Fermentação (cada vez mais) natural
O levain furou a bolha das padarias artesanais e chegou à indústria e à casa das pessoas. Botamos a mão na massa e apuramos se ele rende pães mais saudáveis
Quando se nota, através do pote de vidro, o surgimento das primeiras bolhas de ar na mistura de farinha de trigo e água iniciada dias antes, é sinal de que a fermentação natural já começou.
Leveduras e bactérias, as estrelas desse processo bioquímico, já estão a pleno vapor, multiplicando-se e alimentando-se dos açúcares da farinha, que são transformados em ácidos, álcool e gás carbônico, essenciais para dar sabor e fazer o pão crescer.
As cenas desse filme são cada vez mais vistas e dirigidas nos lares dos brasileiros — e nas padarias e na indústria alimentícia. Afinal, a fermentação natural renasceu feito um fenômeno pop nos últimos anos, conquistando pessoas que buscam receitas mais saborosas e saudáveis e querem botar a mão na massa.
“Nesse tipo de fermentação, ácidos como o lático e o acético, que marcam presença também em produtos como iogurte e vinagre, proporcionam propriedades sensoriais únicas ao pão”, explica o nutricionista Igor Ucella, doutor em ciência dos alimentos pela Universidade de São Paulo (USP).
Embora os astros microscópicos sumam de cena depois que o pão é assado, sua passagem deixa benefícios à saúde dos fãs. Durante o longo processo de fermentação natural, as leveduras e bactérias do levain, como o fermento é conhecido entre chefs e iniciados, digerem o glúten, a proteína presente na farinha de trigo que faz a receita vingar.
Isso facilita a vida do nosso aparelho digestivo e o equilíbrio dos níveis de açúcar no sangue. “Alguns estudos apontam que as massas fermentadas oferecem um índice glicêmico menor que o das tradicionais, ou seja, com elas diminui um pouco a velocidade de absorção dos carboidratos”, conta a nutricionista Maristela Strufaldi, mestre em ciências pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Se o pão for à base de farinhas integrais, então, melhor ainda. “Além de vitaminas do complexo B, elas fornecem fibras, importantes para a saúde intestinal e, por sua relação com o resto do organismo, para a imunidade e o bem-estar mental”, justifica a profissional.
Segundo Ucella, a fermentação natural ainda tende a tornar proteínas menos alergênicas e degradar os chamados FODMAPs, compostos de certos vegetais que são mal absorvidos e podem causar desconfortos digestivos em algumas pessoas.
“Ao serem fermentadas pela microbiota intestinal, essas substâncias desencadeiam sintomas associados à síndrome do intestino irritável”, esclarece o nutricionista.
Outra vantagem dos pães feitos com levain é a maior resistência ao mofo. “Isso não representa um ganho nutricional direto, mas permite que o alimento tenha maior durabilidade sem a necessidade de aditivos, como os frequentemente utilizados pela indústria”, destaca Ucella.
Essa lista de diferenciais, somada a uma pegada sustentável e ao fator pandemia, fez com que o segmento da fermentação natural, que já vinha em ascensão, encorpasse de vez no Brasil — tanto é que, nas buscas no Google por receitas, “pão caseiro” foi o termo mais procurado em 2020.
Levain, fermento, massa madre…
O fermento natural atende por vários nomes pelo mundo. É conhecido como levain na França, massa madre na Espanha, sourdough nos Estados Unidos e levito madre na Itália.
Trata-se de um conjunto de micro-organismos que se alimentam dos açúcares da farinha e os transformam em gás carbônico, álcool e ácidos lático e acético.
Com essa mistura, o pão cresce, fica aerado e ganha sabores e aromas pronunciados. Ainda que a fermentação natural seja cada vez mais utilizada pelo mercado da panificação, a maioria dos pães vendidos em padarias e supermercados não é feita com ela — imperam os fermentos biológicos e químicos.
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O natural é pop
De fato, a “pãodemia” fez muita gente conhecer o levain. “Junto às pessoas que descobriram o assunto, veio um contingente que já tinha noção do tema, mas que não havia encontrado tempo para começar a praticar”, nota o jornalista Luiz Américo Camargo, autor dos livros Pão Nosso e Direto ao Pão, ambos publicados pelo selo Panelinha, da editora Senac.
No auge da crise da Covid-19, ele criou um podcast, disponível em plataformas como o Spotify, em que compartilha receitas e macetes. “Fiz isso para tentar ajudar quem estava confinado em casa. Pensei muito nos solitários, que poderiam ouvir uma voz humana que os ajudasse na cozinha”, diz Camargo.
Embora a fermentação natural tenha ganhado destaque nestes últimos anos, principalmente pelas redes sociais — recheadas de fotos de belos pães acompanhadas das hashtags do movimento —, esse é o jeito mais antigo de fazer a massa.
E foi o único, diga-se, desde 4 mil anos antes de Cristo até meados do século 19, quando surgiu o fermento biológico comercial. Só que, até uma década atrás, Camargo lembra que o levain era encarado como uma “novidade” pelo grande público.
“Durante muito tempo, a fermentação natural no Brasil ficou restrita a um círculo pequeno de padarias, como a Basilicata e a São Domingos [ambas na capital paulista], que trabalham com esse método há mais de um século”, conta o jornalista.
A disseminação da cultura dos produtos artesanais, a preocupação com a origem dos ingredientes e a busca por uma alimentação balanceada impulsionaram o mercado de pães de fermentação natural. “A partir daí, criou-se uma oportunidade de expansão de negócios e a consolidação de um mercado. Ainda é um nicho, mas segue ampliando limites”, afirma o autor de Pão Nosso.
Na grande indústria
A expansão envolve os profissionais e a indústria da panificação, que estão de olho na tendência. “Hoje, nosso curso de fermentação natural é o mais procurado por padeiros e empresários”, revela o professor Fabio Bruno, do Instituto do Desenvolvimento de Panificação e Confeitaria (IDPC), que faz parte do Sindicato dos Industriais de Panificação e Confeitaria de São Paulo.
As padarias convencionais também já estão pegando carona no fenômeno. “Os donos dos estabelecimentos notaram que, apesar de o pão de fermentação natural demorar mais tempo para ficar pronto, com ele é possível lucrar até 200% a mais em comparação a um pão feito com fermento biológico”, diz Bruno.
A grande indústria tampouco fica de fora. A Wickbold, por exemplo, lançou uma linha de pães de fermentação natural em 2019 e ela é, atualmente, líder de vendas da marca. “Em uma de nossas pesquisas, percebemos que havia nos consumidores um desejo crescente por itens mais naturais, elaborados com menos ingredientes”, relata a gerente-executiva de marketing e P&D da Wickbold, Luciana Rangel do Carmo.
O produto leva 36 horas para ficar pronto, e um dos desafios a serem superados foi tentar reproduzir as características de um pão artesanal. “Sugerimos inclusive colocar nosso pão no forno por cinco minutos antes de consumir. A casca ficará crocante”, assegura Luciana.
Mas a fermentação natural não tem nada de novo para algumas empresas, caso da Bauducco. Ela é reconhecida por utilizar uma massa madre vinda da Itália com mais de 70 anos de história na produção de seus panetones e colombas. A fábrica, em Extrema, no sul de Minas, conta com um espaço chamado “berçário”, onde o fermento natural é mantido sob as condições ideais e alimentado todos os dias, o ano inteiro.
“O processo é muito similar ao artesanal. A diferença é que, na indústria, a gente consegue acompanhar melhor, fazendo controles de temperatura e de umidade mais precisos, além de análises físico-químicas constantes do fermento. Tudo para garantir sempre o padrão de qualidade”, afirma Juliana Corá, grouper de marketing da Bauducco.
Dois anos atrás, a companhia lançou sua linha de pães de fôrma com fermentação natural. “O produto vem evoluindo em termos de venda. Em 2021, houve um crescimento expressivo de 70%”, conta a executiva.
Atenta à demanda, uma ala da indústria tem desenvolvido tecnologias para acelerar o processo de fermentação natural. É o caso da belga Puratos, que, em meados dos anos 1990, desenvolveu um levain instantâneo e patenteado.
A matéria-prima promete um pão com os mesmos sabores e aromas dos artesanais, mas em bem menos tempo. “A fermentação natural é algo complexo e difícil de escalonar. Quando você tem uma solução como essa, que tem equilíbrio entre os ácidos lático e acético, fica mais fácil manter o sabor e o padrão do produto”, explica o padeiro alemão Johannes Roos, técnico-chefe do Centro de Inovação da marca B2B.
Com o objetivo de mapear o universo da fermentação natural no mundo inteiro, desde 2013 a empresa mantém a Biblioteca da Massa Madre, em Sankt Vith, na Bélgica. O espaço reúne 105 exemplares de levain, e quatro deles são brasileiros, mais precisamente das padarias Cepam, Basilicata, Benjamin e Brico Bread, todas de São Paulo.
Os fermentos passam por análises, e, até agora, foram identificados mais de 1 300 micro-organismos envolvidos. “É como se fosse uma biblioteca com os livros mais raros do mundo”, compara Roos. Dá até para fazer uma visita virtual pelo site.
De acordo com o diretor de marketing de panificação da Puratos, Rafael Fini, as perspectivas para o setor no Brasil são bem positivas. “Quando a gente analisa mercados mais maduros, como a Itália e a França, a fermentação natural já é uma realidade. A expectativa é que o mercado nacional siga nessa direção”, acredita.
Juliana, grouper da Bauducco, concorda e acrescenta: “Enxergamos um mercado muito promissor para a fermentação natural. No futuro, pretendemos levá-la para outras categorias de produtos”.
Na Puratos, fora o fermento natural de ação instantânea, o O-tentic, de uso mais consolidado no exterior, uma das apostas para o futuro é o desenvolvimento de um levain rico em fibras que promete benefícios à saúde intestinal.
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Feito em casa
Quem também cresce é a turma que decide cultivar o levain na própria cozinha — e hoje existem cursos e redes que ajudam a ensinar as técnicas e a obter o básico para o preparo. Praticamente todas as receitas de pão podem ser elaboradas com fermento natural.
O primeiro passo é calcular a quantidade de levain na massa. Camargo costuma usar em torno de 30% do fermento para a quantidade de farinha de trigo. “Esse percentual permite uma boa evolução da massa num tempo razoável. Mas não existe verdade absoluta, vai variar conforme a receita”, diz o jornalista expert em panificação.
Além da proporção dos ingredientes, o tempo de fermentação influencia o resultado. Aliás, é aí que o fermento biológico e o levain se mostram diferentes. Enquanto a versão industrializada leva à produção de pães num piscar de olhos, o fermento natural necessita de no mínimo 12 horas para fazer efeito.
“A massa necessita de um longo período de maturação para que as enzimas presentes no trigo realizem o processo de quebra do glúten”, explica o professor Bruno, do IDPC. Aliás, vale ressaltar que o fermento biológico está longe de ser um vilão para o paladar e a saúde. Só tem que tomar cuidado com a quantidade.
“O máximo que se usa de fermento comercial é a proporção de 2% em relação à quantidade de farinha de trigo. E, com a fermentação mais longa, é possível desenvolver sabores e melhorar a digestibilidade do pão, mesmo com o fermento comercial”, esclarece Rogério Shimura, que comanda a escola de panificação Levain, na capital paulista.
Depois que o pão sai do forno, a vontade é cortar uma fatia e besuntá-la com uma camada generosa de manteiga. É uma delícia, mas convém exercer a moderação com esse tipo de acompanhamento. Maristela pede atenção sobretudo às fontes de gordura saturada, que estão na própria manteiga, nos queijos amarelos e nos frios.
Um par mais saudável para o pão é o azeite de oliva, que oferta gordura de boa qualidade. E, na família dos lácteos, cottage, ricota e minas frescal são opções mais equilibradas. “Se a pessoa não tem nenhum problema com o colesterol, dá para incluir queijos artesanais como o minas padrão e o canastra, desde que sem exagero”, diz a nutricionista.
Então, mão na massa, essa arte que, muito antes do produto final, já tem efeitos terapêuticos.
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O diário do levain
Você pode fazer o seu. Testamos uma receita fornecida pelo jornalista e expert em panificação Luiz Américo Camargo no livro Pão Nosso
1ª etapa (48 horas)
Bata um fruto como o abacaxi no liquidificador, coe e retire 60 ml do suco obtido. Misture com 50 g de farinha de trigo integral. Coloque a mistura em um pote de vidro esterilizado, coberto com um pano para que a mistura entre em contato com o ar. Mexa de duas a três vezes ao dia.
2ª etapa (48 horas)
Dois dias depois, a mistura do cereal com o fruto resulta em um aroma adocicado e surgem algumas bolhas. Adicione 30 g de farinha de trigo integral e 20 ml do sumo batido e coado do abacaxi. Misture de duas a três vezes ao dia e espere mais um tempo.
3ª etapa (24 horas)
As bolhas surgem com força total e deixam a mistura aerada. O aroma frutado sai de cena e entra o odor ácido. A mistura começa a dobrar de volume. Agora adicione 50 g de farinha integral com 30 ml de água filtrada e aguarde mais um dia.
4ª etapa (24 horas)
O aroma ácido já tomou conta do pedaço e o preparo segue dobrando de volume. É hora de dar adeus à metade da mistura e, no restante, juntar 75 g de farinha de trigo integral e 30 ml de água. O resultado vai ser uma bola ressecada e esquisita. É assim mesmo, e aguarde mais 24 horas.
5ª etapa (16 horas)
Separe 100 g da massa obtida, coloque 300 g de farinha e 200 ml de água e deixe descansar 5 minutos. Mexa com as mãos por 1 minuto. Transfira para um pote maior, cubra com plástico e espere de 4 a 8 horas. Quando dobrar de volume, misture e leve à geladeira por 8 horas.
6ª etapa (8 horas)
Retire a mistura da geladeira, separe somente 100 g dela e a alimente conforme a etapa anterior. Depois de 4 a 8 horas de descanso no ambiente, o fermento natural está pronto! Já pode utilizá-lo nas receitas de pães ou guardá-lo na geladeira para usar em outro momento.
Como manter seu fermento natural
Ele precisa ser cultivado. Aprenda a alimentar e conservar seu levain em casa
No momento do uso
O fermento natural deve ficar guardado na geladeira, e, ao utilizá–lo, retire só uma parte, misture com o dobro do peso de água e o triplo do peso de farinha. Deixe descansar por cerca de quatro horas no ambiente até o fermento aumentar de volume e ficar aerado.
Sob refrigeração
A geladeira é um local que pode oferecer contaminação cruzada. Por isso, vale deixar o levain em um pote plástico bem fechado e sempre higienizá-lo. Resquícios de fermento que ficam ressecados no recipiente
sempre devem ser retirados.
A alimentação
Uma vez por semana ou a cada dez dias, coloque água e farinha de trigo na mesma proporção mencionada no seu levain. Se esquecer na geladeira, ele pode ficar extremamente ácido e com uma camada escura. Mas dá para tirar a parte de cima e ressuscitar o fermento.
Nas receitas
Uma dica de Luiz Américo Camargo é calcular 30% de fermento natural para a quantidade de farinha de trigo utilizada. Mas essa medida pode variar conforme a receita. Lembre-se de sempre deixar a cozinha e os utensílios higienizados e se reinvente nos pães.