A bioquímica Bettina Malnic é uma das poucas especialistas brasileiras quando o assunto é o funcionamento do nosso olfato. Ela criou o Laboratório de Neurociência Molecular no Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP) para decifrar como as diferentes moléculas de odor se conectam a receptores no nariz e depois são interpretadas pelo cérebro. E, em seu pós-doutorado nos Estados Unidos, trabalhou com Linda Buck, cientista que, em 2004, ganhou o Prêmio Nobel por ter identificado os 400 receptores olfativos do ser humano.
Bettina ainda não sabe descrever, contudo, quais regiões do cérebro são ativadas por cheiros específicos. Nem ela nem seus pares. “Aromas diferentes podem excitar áreas e circuitos neurais diferentes. Alguns já conhecemos, como o sistema límbico, responsável por nossas emoções, e o hipotálamo, que controla reações fisiológicas como fome e sede. Mas não sabemos todas as regiões cerebrais impactadas pelos odores nem suas potenciais respostas a isso”, conta.
Sem descortinar por completo as redes e os reflexos do nosso sistema olfativo, é difícil garantir que as moléculas odoríferas irão despertar essa ou aquela reação psíquica ou física em alguém. E, para complicar, a gente sabe que o mesmo cheiro que agrada uns desagrada outros. Daí que cravar se um aroma terá efeito A ou B em mim ou em você é uma questão cheia de incógnitas para a ciência.
Assim chegamos aos óleos essenciais, utilizados de forma terapêutica para disparar reações na mente e no corpo. Até que ponto eles realmente mexem com nosso organismo? Bettina é cautelosa, ainda mais quando propagam por aí que a aromaterapia (prática que tem nesses óleos sua matéria-prima) oferece solução para todos os males. A cientista só não duvida de que os aromas possam trazer bem-estar — e defende mais pesquisas para desbravar seus efeitos.
Não é de hoje que se percebe que estímulos olfativos podem alterar o estado de ânimo ou induzir o relaxamento. E boa parte dos óleos essenciais é vendida justamente por essa propriedade. Fica fácil entender, então, por que a procura por esses produtos decolou com a pandemia. Diante do isolamento social e do estresse do período, quem já tinha uma inclinação por práticas mais naturais foi atrás.
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E muita gente resolveu experimentar e adquirir seu “kit calma”, colocando um frasquinho de óleo de lavanda ou gerânio num difusor dentro de casa. Nas redes sociais, bombaram indicações e receitas de como utilizar os óleos, entre elas temeridades como a ideia de uma influenciadora digital de pingar gotas na máscara de proteção — jamais faça isso!
Em São Paulo, só em uma farmácia de manipulação, a Equilíbrio, que tem mais de 30 anos de existência, houve aumento de 35% no consumo desses itens no comparativo 2020 e 2019. A Phytoterápica, empresa fabricante de óleos essenciais, viu um boom ainda maior: as vendas no ano passado cresceram 60% em relação à pré-pandemia. O faturamento anual chegou a 28 milhões de reais, e a previsão é alcançar 60 milhões em 2021.
A indústria da beleza, com sua expertise em fragrâncias, também pegou carona no movimento. O Boticário, por exemplo, acaba de lançar a linha Aroma & Terapia, apresentada como perfumaria funcional por incluir os óleos essenciais.
Sim, todo mundo queria mais conforto e paz num cenário de pavor, tristeza e incerteza. E um jeito fácil e agradável de chegar lá, por que não, seria pingando uma gota de lavanda no travesseiro antes de dormir.
A questão é que, se por um lado tem gente recorrendo aos óleos como uma forma mais natural e gostosa de apaziguar a tensão — o que é legítimo quando se toma a decisão com bom senso e informação —, há quem busque ou venda os aromas como um remédio capaz de alavancar a imunidade ou tratar doenças sérias como demência e câncer. Muitas vezes sem nem saber do que se trata.
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Os óleos essenciais são basicamente extratos vegetais concentrados obtidos por prensagem ou destilação a vapor de flores, folhas, cascas, frutos ou sementes — a meta é capturar seu cheiro. A primeira lição para os leigos parece óbvia, mas necessária: a maioria é feita para o olfato. Então não cogite ingerir!
Só que as essências em frasco não são sempre produzidas seguindo o mesmo roteiro — depende muito do cultivo e das técnicas de extração. E os rótulos nem sempre evidenciam todos os componentes da fórmula, até porque não há uma regulamentação para isso. Assim ficam algumas dúvidas no ar…
Do nariz ao cérebro
Os cheiros vêm de moléculas químicas voláteis, ou seja, que flutuam pelo ar. Quando elas entram nas narinas, ativam neurônios olfatórios que ficam na região superior da cavidade nasal — cada molécula se encaixa em um ou mais desses receptores nervosos específicos. Tais estruturas, por sua vez, estão conectadas com outros neurônios numa região na base do cérebro, o bulbo olfatório.
As moléculas em si se degradam, mas seus estímulos seguem a cadeia de transmissão, acionando diferentes áreas cerebrais. As principais mapeadas pela ciência são o sistema límbico, envolvido em memórias e emoções, e o hipotálamo, que controla nossas respostas fisiológicas e a reação ao estresse.
Ontem e hoje
As teses e demais escritos sobre a aromaterapia costumam resgatar sua história milenar. É por eles que ficamos sabendo que vasos de alabastro com resíduos de óleos essenciais foram encontrados em tumbas de faraós com data de mais de 6 mil anos. Que os romanos que invadiram o Egito levaram as essências para a Europa. Que no Livro do Imperador Amarelo, que reúne os princípios da medicina chinesa, há citações de remédios aromáticos. E que, em 1928, um químico francês, Maurice René de Gattefossé, apresentou o termo “aromaterapia” pela primeira vez.
Ele estava trabalhando em seu laboratório quando queimou o braço e, reação instantânea, o mergulhou em um recipiente com óleo de lavanda. A sensação de alívio, sem dor, infecção ou vermelhidão depois, entusiasmou sua linha de pesquisa.
Logo depois, um discípulo, o médico Jean Valnet, sem ter antibióticos à mão, recorreu a óleos essenciais de limão e camomila para a cicatrização dos ferimentos de soldados na Segunda Guerra Mundial, como conta Robert Tisserand, dono da marca de óleos essenciais que leva seu sobrenome, no livro A Arte da Aromaterapia.
Marguerite Maury, terceiro personagem a sustentar a aromaterapia moderna, foi a enfermeira e assistente cirúrgica austríaca que ficou conhecida por ter aliado a massagem à prática e conseguido resultados ainda mais visíveis sobre a pele.
Corta para os dias de hoje — e deparamos com muitos profissionais, entre apaixonados e estudiosos, se dedicando a decifrar os efeitos dos óleos essenciais e a usufruir deles em prol de clientes e pacientes. As pesquisas não param de acontecer e já existem revisões científicas sobre algumas aplicações, mas o fato é que ainda não há uma conclusão à prova de bala. O conhecimento e a prática vão se perpetuando mesmo na observação.
No laboratório, já se comprovou que a lavanda tem atividade ansiolítica e analgésica e a melaleuca dispõe de propriedades antimicrobianas. Os óleos cítricos, por sua vez, parecem contar com um potencial antidepressivo.
Mas isso não significa que você vai resolver uma ansiedade ou depressão comprando essências pela internet. Sobretudo diante de quadros mais sérios, a aromaterapia deve ser aliada do tratamento, nunca a escolha principal.
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No Centro de Reabilitação Hospital Dia, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, os aromas são coadjuvantes no atendimento multidisciplinar de pacientes com formas graves de transtornos mentais como esquizofrenia, transtorno bipolar e transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) desde 2016.
“O objetivo de usar os óleos essenciais é a melhora na qualidade de vida deles”, resume a psicóloga Maria Aparecida das Neves, que introduziu a prática ali e hoje é coordenadora das terapias botânicas na instituição.
“São pessoas que sofrem com estresse, confusão mental e distúrbios do sono. E os óleos podem ajudar a minimizar tanto os efeitos decorrentes da própria patologia, como alterações de humor e dificuldades de socialização, quanto os efeitos colaterais das medicações de uso contínuo, caso das náuseas”, contextualiza.
Na prática, são utilizados óleos de lavanda, bergamota, laranja-doce, limão, entre outros, em oficinas em que os pacientes cheiram fitas olfativas, se valem de bastões roll-on para passar o aroma sobre a pele ou recebem massagens nas mãos com gotas de óleo diluídas em cremes. A experiência acolhedora se reflete na alta adesão do grupo ao encontro.
Outro profissional que alia a aromaterapia ao seu arsenal de cuidados é o professor de enfermagem da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Thiago da Silva Domingos.
Sua experiência envolve a aplicação de aromas no hospital da Faculdade de Medicina de Botucatu, no interior paulista, onde fez seu mestrado e seu doutorado adotando o óleo essencial de lavanda e o de gerânio como recurso adicional ao controle do estresse entre enfermeiros que atuam em UTIs e ao bem-estar de pacientes com doenças mentais que faziam uso de medicamentos tradicionais.
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A quem confia cegamente nos óleos essenciais pelo simples fato de serem naturais, ele adverte: “Já aconteceu de uma pessoa estar em uma aula comigo aprendendo a usar os óleos e ter uma reação alérgica a lavanda, disparadamente o mais consumido e seguro do mundo”, recorda Domingos.
“Antes de usar, aconselho fazer um teste. Dilua o óleo essencial em um óleo carreador numa concentração baixa. Aplique no antebraço e observe por 24 horas. Se ficar tudo bem, ótimo. Se tiver qualquer reação, lave e não volte a usar”, orienta.
As formas de uso
Respeitar as instruções é regra básica para utilizar com segurança
- Com difusor: considere a quantidade de óleo e o tempo de exposição. Se você usa um difusor daqueles de tomada, o seguro é pingar de cinco a seis gotas e deixar ligado por uma hora, no máximo.
- Na roupa de cama: à noite, antes de dormir, alguns aromaterapeutas indicam pingar uma única gota de óleo essencial de lavanda no cantinho da fronha do travesseiro. Bem suave.
- No banho: mesmo que você não tenha banheira, uma possibilidade é pingar duas gotas do óleo de sua preferência no chão do box. O vapor da água criará uma breve sauna aromática.
- Na pele: nunca aplique um óleo essencial direto na pele. Ele deve ser diluído antes em cremes ou óleos carreadores em uma concentração de 2% — 2 ml do óleo para 100 ml do carreador.
O que diz a ciência
Um dos desafios científicos que envolvem os óleos essenciais é saber exatamente o que ou quais moléculas ali dentro acionam a reação desejada. “Um óleo de lavanda, por exemplo, tem por volta de 300 moléculas químicas. Cada uma com um efeito próprio. Algumas podem promover um relaxamento, outras podem ser inócuas e algumas podem ser até tóxicas”, relata a bioquímica Bettina Malnic. Não dá, portanto, para colocar os aromas como panaceia, e é prudente desconfiar de certas propagandas.
A rede Cochrane, entidade independente e sem fins lucrativos que faz revisões de estudos sobre diversas abordagens voltadas à saúde, já realizou alguns apanhados e análises de pesquisas sobre aromaterapia para discriminar o que tem ou não validade à luz da ciência. Constatou que a maioria das alegações não conta com respaldo. Isso inclui uso para demências, náuseas, vômitos ou mesmo as dores do parto.
Na mesma toada, o biólogo Luiz Gustavo de Almeida, coordenador nacional do Pint of Science no Brasil, empreendeu uma busca rápida no Google Acadêmico para levantar trabalhos sobre os efeitos e potenciais da aromaterapia. “De cara, foi possível encontrar mais de 26 mil artigos, mas a qualidade deles é inversamente proporcional à quantidade”, critica.
Dentre os estudos mais citados, uma revisão apontava que a prática reduz a ansiedade, a fadiga, o estresse, a dor de cabeça e a má qualidade do sono entre pacientes que precisam de hemodiálise.
“Mas o estudo deixa muitas lacunas. Primeiro foi feito com uma amostra pequena, de dez pessoas. Segundo, a comparação foi feita entre um grupo que só ficou ligado à máquina de hemodiálise e outro que recebeu o aromaterapeuta durante a sessão. A gente sabe que a relação médico-paciente já pode alterar o resultado. Então como saber se o que funcionou foi o aroma ou foi a atenção humana?”, questiona Almeida.
Pelo menos há experimentos com metodologia mais confiável em curso. Na Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, pesquisadores testaram 35 óleos essenciais e chegaram a cinco capazes de combater a bactéria que causa a doença de Lyme, transmitida por carrapatos — trata-se de um problema mais preocupante nos EUA, inclusive pela resistência do micróbio a antibióticos.
Em culturas de células, os óleos tiveram desempenho excelente. Nos testes em humanos, os resultados foram parciais, e mais uma rodada é esperada para checar a eficácia.
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Cheira bem, cheira mal
O fato é que temos uma aptidão natural a gostar de uns odores e fugir de outros. “Aprendemos que coisas que cheiram bem não vão fazer mal e que o odor de gás vazando ou de uma comida estragada é perigoso. Só que não podemos confundir uma sensação de bem-estar individual com um tratamento em si”, analisa Paulo Almeida, diretor-executivo do Instituto Questão de Ciência (IQC).
O psicólogo usa esse raciocínio para distinguir uma vivência particular — “Óleo de lavanda me faz tão bem!” — daquilo que é constatado pelo método científico — “Tal terapia controla a ansiedade nesse perfil de pacientes”.
“Não dá para alegar um benefício sem um estudo com grupo controle, com grande amostragem e replicabilidade, revisado por pares e publicado em periódicos reconhecidos. Não podemos levar em conta a fé do pesquisador no assunto”, argumenta. Vem daí a principal crítica do IQC à inclusão de práticas integrativas no SUS, entre elas a homeopatia e a aromaterapia.
“Não é cientificismo pelo cientificismo. Nem uma cruzada contra os óleos essenciais. A nossa missão é, dentro do que é gasto com o serviço público, determinar um filtro do que pode passar com base na comprovação científica”, afirma o diretor do instituto. “Precisamos separar o cuidado privado, em que você é livre para escolher o que achar melhor para si, daquilo que depende de recursos públicos”, completa.
Eu mesma adoraria um aroma para me acalmar, outro para ajudar a me concentrar e mais um para não sentir dor. Mas entendo, mesmo vendo relatos positivos pelas redes sociais, que há limitações nesse sentido.
Isso sem falar em alguns impropérios e absurdos de que tomamos conhecimento, como “terapeutas” prescrevendo óleos essenciais para tratar o câncer — denúncias nessa linha, englobando até mesmo empresas de grande porte, estão no documentário A Indústria da Cura, da Netflix.
Tem mais mistérios entre o ar e o nosso organismo do que sonha a mais vã biologia. Por isso, quem for desfrutar dos óleos essenciais deve começar suspeitando de promessas milagrosas. Essas definitivamente cheiram muito mal.
Lista de cuidados
O que saber antes de lançar mão de óleos essenciais
Pode tomar?
Há diferentes escolas de aromaterapia: a francesa propaga a ingestão; a inglesa não. Diante do desconhecimento do que realmente vai no óleo, não leve à boca.
Causa alergia?
Como são concentrados, os óleos essenciais podem provocar reações alérgicas ou queimar a pele sob o sol se não forem diluídos em creme ou óleo carreador.
É como um remédio?
Nunca substitua um medicamento prescrito pelo médico por um óleo essencial. As pesquisas não garantem a eficácia deles em detrimento de práticas convencionais.
Precisa de orientação?
Sempre o ideal é se consultar com um profissional que entenda do riscado. Não dá para misturar óleos ou elevar a dose sem conhecer a fundo a técnica.
Dá para usar no umidificado de ar?
É desaconselhável passar a noite com o umidificador exalando óleo essencial. É muito tempo de ação — cerca de oito horas — e pode irritar as vias aéreas superiores.
Preço faz diferença?
Se você encontrar um óleo essencial de rosa, que é supercaro, com preço semelhante ao de um de laranja, bem mais comum, atenção! Ele pode conter impurezas.
Dez aromas que fazem sucesso
O que as pesquisas e os compêndios destacam sobre eles
Lavanda: o óleo mais consumido no mundo ajuda a criar um ambiente tranquilo. É indicado para melhorar o sono.
Melaleuca: famosa pela função antifúngica, podendo ser utilizada em pomadas para tratar micoses.
Menta: refresca o ar e a respiração e é também estimulante. Melhor não usar antes de deitar.
Laranja-doce: seu aroma é usado para afugentar o baixo-astral.
Camomila: a exemplo da lavanda, é outra planta que favorece a sensação de relaxamento — não confunda óleo com chá.
Alecrim: costuma ser indicado como estimulante. Mas deve ser evitado por quem tem pressão alta, grávidas e crianças.
Olíbano: um dos mais antigos, está associado a rituais sagrados, elevação da consciência e clareza nos pensamentos.
Gerânio: o óleo é comumente extraído das folhas e empregado para aliviar a tensão e o mau humor.
Cedro: o aroma amadeirado e acolhedor costuma ser indicado para trazer uma sensação de calma e tranquilidade.
Ilangue-ilangue: outro exemplo destinado a reduzir o estresse. Há quem o associe a ganhos na autoestima.
Nota de esclarecimento: após a publicação desta reportagem, a aromaterapeuta certificada pela Abraroma Sol Del Carlo nos escreveu para pontuar algo muito importante em se tratando de óleos essenciais: nesse campo, não devemos nos guiar pelo nome popular das plantas ou matérias-primas, mas pelo nome científico das espécies utilizadas nos óleos. Sol explica que tanto a menta como a camomila, citadas na matéria, possuem inúmeras espécies, às vezes com propriedades distintas. Ela cita que enquanto a Mentha piperita tem propriedades mais estimulantes, outras espécies, como a Mentha spicata, apesar de serem revigorantes, têm efeito mais sedativo e podem ser usadas antes de dormir. É fundamental, portanto, explicitar a espécie em questão.