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Medicina

O cerco à homeopatia

As fórmulas homeopáticas sofrem a maior crítica de todos os tempos e deixam de ser indicadas em vários países. Entenda o debate e o que aprendemos com ele

por André Biernath Atualizado em 20 jan 2020, 10h08 - Publicado em
20 jan 2020
10h01

O médico alemão Edzard Ernst carrega a homeopatia no sangue. Seu avô e seu pai eram homeopatas e ele próprio seguiu os passos de seus antepassados após se formar na Universidade de Munique, em sua terra natal. Sua curiosidade, porém, fez com que tomasse um caminho oposto: professor de medicina complementar da Universidade de Exeter, no Reino Unido, ele passou a estudar profundamente a eficácia das terapias alternativas ou integrativas e concluiu que sua especialidade não tinha respaldo na ciência.

“Os produtos homeopáticos, em sua maioria, não possuem nada além de açúcar, mas, mesmo assim, eles podem ser danosos se utilizados como uma opção que substitui tratamentos realmente efetivos. Se sua mãe tem câncer e opta pela homeopatia, isso claramente só vai acelerar a morte dela”, disse o pesquisador a SAÚDE durante sua última visita ao Brasil.

Após uma série de artigos, reportagens, palestras e livros, Ernst se tornou um dos mais notáveis céticos da medicina e chegou a ter um bate-boca público com o príncipe Charles, o primeiro nome da linha de sucessão ao trono britânico e grande apoiador da homeopatia. A briga repercutiu em sua própria carreira, pois ele acabou aposentado compulsoriamente de seu cargo na universidade inglesa antes da hora.

O cientista alemão foi precursor, na verdade, de um movimento que se intensificou na última década com o objetivo de restringir ou eliminar a homeopatia de serviços públicos de saúde e até seu ensino nas universidades. A justificativa é bem pragmática: em época de crise e austeridade fiscal, por que gastar dinheiro de impostos com algo cujo ganho terapêutico seria, no mínimo, duvidoso?

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De 2015 pra cá, países como Reino Unido, França, Espanha, Austrália e Estados Unidos passaram a tomar ações críticas e contundentes nesse sentido.

Veja mais: Este homem é o maior inimigo de homeopatia, acupuntura e companhia

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Afinal, o que é homeopatia?

Em meio a discussões acaloradas, detratores e entusiastas parecem concordar em um ponto: pouca gente sabe de verdade o que é homeopatia. Há muita confusão entre essa e outras vertentes bastante populares, como a fitoterapia e os florais de Bach. Criada pelo alemão Samuel Hahnemann (1755-1843) no fim do século 18, ela se baseia em dois princípios.

O primeiro deles é o “similar cura similar”. Em outras palavras, a mesma substância que causa sintomas em sujeitos sadios seria capaz de tratar quem possui uma doença. Em segundo lugar, para ter um papel terapêutico, esse elemento precisaria ser diluído e agitado em algum líquido muitas e muitas vezes.

Dentro do raciocínio, quem deseja parar de fumar, por exemplo, deveria ingerir doses mínimas de tabaco. “Fazemos uma abordagem abrangente de cada paciente e tentamos compreender o contexto global em que a doença ocorre”, explica a médica homeopata Silvia Waisse, professora na pós-graduação em história da ciência da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Outra premissa da homeopatia é que todos os ingredientes utilizados por ela vêm dos reinos mineral, vegetal e animal.

“O grande ponto é que essas ideias de Hahnemann continuam inalteradas há dois séculos e não foram atualizadas diante das inúmeras descobertas e avanços científicos”, aponta o neurologista Luciano Melo, colunista da Folha de S.Paulo.

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Diversas pesquisas seguem investigando possíveis aplicações para os tratamentos homeopáticos. Porém, em sua imensa maioria, elas concluem que esses produtos não surtem efeito superior ao placebo (pílulas sem nenhuma substância ativa).

A sucessão de resultados negativos motivou o periódico científico The Lancet, um dos mais respeitados do mundo, a divulgar em 2005 um editorial que decretava o fim da linha para esse assunto. “Os médicos precisam ser incisivos e honestos com seus pacientes sobre a falta de benefícios da homeopatia”, diz o texto.

Passados 14 anos dessa publicação, o debate e as críticas continuam…

Veja mais: Placebo: efeito real, enganação ou as duas coisas? – Detetives da SAÚDE

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Os pilares da terapia

Eles são a base para a formulação de bolinhas e extratos

Semelhantes

O alemão Samuel Hahnemann se inspirou em textos da Grécia antiga para decretar que “similar cura similar”. A proposta está em usar um elemento parecido (ou idêntico) ao causador do problema.

Segundo o raciocínio, isso mudaria a energia vital da pessoa. E, ao contrário da ciência convencional, todos os itens devem ser testados apenas em indivíduos sadios.

Infinitesimais

O ingrediente passa por um intenso processo de diluição e agitação. Essa etapa pode ser repetida por até 200 vezes, a depender da prescrição. Há situações em que a substância ativa está numa concentração tão baixa que nem é possível mais identificá-la ali dentro.

Segundo o princípio original, quanto mais diluída a fórmula, maior a sua potência.

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(Foto: Tomás Arthuzzi/SAÚDE é Vital)
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A homeopatia no Brasil

Apesar de toda a contenda internacional, a situação da homeopatia parece estar menos arranhada no Brasil. Afinal, ela é reconhecida como uma especialidade médica pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) desde 1980.

Além disso, essa abordagem faz parte, desde 2006, da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares do Ministério da Saúde, sendo oferecida gratuitamente em algumas unidades da rede pública. Segundo relatório do governo, somente em 2016 foram realizados 13 500 atendimentos homeopáticos em 340 postos espalhados por 259 localidades.

São Paulo, a maior cidade do país, aprovou em 2017 uma lei que estabelece a criação do Serviço de Atendimento Homeopático nos hospitais municipais.

Se antes muitas dessas ações passavam despercebidas, nos últimos dois anos elas começaram a encontrar resistência pesada por aqui.

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“O que vemos são decisões políticas, corporativistas e prejudiciais à população, que é induzida ao erro e fica à mercê de coisas que simplesmente não funcionam e podem até atrasar o diagnóstico e o tratamento de doenças graves”, critica a bióloga Natália Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência, grupo que inicia uma campanha nacional contra o uso da homeopatia no sistema público.

“Já enviamos ofícios ao CFM e ao Ministério da Saúde cobrando uma posição deles. Vamos também publicar relatórios para apontar erros e informações falsas que são difundidas por aí”, revela Natália. Durante a apuração, a reportagem de SAÚDE procurou o CFM, mas não obteve nenhum retorno.

Já o Ministério nos respondeu por meio de uma nota oficial: “Informamos que, atualmente, as práticas integrativas incorporadas no SUS passam por revisão técnica. A pasta irá manter na lista dos serviços ofertados apenas aquelas que obtiverem evidências científicas sólidas de efetividade comprovada para a prevenção de doenças e como tratamento complementar à medicina tradicional para uma série de agravos”.

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História diluída

Os principais marcos da homeopatia no Brasil e no mundo

1796: o médico alemão Samuel Hahnemann escreve a primeira dissertação sobre o tópico e cria seus princípios básicos.

1840: o francês Benoit-Jules Mure (1809–1858) viaja a Santa Catarina e começa a disseminar a homeopatia por aqui.

1918: o ensino dessa vertente é oficializado no país, tendo como referência o Instituto Hahnemanniano do Brasil.

1980: o Conselho Federal de Medicina (CFM) estabelece que a homeopatia é uma especialidade médica.

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2005: o periódico The Lancet publica um editorial que defende “o fim da homeopatia”, pela falta de evidências.

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(Foto: Tomás Arthuzzi/SAÚDE é Vital)
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Os argumentos de cada lado

O presidente da Associação Médica Homeopática Brasileira (AMHB), Luiz Darcy Gonçalves Siqueira, rebate: “Os críticos dizem que as práticas integrativas são um enorme gasto para os cofres públicos, mas um trabalho recente realizado pela Fundação Oswaldo Cruz descobriu que elas representam apenas 2,6 milhões de reais, ou 0,008% do total das despesas ambulatoriais e hospitalares do Ministério da Saúde em um ano”.

E continua: “Esses grupos contrários não vão prosperar no Brasil, pois falamos de uma prática que exige especialização e os profissionais continuarão a exercer sua função”.

Para inaugurar sua campanha, o Instituto Questão de Ciência trouxe ao Brasil, no final de 2019, dois dos responsáveis pelas mudanças recentes no uso da homeopatia no Reino Unido e na Austrália, que fizeram uma série de palestras.

O primeiro deles é o jornalista inglês Michael Marshall, diretor de projetos da Good Thinking Society. Ele é um dos líderes do movimento que promoveu overdoses coletivas de produtos homeopáticos na frente de farmácias espalhadas por cidades de Inglaterra, País de Gales, Irlanda do Norte e Escócia, com o objetivo de alertar as autoridades e a população de que não havia nenhum componente ativo nos vidrinhos.

“Não é nosso trabalho dizer o que os médicos devem fazer nos consultórios, mas não podemos aceitar nenhum desperdício de dinheiro público com coisas inefetivas”, defende.

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Já a física alemã Loretta Marron, CEO da Friends of Science in Medicine, partiu de uma experiência pessoal para a militância anti-homeopatia em terras australianas.

“Sou sobrevivente do câncer e sempre fui abordada por outros pacientes. Uma mulher me contou que havia apostado num homeopático para abandonar o cigarro. Ela não apenas continuou a fumar como desenvolveu um tumor no pulmão. Se tivesse recorrido a um tratamento eficaz, talvez não tivesse sofrido com a doença”, relata.

Tanto o Reino Unido como a Austrália estão próximos de banir de vez a homeopatia, pelo menos na esfera pública.

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Pra mim, deu certo…

Cientistas rebatem os efeitos da homeopatia com duas explicações

Efeito placebo

A mente tem poder: só o fato de alguém dizer ou você acreditar que algo vai trazer algum resultado específico já provoca modificações e reações em seu organismo. Isso ocorre com mais intensidade nos problemas com algum componente emocional, caso de dores crônicas ou mesmo na depressão.

História natural

Certas doenças têm início, meio e fim e não existe nada que possa ser feito para reduzir sua duração. A gripe e o resfriado, por exemplo, demoram sete dias para acabar, não importa quantos remédios você tome.

Há outras condições que são sazonais: elas vêm e vão de acordo com a fase da vida ou a época do ano. Alergias são um exemplo.

Então, o que devo fazer?

Em 2015, o governo australiano fez uma das maiores revisões científicas sobre homeopatia. A conclusão foi: “Não há nenhuma condição de saúde em que ela se mostrou efetiva”.

O assunto gerou confusão e os defensores da vertente divulgaram uma suposta versão anterior desse mesmo documento dizendo que existiam, sim, ganhos comprovados ao menos em cinco doenças.

Nós perguntamos, então, às sociedades médicas brasileiras que representam as especialidades que tratam esses problemas como elas se posicionam. Veja as respostas abaixo:

Fibromialgia

“A aplicação da homeopatia no tratamento da fibromialgia não está estabelecida cientificamente. As publicações que mencionam os medicamentos homeopáticos nesse contexto são poucas. Assim, não há evidências suficientes para garantir a eficácia de modo que se possa recomendar seu uso.” – Sociedade Brasileira de Reumatologia

Após a quimio e a radioterapia

“A homeopatia pode apresentar benefícios no tratamento de efeitos colaterais das terapias oncológicas, porém não há estudos clínicos que permitam avaliar precisamente a eficácia dela nesse cenário. Reforçamos a importância de os pacientes seguirem os tratamentos convencionais, recomendados por oncologistas clínicos.” – Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica

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Íleo pós-operatório

“O tratamento homeopático dessa condição [marcada por alterações no funcionamento do intestino depois de cirurgias] certamente está fora das considerações da absoluta maioria dos gastroenterologistas alopáticos que fazem parte da nossa entidade.” – Federação Brasileira de Gastroenterologia

Otite e infecção de nariz ou garganta

Procuramos a Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-Facial e a Sociedade Brasileira de Otologia, mas, por meio das assessorias de imprensa, ambas optaram por não se pronunciar. Até agora, não há estudos robustos com resultados favoráveis.

Veja mais: Pingar água oxigenada no ouvido ajuda a combater gripe e otite?

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Informação é crucial

Em meio à discussão, o que nós, cidadãos antenados com a própria saúde, podemos aprender? A primeira lição é pesquisar sempre e confiar nas respostas e recomendações da ciência.

Hoje é possível ter acesso a informação de qualidade na internet: procure páginas de universidades e entidades reconhecidas, do governo e de veículos sérios. E tenha o pé atrás com artigos, posts e pessoas que prometem soluções mágicas ou a cura por meio de uma única substância, seja qual for a origem.

A partir dessas leituras, reúna suas dúvidas e questione o médico para que elas sejam respondidas de acordo com seu caso. “Não existe liberdade de escolha sem conhecimento: as pessoas só são livres de verdade se souberem o que estão comprando e ingerindo”, raciocina o farmacêutico Jean Pierre Schatzmann Peron, do Laboratório de Interações Neuroimunes do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP).

É importante ter a noção também de que nenhuma terapia é 100% livre de efeitos colaterais. O ideal é que ela traga o maior número de benefícios com o mínimo de eventos adversos — por outro lado, de nada adianta uma molécula que não tem toxicidade mas também não traz mudanças positivas.

Os remédios convencionais aprovados pelas agências regulatórias passam por diversas etapas de pesquisa e uma rigorosa análise de segurança e eficácia antes da aprovação”, ressalta a bioquímica Ana Campa, do Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP. Esse processo, aliás, não abrange os homeopáticos.

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Entre críticos e defensores, cabe refletir que, se falta comprovação de um lado, do outro a homeopatia pode ter algo a ensinar. “Os médicos tradicionais precisam ser lembrados de que é preciso olhar o ser humano como um todo, e não apenas a doença. O cuidado, a compaixão, a dedicação e o tempo no consultório são essenciais em qualquer recuperação”, diz Ernst.

Palavras de quem viveu e lutou nos dois lados do embate e não arreda mais o pé da causa que abraçou.

Veja mais: Como fugir das fake news em saúde – podcast Detetives da SAÚDE

Outras práticas complementares muito populares Brasil afora

Fitoterapia: uso de plantas com fins medicinais. Vem na forma de chás, extratos, pomadas, comprimidos, cápsulas… Para mostrar seu efeito, deve passar por estudos criteriosos.

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Naturopatia: recorre aos elementos naturais para entender a origem dos males que afetam nossa força vital e resgatar o equilíbrio. Mistura um pouco de fito e homeopatia.

Florais de Bach: um conjunto de 38 extratos de flores e folhas catalogados pelo patologista inglês Edward Bach (1886-1936) para amenizar as emoções negativas.

Ortomolecular: recorre ao uso de vitaminas, hormônios, minerais e suplementos acima da dose recomendada para supostamente prevenir e tratar doenças.

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Mercado bilionário

Apesar dos contratempos atuais, as vendas desses produtos continuam crescendo

Engana-se quem pensa que a homeopatia seja uma prática de farmácias de bairro: algumas companhias líderes de mercado, como a francesa Boiron, têm atuação forte em vários países (inclusive no Brasil). Outras empresas, antes restritas ao Oriente, começaram a colocar em prática planos de expansão para outros continentes.

De acordo com relatório da consultoria Transparency Market Research, o mercado global de homeopatia movimentou 3,8 bilhões de dólares em 2015, com uma projeção de crescimento para 17,4 bilhões até 2024.

O foco das ações de marketing e propaganda desses laboratórios será justamente no comércio online, com foco especial nos países em desenvolvimento do Oriente Médio, da África e da Ásia. Esse movimento é contestado por organizações científicas devido à falta de estudos e provas de eficácia.

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