Houve uma época em que ele não saía do noticiário. Era o centro dos holofotes, alvo de pautas frequentes sobre medicina e alimentação e estrela de grandes pesquisas que ganhavam manchetes e capas de revista. Mas, nos últimos tempos, e especialmente durante a pandemia da Covid-19, esse personagem corriqueiro nos cadernos de saúde e bem-estar parece ter caído no ostracismo. Estamos falando do colesterol, o inimigo silencioso que está por trás daquela que é a principal causa de morte no mundo: as doenças cardiovasculares.
O esquecimento é tanto que mesmo quem sabe que precisa tomar cuidado com ele acaba deixando seu controle pelo caminho. Esse foi um dos principais alertas soados no último congresso da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp), um dos maiores da América Latina. Calcula-se que quatro em cada dez brasileiros tenham os níveis de colesterol acima do recomendado.
E aqueles que chegam a ensaiar uma mudança no estilo de vida e recebem a prescrição de remédios abandonam o tratamento, em geral, cerca de três meses depois. “Ainda falta bastante conscientização sobre as doenças crônicas, e muitas pessoas têm a ideia errada de que, ao tomar um comprimido, o colesterol baixa e elas já estão curadas”, avalia o cardiologista Raul Dias dos Santos, diretor da Unidade Clínica de Lípides do Instituto do Coração (InCor), em São Paulo.
Mas digamos que essa molécula não curte ser esquecida — ou até curte, para azar do paciente. Sem cuidados constantes, os níveis voltam a subir, e quem sente o baque são as artérias. Para entender a saga do colesterol pelo corpo, precisamos começar do começo: a maior parte dele é produzida pelo fígado e até um terço vem da dieta.
Não se trata de um vilão. O colesterol é essencial para o organismo: faz parte da membrana das células, participa da formação de hormônios e na síntese da vitamina D e dos ácidos biliares que atuam na digestão. Só que, embora circule por toda parte, ele não é solúvel no sangue. E aí iniciam os problemas.
Em condições normais, depois de cumprir suas funções, o colesterol é eliminado. Mas, se há excesso dando sopa pelos vasos, ele pouco a pouco se acumula. No limite, chega a entupi-los, provocando infarto ou AVC. A entidade temerosa nessa história não é o colesterol em si, mas uma partícula que o carrega pelas artérias e é apelidada de “colesterol ruim”, o LDL (a sigla vem do inglês e se refere a lipoproteína de baixa densidade). Quanto maior a taxa de LDL, maior o risco de aparecimento e agravamento de doenças cardiovasculares.
Mas há o outro lado da história, o HDL (lipopoproteína de alta densidade), popularmente chamado de “colesterol bom”. É ele que auxilia a limpar o excedente de gordura dos vasos. “Os estudos epidemiológicos mostram que, quanto mais alto o HDL, mais protegida está a pessoa. O problema é que a capacidade do LDL de produzir doença é muito mais evidente do que a capacidade do HDL de proteger”, explica o cardiologista Marcelo Bertolami, do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, em São Paulo. Não é à toa que a principal orientação da ciência para controlar o colesterol é reduzir e manter baixos os níveis de LDL.
São vários os caminhos que levam a isso: ajustar a alimentação, exercitar-se, parar de fumar, tomar remédios… “Muitas pessoas respondem bem às mudanças na dieta. Ela tem que ser a base do tratamento”, defende o cardiologista José Rocha Faria Neto, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR).
Em resumo, a ideia é limitar o consumo de gorduras animais, frituras e produtos industrializados e ampliar o de vegetais e refeições caseiras. Embora tenha um impacto direto menor no colesterol, a atividade física também é peça importante no tratamento. Além de melhorar o equilíbrio HDL/LDL, ela turbina e resguarda o sistema cardiovascular como um todo.
Mas nem sempre a dupla dieta e exercício basta. Quando os níveis permanecem elevados — e, em algumas circunstâncias, os genes respondem por esse aumento —, é inevitável recorrer aos medicamentos. E, aí, é difícil ter volta. “Quando o médico avalia que precisa começar a utilizar algum remédio, o tratamento é para sempre. Se parar, o colesterol sobe de novo”, afirma Faria Neto. Só que tem gente que não dá bola para isso. Pobres corações!
O ABC e a matemática do colesterol
Colesterol total, “bom” e “ruim”… Para entender o que os números estão dizendo, é preciso saber o que cada termo significa
- Colesterol total: é a medida sem distinção entre o colesterol “bom” e o “ruim”. Por isso é preciso o detalhamento. Um índice alto nem sempre aponta que tudo vai mal.
Limite: o desejável é ficar abaixo de 190 mg/dl, mas o valor sozinho diz pouco: fique mais atento aos níveis de LDL e HDL em si.
- LDL: é o “ruim”. Essa partícula carrega o colesterol pelas artérias e, em excesso e com o passar do tempo, pode causar obstruções que levam a infartos e AVCs.
Limite: em pessoas saudáveis, o ideal é ficar abaixo de 130 mg/dl. Mas, entre quem tem alto risco cardíaco, o teto baixa para 70 mg/dl.
- HDL: é o “bom” e tem função oposta à do LDL. Ajuda a varrer o colesterol para fora dos vasos. Níveis mais elevados estão ligados à prevenção de problemas cardiovasculares.
Limite: aqui ele funciona como um piso. Recomenda–se que o HDL esteja acima de 40 mg/dl para homens e 50 mg/dl para mulheres.
Silencioso, porém fatal
Um dos maiores desafios para contra-atacar o colesterol é que sua presença é silenciosa e a situação piora aos poucos, sem sintomas evidentes à primeira vista. “A gente costuma brincar que, se o colesterol doesse, seria maravilhoso para o diagnóstico, porque as pessoas iam perceber e procurar entender o que está acontecendo”, diz Bertolami.
Mas não é assim: se alguém finalmente sentir alguma coisa por causa do colesterol elevado, talvez já seja até tarde demais. Afinal, o acúmulo das placas causadas pelo LDL é responsável pela obstrução das artérias, e não é raro que o primeiro sintoma seja potencialmente o último, como a dor de um infarto. Parece trágico — e é mesmo!
Ainda bem que é fácil detectar a escalada do colesterol, e bem antes de ele armar essa bomba. Os médicos recomendam um acompanhamento periódico dos níveis totais de colesterol, bem como o detalhamento do HDL e do LDL, obtidos por um exame de sangue.
Dada a prevalência do problema, um check-up que se preze costuma contar com a dosagem dessas moléculas. Em alguns testes, também é possível ter a contagem do VLDL, lipoproteína de densidade muito baixa, relacionada a problemas ocasionados pelos triglicérides, que têm uma contagem própria e também chegam a conspirar contra os vasos. As análises também podem levar em consideração a fração de colesterol “não-HDL”, com a ideia de simplificar e resumir tudo cujo excesso pode maltratar as artérias.
Se as siglas embaralharem na cabeça, não se afobe: a orientação número 1 é sempre conversar com seu médico e personalizar os exames e cuidados. E isso deve começar ainda mais cedo, quando há histórico familiar de colesterol alto ou doenças cardiovasculares precoces.
Especialistas acreditam, aliás, que o ideal em termos de política pública seria rastrear problemas hereditários ligados ao aumento do colesterol mesmo quando a família não tem certeza de que eles existem. “A recomendação é que se faça uma dosagem do colesterol em todas as crianças a partir dos 10 anos de idade para identificar alterações naquelas que não tiverem um histórico familiar conhecido”, argumenta a cardiologista Maria Cristina Izar, diretora de Promoção e Pesquisa da Socesp. “Nos casos em que houver alteração, parte-se do filho para testar os parentes também”, completa a médica.
Todo esse cerco se deve ao fato de que o colesterol é o principal fator de risco para o entupimento das artérias do coração. Ele dá o pontapé para a aterosclerose, o nome técnico do processo de formação das placas de gordura que dificultam a passagem do sangue — não confunda com arterioesclerose, fenômeno de nome parecido em que os vasos ficam mais rígidos e estreitos com o envelhecimento e até pode ser precipitado pelas placas, mas não é a mesma coisa. “Em relação ao coração propriamente dito, o colesterol é um fator de risco maior que tabagismo, diabetes, hipertensão ou obesidade”, destaca Faria Neto.
Os vasos sanguíneos obstruídos não representam um cenário de terror apenas ao músculo cardíaco. Outros órgãos e recantos do corpo são ameaçados quando há colesterol nas alturas e outros elementos por trás das placas de gordura. As obstruções podem provocar acidente vascular cerebral, lesões nos rins e até a gangrena de membros inferiores — sendo que casos extremos exigem inclusive amputação. Não por acaso, um artigo recente da Sociedade Europeia de Cardiologia chama a atenção dos médicos para estes riscos: o desafio de controlar o colesterol também diz respeito à prevenção de AVC, doença renal crônica e estenose de aorta (quando a grande artéria que passa pelo tórax e o abdômen fica no sufoco).
Além disso, um número expressivo de pessoas com o colesterol elevado tem também triglicérides na lua — abusar dos carboidratos, nesse caso, é um dos motivos envolvidos. Os triglicérides podem circular pelo sangue livres ou dentro da tal VLDL. E a sobrecarga, além de não poupar o coração, pode precipitar uma pancreatite, inflamação no pâncreas que exige hospitalização.
“Os triglicérides sempre foram subvalorizados porque, embora estejam envolvidos na aterosclerose, nas pesquisas o colesterol é que era apontado como o grande vilão. Mas, na pancreatite, por exemplo, não se tem dúvida sobre a participação deles”, nota Bertolami. Da mesma forma que o LDL-colesterol, essas outras moléculas podem oprimir o interior dos vasos (como os que irrigam o pâncreas). Ainda bem que dieta e exercício ajudam a contê-las também.
Assunto de família
Que fique claro: colesterol alto nem sempre se deve apenas a questões alimentares e ao estilo de vida — também pode ter causa genética. É o que acontece na chamada hipercolesterolemia familiar (HF), um problema hereditário que impede a remoção dos excessos de colesterol pelos vasos.
Como consequência, o risco de desenvolver complicações cardiovasculares não só aumenta como elas aparecem ainda mais cedo. “Histórico de infarto e AVC em idade precoce em mais de um membro da família é um sinal de alerta para investigar a HF”, sinaliza Faria Neto.
E é importante ir atrás quanto antes (mesmo na infância), já que a condição só é domada por medicamentos. “Metade dos homens com HF, se não tratarem, vão acabar tendo um infarto antes dos 50 anos”, estima o médico da PUC-PR.
Ainda que o colesterol tenha passado os últimos anos fora das manchetes, tem boa notícia no tratamento. Como dissemos, ele se ampara num tripé entre alimentação, atividade física e remédios. E é nesse último que a ciência mais progride.
Os principais medicamentos receitados, utilizados há décadas, são as estatinas, que costumam resolver a maioria dos casos. Os médicos precisam digladiar até hoje com a desinformação e as fake news a respeito. Embora possam ter efeitos colaterais, caso de dores musculares, as estatinas são comprovadamente seguras e eficazes no combate às doenças cardiovasculares.
“Elas continuam sendo a pedra fundamental do tratamento do colesterol”, afirma Santos. O perigo de interromper o uso do comprimido, como fazem muitos brasileiros, é justamente deixar as artérias à mercê da gordura.
Ao lado das estatinas, uma medicação coadjuvante é a ezetimiba, que, em vez de agir sobre o fígado como a outra classe, reduz a absorção do colesterol no intestino. Cabe ao médico ponderar, com base nos exames e no risco do paciente, se vale a pena conjugá-las.
Mas a principal inovação da última década são os anticorpos monoclonais injetáveis, os inibidores de PCSK9. Essa sigla se refere a uma proteína que degrada os receptores celulares do fígado que tiram o colesterol de circulação. Ao bloquear a ação dessa substância, o remédio alavanca a limpeza da molécula pelo corpo, fazendo os níveis de LDL despencarem.
Os inibidores de PCSK9 disponíveis atualmente exigem apenas duas injeções por mês, mas uma nova geração deve facilitar ainda mais a aplicação e a continuidade do tratamento. É a promessa do inclisiran, um pequeno RNA de interferência que também desativa a proteína problemática. Por agir de forma diferente dos anticorpos, essa estratégia de base genética tem efeito mais duradouro e, a partir do segundo ano de tratamento, bastaria administrar uma injeção a cada semestre.
É claro que tanto os anticorpos monoclonais como as terapias de RNA não são destinados a qualquer pessoa com colesterol alto. A ideia básica é recorrer a eles quando os fármacos tradicionais e as mudanças de estilo de vida falharem. São e serão especialmente úteis a quadros mais graves, como na hipercolesterolemia familiar.
Enquanto os inibidores de PCSK9 já estão no mercado, a projeção é que o inclisiran só aporte por aqui daqui a alguns anos. Até lá, permanecem as orientações habituais de ajustar a dieta, fazer exercícios e tomar os remédios prescritos em consulta. Só não dá para se esquecer mais do colesterol no dia a dia.
Como se controla o colesterol
O tratamento envolve dieta, atividade física e, se necessário, medicamentos
Alimentação: alguns ingredientes pedem moderação; outros têm passaporte livre
- Fibras: fontes da substância, como a aveia, ajudam a evitar que o colesterol seja absorvido no intestino.
- Vegetais: além de fibras, reúnem antioxidantes, uma combinação que afasta problemas pelas artérias.
- Gorduras ruins: reduza o consumo de gorduras totais, saturadas e trans — coma menos alimentos industrializados.
- Gorduras boas: priorize as fontes de gorduras insaturadas, como azeite de oliva, abacate, nozes e peixes.
- Carboidratos: não é preciso excluir, mas maneirar e preferir a versão integral. Carboidrato demais pesa para os vasos.
Atividade física: suar a camisa não resolve toda a parada, mas soma pontos à prevenção
- Impacto: estima-se que os exercícios possam aumentar os níveis de HDL em cerca de 5%. Além de proteger o coração.
- Modalidades: aposte em atividades aeróbicas (caminhe, corra, nade…), intercalando com sessões de musculação.
- Regularidade: prescrevem-se ao menos 30 minutos diários, cinco vezes por semana. A intensidade varia caso a caso.
Remédios: eles entram na área quando mudanças de hábito não são suficientes
- Estatinas: inibem a produção de colesterol pelo fígado. Chegam a reduzir o LDL em mais de 60%.
- Ezetimiba: coadjuvante, o comprimido atua no intestino, buscando evitar a absorção do colesterol ali.
- Ácido ursodesoxicólico: a molécula, também presente no nosso corpo, dissolve cálculos biliares formados pelo colesterol.
- Niacina: a vitamina do complexo B pode elevar em até 30% o HDL e ajudar a baixar o LDL e os triglicérides.
- Anticorpos monoclonais: injetáveis, inibem a ação de uma proteína cuja presença está associada ao LDL nas alturas.