de Gastroenterologia, destaca o papel do estilo de vida na prevenção (ou no surgimento) da síndrome. Analisando dados de dezenas de milhares de cidadãos, os pesquisadores descortinaram cinco hábitos essenciais para reduzir o risco de o problema aparecer

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Anote aí: não fumar, dormir bem, praticar exercícios, ter uma dieta balanceada e não abusar do álcool. Ora, esse conjunto de atitudes, desvelado pelos estudiosos, está acima de qualquer questionamento. Ninguém contesta que não somente o intestino mas todo o corpo sai ganhando.

Porém, na contramão dos conselhos, levantamentos já associam o aumento na incidência de males gastrointestinais à popularidade dos maus hábitos — não apenas à mesa. “O estilo de vida saudável é a base para evitar o desenvolvimento de qualquer doença crônica ou degenerativa”, sentencia Ribas Filho.

Quem assina embaixo é o time de universidades de Hong Kong que conduziu a análise publicada na revista médica Gut. Eles avaliaram informações de 64 268 pessoas, obtidas junto ao UK Biobank, banco de pesquisa que reúne dados de mais de meio milhão de britânicos. Ao longo de 12 anos, em meio a essa população, composta de homens e mulheres de 37 a 73 anos, foram relatados quase mil casos de intestino irritável.

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Nova pesquisa, com dados de mais de 60 mil pessoas, elenca cinco comportamentos para reduzir o risco de intestino irritável (Gustavo Arrais; Arte em crochê: Itcha Estúdio; Ilustração: Letícia Raposo/Estúdio Coral/Veja Saúde)

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Cruzando os pontos, os cientistas concluíram que aquelas cinco atitudes saudáveis estavam ligadas a um risco significativamente menor de encarar o distúrbio. “Mas associação não significa causalidade, isto é, pode existir o elo entre os indicadores de estilo de vida e o desenvolvimento da SII, mas não podemos dizer que um leva ao outro”, pondera a nutricionista Natasha Mendonça Machado, pesquisadora do Laboratório de Nutrição e Cirurgia Metabólica do Aparelho Digestivo da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

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“Embora o estudo apresente um número grande de pessoas, acompanhadas por bastante tempo, existem algumas falhas de metodologia, ainda que, no geral, o trabalho suscite boas discussões”, interpreta Cristiane. O que incomoda os especialistas é que não é possível cravar que existem cinco regras mágicas contra a SII. É uma junção desses e outros hábitos que faz a diferença na saúde intestinal.

“Não dá para isolar um ou outro comportamento”, salienta a coloproctologista. De qualquer forma, os mandamentos observados têm lá sua influência no aparelho digestivo. A qualidade do sono, por exemplo. Dormir de sete a nove horas por noite não só promove o reparo físico como o equilíbrio mental. “Isso ajuda a melhorar o humor”, nota Kawamoto, fazendo referência a um estado bem-vindo ao intestino.

A prática de atividade física também é ovacionada no estudo. É que mexer o corpo, na academia, na quadra ou na rua, correndo ou pedalando, dá um baita estímulo para o funcionamento intestinal — sem falar que repercute também no status emocional.

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Segundo cérebro

Zelar pela cuca, aliás, faz parte do tratamento da SII. “O estresse crônico desencadeia uma série de disfunções no organismo”, ressalta Ribas Filho. Não à toa, sessões de psicoterapia e medicamentos para o controle da ansiedade podem ser indicados aos pacientes. “Cada vez mais se consolida essa noção de que a SII é caracterizada por uma desordem do eixo cérebro-intestino”, aponta Delgado.

E, como você pode imaginar, até a microbiota participa da história. Os trilhões de bactérias, fungos e leveduras em meio às nossas células propiciam um ecossistema dinâmico, que promove a síntese de substâncias essenciais, incluindo neurotransmissores. Um deles é a serotonina, envolvida na emissão de sinais que chegam ao cérebro, por meio do nervo vago.

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Ela não só colabora para a motilidade intestinal como para aquela sensação de plenitude. Por essas e outras, a nutricionista Patrícia Paiva, do Centro Especializado em Aparelho Digestivo do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, defende com ênfase: “É fundamental manter o equilíbrio da microbiota”. Essa comunidade sai ganhando — e o corpo humano também. 

Na literatura científica, não faltam artigos ratificando a importância de cuidar da microbiota intestinal em prol da saúde e da prevenção de doenças, não apenas no sistema digestivo. Tem até evidências de uma proteção cardiovascular e de uma ação antiobesidade. Ocorre que, por causa de inúmeros fatores — que vão de dieta desregrada a uso de antibióticos —, a flora pode entrar em desarmonia.

É a disbiose, um quadro que abre brechas para um maior contato entre as mucosas do intestino com substâncias nocivas. Resultado: mais gases, desconfortos e afins. Portanto, quando se trata de SII, a vigilância com esse ecossistema deve ser redobrada. Como cigarro e álcool desgovernam a região, a prudência manda manter distância deles — como reforça o trabalho de Hong Kong.

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Menu deve ser adaptado e individualizado para aliviar sintomas do problema (Gustavo Arrais; Arte em crochê: Itcha Estúdio; Ilustração: Letícia Raposo/Estúdio Coral/Veja Saúde)

Tratamentos

Além do acolhimento às questões emocionais, já citado, o manejo da síndrome contempla outros tipos de medicamentos, que atenuam dores e gases. Fora isso, é preciso garantir um contingente permanente daquelas bactérias benéficas dentro do abdômen — geralmente a partir de produtos específicos. “Os probióticos costumam ser recomendados”, conta Patrícia. Sempre escolhidos a dedo, de acordo com o perfil de cada paciente.

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Já iogurtes e leites fermentados nem sempre são tolerados por todo mundo. “Mas existem opções de suplementos e alternativas como o kefir”, comenta a nutricionista. À parte esse rol de medidas, a atenção com a dieta é o elemento protagonista no controle da SII. Mas, antes de sair por aí mudando a alimentação, convém ouvir alguns recados.

“É importante ter um diagnóstico correto após exame clínico e testes que auxiliam a descartar outras doenças”, frisa Natasha. A pesquisadora da USP comenta que muitas pessoas têm se autodiagnosticado e alterado o cardápio por conta própria, o que só traz prejuízos.

“Excluir glúten, lactose ou qualquer outro componente sem orientação pode induzir carências nutricionais e distúrbios alimentares”, justifica. A estratégia mais conhecida para frear os sintomas da SII é a dieta pobre em FODMAP. Trata-se de uma intervenção individualizada, com período certo para acabar — não é para a vida toda!

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O acrônimo remete aos efeitos de um grupo de moléculas da família dos carboidratos que podem bagunçar um intestino sensível demais. Desmembrando: a letra F designa a fermentação, o O vem de oligossacarídeos, o D refere-se aos dissacarídeos, o M aos monossacarídeos e, por fim, o P é a inicial de polióis. Uma verdadeira sopa de letrinhas, que pode causar estranheza, mas ajuda os pacientes a arrumar o cardápio.

As pesquisas mostram que, quanto mais FODMAP houver na rotina, maiores as chances de desconfortos. Na lista de alimentos ricos nesses compostos, aparecem vegetais preciosos para a saúde, mas que, entre as vítimas da SII, não caem tão bem — mais um motivo para só cortar da despensa após o diagnóstico médico.

Em comum, feijões, alho, aspargo, alcachofra, mel, maçã, couve-flor, abacate e cogumelos possuem alta capacidade de fermentação. Significa que não são totalmente quebrados pelas enzimas digestivas e atraem água durante a passagem pelo intestino delgado. Então seguem para o cólon, onde as bactérias fazem a festa.

É nessa folia que são gerados os gases que distendem e cutucam a barriga. Nos últimos tempos, muita gente vem usando as tabelas de FODMAP disponíveis na internet sem supervisão profissional. Mas não é por aí. Até a forma como o alimento é manipulado na cozinha pode interferir no teor das substâncias que irritam o intestino — sim, técnicas como o remolho de grãos diminuem a carga.

“Fatores como o amadurecimento e as próprias características do vegetal também influenciam a quantidade de FODMAP”, explica Natasha. Um exemplo: há diferenças na concentração desses componentes no talo e na flor dos brócolis. No fundo, não tem tanto mistério: com boas pitadas de cuidado e orientação personalizada, o trânsito tende a fluir e o alívio logo vem.

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Quando há inflamação no pedaço

Há um conjunto de problemas que podem ser confundidos com a síndrome do intestino irritável. Falamos das doenças inflamatórias intestinais, as DIIs. Apesar da sigla parecida com SII, existem diferenças gritantes entre os dois quadros, a começar pela inflamação crônica, que não é vista no segundo caso.

As duas principais DIIs são a doença de Crohn, que pode atingir diversas áreas em todo o trato gastrointestinal, e a colite ulcerativa, marcada por lesões no cólon e no reto. Dores, febre, fraqueza e anemia estão entre os prejuízos provocados pela dupla.

Não confunda com as intolerâncias!

Uma bagunça, com informações desencontradas, leva muita gente a confundir a síndrome do intestino irritável com intolerâncias alimentares. Um exemplo clássico é quando o organismo não processa a lactose, o açúcar do leite, por deficiências enzimáticas, e surgem gases, cólicas e inchaços, num quadro parecido com o da SII.

A sensibilidade ao glúten, proteína presente no trigo e outros cereais, também leva a sintomas similares. “Mas há exames, inclusive genéticos, que ajudam a diferenciar as condições”, diz o médico Flávio Kawamoto.

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