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Já olhou para o seu fígado?

O acúmulo de gordura nesse órgão vital tornou-se um problema de saúde pública que, de forma sorrateira, é capaz de levar o corpo à falência

Por Diogo Sponchiato e Carlos Eduardo Barra Couri (texto), Estúdio Coral (ilustração) e Hiroshi Watanabe (foto)
Atualizado em 19 jun 2023, 10h29 - Publicado em 16 jun 2023, 14h19

Doença hepática gordurosa não alcoólica, esteatose hepática, doença hepática gordurosa metabólica, esteato-hepatite não alcoólica… Ou, em bom português e para qualquer um entender: gordura no fígado.

Entre tantos termos, mais ou menos técnicos e preferidos pelos médicos, a verdade nua e crua é que esse órgão multitarefas vive um processo de engorda, refém de mudanças silenciosas que não só tocam fogo na fábrica como podem levá-la à bancarrota.

Hoje, chutando por baixo, estima-se que três em cada dez pessoas apresentem gordura no fígado. Se elas já têm obesidade ou diabetes tipo 2, a prevalência pode chegar a 80%.

“Falamos de um problema ainda subestimado pela população e pelos profissionais e que já está ultrapassando no mundo ocidental as hepatites virais como principal causa de cirrose, câncer e transplante de fígado”, afirma o hepatologista João Marcelo Araújo Neto, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

A doença hepática gordurosa é ardilosa porque passa anos sem dar sintomas e anda de mãos dadas com algumas das condições crônicas mais comuns da atualidade. “Ainda que a menor parte dos pacientes vá evoluir para um quadro mais grave, em números absolutos é muita gente”, avalia Neto.

Assim, foi-se o tempo em que só deviam se preocupar com o fígado aqueles que exageravam na bebida alcoólica, tinham hepatite ou apresentavam sinais evidentes de que ele não estava funcionando — caso de pele e olhos amarelados, inchaço nas pernas e abdômen saliente.

Hoje, está cada vez mais frequente nos consultórios assistir à seguinte cena: o sujeito descobre, espantado, que tem gordura além da conta ali em um exame de rotina, e, com a pulga atrás da orelha, ainda questiona o doutor que não sente nada nem abusa dos drinques. Aí que está: a esteatose integra um pacote de transformações metabólicas que arruína progressivamente a saúde.

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“As pessoas estão vivendo mais e adotando um comportamento que favorece o ganho de peso e todo o cortejo que compõe a síndrome metabólica: hipertensão, aumento do colesterol, alterações na glicemia”, diz o hepatologista Raymundo Paraná, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Portanto, não dá para falar de gordura no fígado sem falar em obesidade, diabetes e outras doenças crônicas que deixam o organismo inflamado.

esquema com as funções do fígado
(Arte e ilustração: Estúdio Coral/SAÚDE é Vital)

O perigo é que não só os domínios hepáticos podem ir à exaustão como — e isso é bem corriqueiro! — outras redondezas do corpo entram na berlinda, especialmente o coração.

“A doença gordurosa no fígado está associada ao aumento no risco de infarto, AVC e insuficiência cardíaca. Além disso, é um sinal da presença de gordura em outros órgãos, como pâncreas e rins, podendo elevar a probabilidade de tumores também surgirem ali”, explica o cardiologista Andrei Sposito, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Por tudo isso, representa um marcador potente para várias situações que limitam a expectativa de vida”, prossegue.

+ LEIA TAMBÉM: Colesterol é o fator de risco cardíaco menos controlado no país

Check-up bem-vindo

Não dá para esperar o fígado cansar ou entregar os pontos para saber como ele anda. Isso significa que, levando em consideração a idade, o peso, o estado e o histórico de saúde, é prudente incluí-lo na avaliação médica periódica.

“Falamos de um check-up simples e barato, mas que não é realizado rotineiramente pelo Brasil. Todo profissional, inclusive o generalista, deveria solicitar certos exames e saber interpretá-los, só que essa não é nossa realidade”, expõe Paraná. Nessa bateria, constam dosagens de substâncias no sangue e métodos de imagem como o ultrassom.

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Embora menos acessível e difundida no país, a tecnologia padrão ouro para detectar a gordura hepática e o grau de comprometimento ali é a elastografia, um recurso que, acoplado à ultrassonografia ou à ressonância magnética, faz com mais acurácia um retrato do pedaço. Nesse sentido, aqui podemos aproveitar uma vantagem natural desse órgão: ao contrário de outros, como o coração, que não para de bater, ele posa para a foto.

Se nunca ouviu falar nessa tal de elastografia, você não está sozinho. Embora o método não seja tão recente, ainda é desconhecido até mesmo dentro da classe médica. Numa pesquisa realizada em 2022 com 654 profissionais brasileiros, a maioria com atuação no serviço privado, observou-se que 50% deles nunca ou quase nunca solicitam o exame a pacientes com diabetes tipo 2, um dos públicos com maior taxa de gordura no fígado.

A elastografia é fornecida em alguns centros do SUS e por clínicas particulares e ligadas a convênios, mas a oferta está aquém da demanda. “No entanto, a indisponibilidade dela não justifica que o médico deixe de avaliar o paciente de outras formas”, argumenta Araújo Neto, que acaba de coordenar a Semana de Fígado do Rio de Janeiro, evento que teve a esteatose hepática como principal tema.

Um jeito alternativo, mais fácil porém menos apurado, de vislumbrar danos ao órgão é um escore desenvolvido e testado para dedurar pelo menos se o indivíduo já teria algum grau mais severo de problemas no fígado. Trata-se do FIB-4, uma fórmula matemática que, ao considerar quatro elementos (a idade do paciente e as dosagens das plaquetas e das enzimas TGO e TGP, obtidas com um exame de sangue), indica a provável presença de fibrose hepática.

Para facilitar a vida do médico e do paciente, existem aplicativos de celular que fazem a conta e alguns laboratórios começaram a calcular automaticamente o valor e a fornecê-lo no laudo, junto aos demais resultados. Se o índice obtido pelo FIB-4 for maior que o ideal (até 1,3), a elastografia se torna ainda mais premente — e os cuidados também!

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esquema sobre comprometimento do fígado
(Arte e ilustração: Estúdio Coral/SAÚDE é Vital)

+ LEIA TAMBÉM: Fórmula ajuda a apurar perrengues no fígado

Quem não pode vacilar

Não há uma idade-padrão para iniciar o monitoramento do fígado, haja vista o número de variáveis envolvidas. Mas alguns especialistas defendem que, a partir dos 40 anos, mesmo adultos saudáveis deveriam passar por um check-up básico. E a atenção com o órgão ganha outra dimensão à medida que a gente envelhece.

Ora, com a experiência e os cabelos brancos, ele também se expõe aos efeitos da idade e a fatores de risco mais frequentes com a maturidade, como o ganho de peso e o já citado diabetes tipo 2.

“É importante saber como está a função hepática até mesmo antes de prescrever alguns tratamentos a um paciente idoso. Como muitos remédios são metabolizados pelo fígado, dependendo da situação, há risco de falha na ação de medicamentos ou mesmo uma interação indesejável entre eles, o que pode exigir o ajuste das doses”, afirma a geriatra Mariana Bellaguarda Sepulvida, professora da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS).

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No rastreio das encrencas hepáticas, mesmo pessoas magras, mas com aquela barriga proeminente, devem pegar a fila. E se você desconfia que está acima do peso… Também é bom se candidatar a um exame.

“O ganho de peso, especialmente de gordura visceral na região abdominal, e a esteatose no fígado são processos concomitantes e intimamente relacionados”, afirma a endocrinologista Cynthia Valério, diretora do Departamento de Dislipidemia e Aterosclerose da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem).

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Se por um lado isso representa um ônus para o organismo, por outro há um bônus: ao limarmos os quilos a mais, também nos despedimos do acúmulo gorduroso no órgão. Está aí uma das chaves tanto para prevenir como para tratar a doença hepática. “A perda de 5 a 7% do peso corporal inicial promove a melhora na esteatose”, aponta a médica.

esquema sobre riscos ao fígado e demais órgãos
(Arte e ilustração: Estúdio Coral/SAÚDE é Vital)

+ LEIA TAMBÉM: Avanços e dilemas no tratamento da obesidade

Mudanças na rotina

Nesse roteiro, que serve tanto ao resguardo como à salvação do fígado, dois pilares são inalteráveis, a alimentação equilibrada e a prática regular de atividade física.

No capítulo da dieta, a recomendação mais atual, baseada nos estudos, é evitar ou moderar a ingestão de produtos ultraprocessados (balaio do qual fazem parte biscoitos recheados, salgadinhos, macarrão instantâneo, refrigerante e fast-food).

Uma pesquisa da Universidade do Sul da Califórnia, nos Estados Unidos, desvendou que pessoas acima do peso ou diabetes que consumiam pelo menos 20% das calorias diárias vindas desse tipo de comida tendiam a apresentar níveis elevados de gordura no fígado.

Em outro trabalho, conduzido por cientistas chineses em cima de dados de 12 mil pessoas, conclusão semelhante: itens industrializados geralmente ricos em açúcar, carboidratos refinados e gordura saturada foram ligados à maior propensão ao problema.

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A regra geral, quando se pensa no que comer pelo bem do órgão, não tem mistério: priorizar refeições caseiras e frescas, de preferência abastecidas de legumes, verduras, frutas, raízes e grãos integrais. E não se esquecer de colocar na programação as sessões de atividade física: tanto os exercícios aeróbicos (trote, corrida, natação…) quanto a musculação estimulam o corpo a queimar suas reservas de energia e gordura.

Hoje se sabe que medicamentos receitados para outras condições frequentemente conectadas à esteatose, caso de diabetes tipo 2 e obesidade, também têm um efeito protetor para o fígado. Nesse sentido, investir no tratamento prescrito pelo médico pode render saques adicionais à saúde.

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E o tratamento?

Pois é, não existe um comprimido ou um procedimento ultramoderno capaz de desengordurar diretamente o fígado. Mas há um arsenal terapêutico que, sempre ao lado das mudanças de hábito, pode espantar a gordura de lá.

Entre as medicações para essa finalidade existem duas originalmente criadas para domar o diabetes tipo 2: a pioglitazona e os análogos de GLP-1. O profissional ainda pode recrutar cápsulas de vitamina E, devido à sua ação antioxidante.

Para quem já toma remédio para o colesterol alto, boa notícia: um estudo da Universidade Colúmbia, nos EUA, constatou que as estatinas diminuem a chance de progressão da esteatose hepática.

Pode ser que no futuro tenhamos fármacos com especial habilidade para emagrecer o fígado. No momento, a farmacêutica Lilly está avaliando se uma droga para obesidade ainda não aprovada no Brasil, mas já liberada no exterior, teria também vocação para debelar a esteatose. O laboratório Novo Nordisk, que desenvolveu análogos de GLP-1 mais potentes para perda de peso, investiga os efeitos das medicações de uso semanal no acúmulo gorduroso no órgão.

Outra forma de lidar com a condição passa pelo bisturi. Pessoas com índice de massa corporal (IMC) acima de 35 ou com mais de 30 e presença de danos no fígado podem se beneficiar da cirurgia bariátrica inclusive em matéria de saúde hepática.

Em uma pesquisa recém-publicada no periódico The Lancet, uma equipe italiana concluiu que a operação de redução do estômago foi mais efetiva que o tratamento medicamentoso associado a ajustes no estilo de vida para o controle da gordura e da inflamação no fígado nesse público.

A escolha pela cirurgia precisa contemplar uma série de critérios e ser individualizada, claro, mas os novos dados a respeito não deixam de reforçar que, sob qualquer perspectiva ou intervenção, o emagrecimento é determinante para a reversão do problema. E, quanto maior o estrago no fígado, maior o percentual de peso a ser perdido para impedir a progressão do quadro ou promover sua regressão.

esquema sobre fatores de proteção ao fígado

Cuidados não se limitam à gordura

Outros cuidados são necessários ao bem-estar hepático — e independentemente de já haver gordura na pista. Um dos principais é limitar rigorosamente o consumo de álcool. Se já houver lesão no fígado, então, o conselho é manter distância dele.

Embasados num corpo crescente de evidências, pesquisadores vêm alertando que a máxima do “beba com moderação” não é suficiente para poupar-se dos impactos nocivos da bebida alcoólica. E um dos motivos reside nos agravos que a ingestão rotineira ou os abusos de fim de semana provocam… adivinhe em quem.

Se quisermos blindar o fígado de perrengues, não dá para ignorar seus inimigos virais. Aqui falamos das hepatites, causadas por patógenos que plantam a cizânia no órgão. “Todo brasileiro acima de 40 anos deve ser testado para as hepatites B e C”, orienta Paraná.

Segundo o hepatologista, felizmente o tratamento dessas infecções melhorou bastante — tanto pelo avanço nos medicamentos como pelo acesso garantido pelo governo. Ainda assim, é preciso fazer os exames e o diagnóstico quanto antes.

Por falar em Brasil, não dá pra deixar de mencionar que bolsões mais carentes ainda encaram moléstias como a esquistossomose, popularmente chamada de barriga-d’água, uma das consequências da debacle hepática provocada por um verme que continua se proliferando quando não há saneamento adequado.

esquema mostra inimigos do fígado
(Arte e ilustração: Estúdio Coral/SAÚDE é Vital)

E antes os adversários parassem por aí. Anabolizantes e implantes hormonais para fins estéticos, cuja prescrição foi proibida pelo Conselho Federal de Medicina, seguem circulando em clínicas e academias, podendo sobrecarregar o órgão.

A automedicação irresponsável é outra pena imposta a ele. Afinal, boa parte do que se toma de remédio passa, em algum momento, pelo fígado. Esse quadro de avisos abrange também fitoterápicos, chás e ervas — alguns deles podem ser tóxicos e capazes de fulminá-lo. Quer usar algo? Converse com o médico antes.

Com 40 anos de formado, Raymundo Paraná acredita que ainda falta conscientizar melhor as pessoas sobre o assunto. E a tarefa se tornou desafiadora com outro “problema de saúde pública”, as fake news carreadas por pseudoespecialistas nas redes sociais. Elas pregam soluções sem o menor esteio científico para diversos fins — sobretudo emagrecer e conquistar um belo corpo — e não estão isentas de riscos.

“O que se vê nas redes é uma subversão da medicina em que os interesses comerciais e uma linguagem inebriante predominam. Essa mistura tem levado muita gente a adoecer em curto ou longo prazo”, alerta o professor.

Informação confiável e amparada em pesquisas é uma calejada receita para cuidar de qualquer canto do corpo — e dele como um todo. O fígado não é exceção. Bem munidos de conhecimento, evitamos armadilhas e até propagandas infundadas. Como a dos produtos vendidos como “hepatoprotetores”, engolidos para desfazer a confusão e o peso na consciência armados pelo excesso de comida ou bebida.

“Não há nenhum benefício em usá-los. Simplesmente porque nenhum medicamento, seja ele fitoterápico, seja alopático, tem o condão de ser um protetor do fígado”, esclarece Paraná. Quer realmente defendê-lo? Então olhe bem para ele… e siga em frente com o que aprendeu.

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