Mercadores da cura
Ao prometerem dar fim a doenças como diabetes e Alzheimer com tratamentos alternativos e suplementos, empresas lucram e ameaçam a saúde de muita gente
*Esta reportagem é uma parceria de VEJA SAÚDE com a Revista Questão de Ciência. Ela foi produzida com o apoio do programa “Disarming Disinformation”, do International Center for Journalists (ICFJ), e financiada pelo Instituto Serrapilheira. O programa é um esforço global com financiamento principal do Scripps Howard Fund
O tratamento de uma doença crônica é algo trabalhoso, por vezes ingrato. É preciso largar velhos hábitos, comer melhor, fazer exercícios, tomar remédios prescritos pelo médico todo santo dia…
E, mesmo assim, a condição pode desandar, por descuido ou puro acaso biológico. Seria muito mais tranquilo se houvesse uma solução rápida e definitiva, não? É com essa promessa que uma porção de brasileiros é fisgada.
Se já não ocorreu com você, imagine um sujeito lá pelos 50 anos saindo do consultório com diagnóstico de diabetes e um monte de orientações piscando na cabeça. Ao pegar o celular ou ligar o computador, ele depara com propagandas personalizadas do tipo “Vire ex-diabético em questão de horas” ou “Derreta a gordura no fígado sem abrir mão do churrasco e da cervejinha”.
Esqueça os medicamentos — eles fazem até mal! A saída está em dietas ultrarrestritivas por poucos dias e em ingredientes e suplementos secretos que a “indústria não quer que você conheça”. Tem conserto e vitamina para tudo: colesterol alto, Alzheimer, impotência sexual e até dependência dos óculos.
Pois essa é a realidade em que atuam os milagreiros da internet. Que fazem dinheiro ludibriando pessoas com supostas curas naturais — com pouco ou nenhum embasamento científico.
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Um dos atores que mais se destacam nesse mercado, e um caso paradigmático de como o ramo opera, é o grupo de empresas encabeçado pela Jolivi Natural Health. Criada por empreendedores do mercado financeiro, há anos ela desafia as regras sanitárias e o código de ética médico ao vender, à luz do dia, a remissão de diversas doenças crônicas.
O negócio prospera à base de assinaturas que custam cerca de mil reais.
Ao fechar um plano, o cliente passa a receber livros impressos, e-books, vídeos exclusivos e protocolos de alimentação e suplementação. E é bombardeado com mensagens de texto, e-mails e ligações oferecendo descontos no site da empresa-irmã da Jolivi, a Vitaminas.com.vc.
A promessa de uma solução fácil para um problema difícil passa, então, a se complicar. O cidadão precisa cortar praticamente todos os carboidratos do prato, gasta centenas de reais por mês em suplementos e ingere dezenas de cápsulas por dia.
E pode até ter sua conta bancária prejudicada — no site Reclame Aqui, acumulam-se mais de 1 600 queixas, grande parte por cobranças indevidas no cartão de crédito.
A pior ameaça, contudo, é à saúde. “Esses protocolos sugerem abandonar medicamentos e prescrevem tratamentos à distância sem conhecer o paciente, o que é gravíssimo”, aponta o endocrinologista Carlos Eduardo Barra Couri, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto.
“No caso do diabetes, estamos falando de um dos principais fatores de risco para infarto e derrame, que não está bem controlado na maioria das pessoas”, comenta o médico, que foi um dos convidados pela reportagem a analisar os protocolos da empresa.
É hora de destrinchar as armadilhas por trás desse discurso sedutor e insistente, com formato replicado aos montes na internet por vendedores de curas quânticas, energéticas, naturais, alternativas… A lista é longa. E perigosa.
A “Empiricus da saúde”
A Jolivi foi fundada em 2015 pelos mesmos criadores da Empiricus, uma casa de análise de investimentos. A inspiração para a inusitada incursão de especialistas do mercado de ações na área da saúde veio de fora.
Mais exatamente, de uma empresa americana chamada Agora, que até hoje figura no quadro societário da Jolivi e foi fundada por um dos gurus da mala-direta (a clássica tática de marketing por e-mail), Bill Bonner.
A partir de 1978, Bonner criou um império de publicações focadas em produtos financeiros e de “saúde natural”. Hoje, a Empiricus não está mais na Jolivi, mas a Agora sim. O conglomerado tem 31 marcas diferentes só nos Estados Unidos e negócios em 14 países.
Um dos empreendimentos do grupo foi processado em 2021, nos EUA, por vender uma falsa cura para o diabetes e uma suposta técnica para conseguir dinheiro por meio de programas do governo federal americano. O juiz entendeu que houve danos ao consumidor e propaganda enganosa e multou os autores em 2 milhões de dólares.
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O episódio é um exemplo claro de como dinheiro e saúde podem andar de braços dados em esquemas pouco transparentes.
A Agora ensinou à Jolivi a técnica do copywriting, ou só “copy”, um estilo de escrita persuasiva usado por vendedores. Nas newsletters do ramo brasileiro, que usam e abusam dessa tática, é comum encontrar receitas de cura para doenças hoje incuráveis.
Mas esse não parece ser um problema para o líder da companhia. Bonner, o fundador da Agora, chegou a declarar em uma entrevista: “Nossos clientes não nos pagam para estarmos certos”.
Os donos da Jolivi compraram em 2018 a Millipharma, empresa de suplementos criada em 2013 e razão social do site Vitaminas.com.vc. Quem assina um protocolo recebe automaticamente descontos e propagandas dessa loja virtual.
Em 2021, veio o Infovital, um site informativo que divulga o pretenso poder das vitaminas e extratos de plantas para promover o bem-estar. Hoje as três empresas atraem muita atenção na internet.
Ao ser questionado sobre as motivações por trás da criação das empresas, o CEO da Jolivi, Daniel Amstalden, respondeu apenas que “os conteúdos contemplam conhecimentos da saúde integrativa, que visa o autocuidado, mudança de estilo de vida e a autonomia do paciente”.
E que os assinantes “recebem conteúdos baseados em publicações técnicas de saúde das mais renomadas instituições do mundo”. A pedido de VEJA SAÚDE e da Revista Questão de Ciência, uma equipe de especialistas analisou os protocolos vendidos pela internet. E descobriu que não é bem assim…
A Jolivi vende dois protocolos para “reverter” o Alzheimer. Nós compramos um deles, o “Supercérebro sem Alzheimer”, escrito pelo obstetra e doutor em biomedicina Nelson Annunciato.
No livro físico que os assinantes recebem, ele garante que o protocolo é capaz de reverter a doença “em nove a cada dez pacientes”. A afirmação e o método são importados do médico americano Dale Bredesen, autor de livros disponíveis no Brasil em que afirma ter curado o Alzheimer com seu protocolo ReCODE.
Por meio dele, Bredesen propõe intervenções que vão de reposição hormonal a mudanças alimentares. Como prova de que tudo funciona, apresenta estudos com falhas metodológicas e possíveis vieses, a ponto de o periódico médico Lancet Neurology publicar uma resenha de uma neurologista assinalando problemas e falcatruas neles.
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Na versão brasileira, encontramos as mesmas promessas.
E a primeira a ser quebrada logo de cara é a de que seria possível reverter ou curar o Alzheimer. “É duro dizer isso, mas, uma vez que os sintomas começam, nada fará com que desapareçam”, comenta a neurologista Elisa Rezende, vice-coordenadora do Departamento Científico de Neurologia Cognitiva e do Envelhecimento da Academia Brasileira de Neurologia (ABN).
Algumas das medidas propostas até fazem sentido do ponto de vista preventivo, como fazer exercícios, melhorar a qualidade do sono, alimentar-se bem e gerenciar o estresse.
E estudos mostram que pessoas com declínio cognitivo leve podem melhorar o raciocínio e a memória com ajustes no estilo de vida. Mas daí a “reverter” é um salto enorme.
“Orientamos essas mudanças a qualquer pessoa, mas o máximo que qualquer abordagem faz é retardar o avanço da doença”, diz a neurologista Sonia Brucki, da Faculdade de Medicina da USP. Ou seja, a pessoa pode até se sentir melhor, mas o Alzheimer não vai embora.
Além das meias-verdades, há teses ainda não comprovadas pela ciência sendo defendidas no protocolo.
Uma postula que “o Alzheimer é causado por uma deficiência de boas gorduras” e, por outro lado, o excesso de glicose proveniente dos carboidratos seria “uma origem alimentar” da doença neurodegenerativa. Logo, para tratá-la, a pessoa precisaria adotar uma dieta cetogênica, que praticamente troca carboidratos por gorduras.
Vamos por partes. Do ponto de vista científico, parte-se de uma premissa que até pode ter uma conexão com a história. “O diabetes tipo 2 [doença decorrente do excesso de consumo de calorias, em especial carboidratos, mas não apenas disso] é um fator de risco importante para o Alzheimer”, diz a farmacêutica Karina Braga Gomes Borges, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
E o consumo de glicose como fonte de energia no cérebro tem como subproduto as chamadas espécies reativas de oxigênio, ligadas ao estresse oxidativo, um processo potencialmente danoso que favorece a inflamação e a formação das placas beta-amiloides no cérebro — processos que estão relacionados à origem da doença.
Com isso em mente, os autores do protocolo alternativo prescrevem trocar o combustível do organismo de carboidrato para gordura. “Só que controlar a glicemia e o diabetes não é o suficiente para impedir o surgimento do Alzheimer, que depende de uma combinação de fatores genéticos e ambientais”, pondera Karina.
Se não impede totalmente o aparecimento, que dirá reverter um quadro já instalado… No mais, não existem estudos de qualidade feitos em humanos comprovando que dieta cetogênica teria algum papel nesse tratamento.
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Mesmo assim, o autor do protocolo da Jolivi prega, com base em um teste feito em roedores, que tal plano alimentar reduziria em 25% os níveis de beta-amiloides.
Dá pra confiar? Primeiro: estudos em animais não podem ser extrapolados para a prática clínica. Eles servem de partida para pesquisas com humanos.
Segundo: mesmo os remédios que de fato reduzem a beta-amiloide não se mostraram capazes de reverter os sintomas e a degradação do cérebro de quem tem Alzheimer.
Mas o que o protocolo da Jolivi oferece é uma lista de 20 suplementos e produtos a serem tomados diariamente para “todos os tipos de Alzheimer”.
Entre eles, o pau para toda obra ômega-3, que até é uma gordura considerada benéfica à saúde. “Já foram feitas diversas tentativas de reposição em estudos robustos, mas não houve efeitos significativos nos sintomas”, pontua Elisa. “Inclusive, não recomendamos o uso por falta de evidências”, completa.
É aquilo: os mecanismos existem, mas as tentativas de interferir neles ainda não evitam o inevitável.
O fim do diabetes?
Em outro protocolo da Jolivi, o cirurgião plástico Naif Thadeu promete reverter o diabetes, inclusive o tipo 1, em semanas.
Para isso, o paciente deve seguir alguns preceitos semelhantes aos que “curam” o Alzheimer: fazer dieta cetogênica e jejum intermitente, tomar cápsulas de ômega-3 e dezenas de outras fórmulas.
No caso das demências, como elas evoluem de qualquer maneira, não haveria tanto risco, exceto para o bolso e para as esperanças, em adotar tais medidas. No diabetes, a história é outra.
No material contra o diabetes, Thadeu critica os medicamentos tradicionais e sugere que é possível manter a glicemia sob controle no diabetes tipo 1, doença autoimune que acomete crianças e adolescentes, sem tomar insulina. “Nessa condição, a falta de insulina pode causar a morte em poucos dias”, desmistifica o endocrinologista Carlos Eduardo Barra Couri, da USP.
E estamos falando de um público vulnerável, sejam pais desesperados por uma solução para os filhos doentes, sejam adultos que veem a saúde definhar com a glicemia mal controlada.
Chama a atenção ainda a indicação de fitoterápicos e o corte radical de carboidratos, que podem causar crises de hipoglicemia e outros problemas quando se aplica insulina na rotina.
O que eles dizem x o que a medicina e a ciência dizem
Prescrever tratamentos em massa, com direito a dosagem e tudo, infringe o código de ética médica. Prometer curas milagrosas fere o código penal.
O Conselho Federal de Medicina foi procurado pela reportagem, bem como os médicos envolvidos nos protocolos, mas eles não se manifestaram.
A Jolivi se defende dizendo que não faz indicações de tratamento. “Sempre orientamos que nossos assinantes nunca descontinuem seu tratamento atual e que discutam com o profissional de saúde de sua confiança sobre nossas publicações”, diz Amstalden.
Mas, na prática, o conteúdo ataca os medicamentos usuais. Como no trecho a seguir: “Estudos concluíram que a metformina só encurta o caminho do pré-diabético ao diagnóstico final de diabetes”. E dá todas as ferramentas para que a pessoa assuma as rédeas do tratamento.
A empresa prega inclusive “a autonomia” do paciente. O que até faz sentido. “Na doença crônica, precisamos que a pessoa participe do plano terapêutico, e não apenas seja um agente passivo. Então tem essa pegadinha: você empodera o paciente, mas a ponto de se adotar um tratamento a distância sem supervisão”, critica Couri.
Começar falando algo com o qual todo mundo concorda para em seguida propor uma estratégia sem pé nem cabeça é algo típico do discurso picareta.
O caso da Jolivi é só um exemplo do vasto e lucrativo mercado das terapias alternativas.
Há uma série de soluções sem validade científica sendo vendidas e fazendo sucesso nas redes sociais — e muitas delas são mais caras que os tratamentos convencionais amparados em anos de pesquisa.
Entre tanta pseudociência, encontramos uma lição valiosa escondida entre as táticas dos mercadores da cura. “A falta de comunicação dos médicos dá chance para pessoas se aproveitarem vendendo tratamentos milagrosos. E elas parecem simpáticas e atenciosas… Poderíamos aprender com isso”, reflete Sonia Brucki.
As artimanhas do discurso picareta
Falsas curas
Bioressonância, medicina ortomolecular, curas quânticas e outras pseudociências que fazem sucesso na internet.
“Rejuvenesça sua próstata”
O público masculino de meia-idade é um alvo frequente das propagandas da Jolivi e de outras empresas, que prometem “desinchar” a próstata com suplementos sem eficácia comprovada, evitando a necessidade de cirurgias e de tratamentos que “comprometem a virilidade”.
A hiperplasia benigna da próstata é um problema comum com o avançar da idade, marcado pelo aumento da glândula a ponto de afetar a qualidade de vida.
O tratamento inclui medicamentos (que nem sempre afetam a libido) e cirurgias que não interferem no desempenho ou na performance sexual.
O que acontece é que homens nessa condição podem ter um jato de urina mais fraco e, se operados, ejacular menos. Não é o fim do desejo e da ereção.
Fontes complementares: João Brunhara, urologista e diretor médico da Omens; Alfredo Felix Canalini, presidente da Sociedade Brasileira de Urologia (SBU) e Marcelo Yamashita, professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp