Aqui vai uma história verídica sobre cansaço. Anna Katharina Schaffner e Levi Felix levavam uma vida aparentemente normal. Ela como professora de literatura na Inglaterra. Ele como vice-presidente de uma start-up nos Estados Unidos. Workaholics incorrigíveis, eram do tipo que pulam da cama antes de o relógio tocar, improvisam um lanche rápido no almoço e, chegando em casa, não conseguem se desplugar do trabalho.
Um belo dia, entraram em pane. Anna caiu de cama. Felix chegou a ser levado às pressas para o hospital devido a um colapso nervoso. Hoje eles passam bem, obrigado! No período em que recarregavam as baterias, o americano viajou pelo mundo e fundou uma ONG focada em desintoxicação digital. Anna reduziu o ritmo no emprego, passeou e, após muita pesquisa, escreveu um livro sobre a condição que a deixara doente.
Em Exhaustion, a History (“Exaustão, uma História”, ainda inédito em português), a professora defende que, por mais conectados que estejamos hoje, o século 21 não deve ser encarado como o mais cansativo de todos os tempos. “A exaustão sempre existiu. Na Idade Média, era chamada de acídia e considerada um pecado. No século 19, ganhou o nome de neurastenia, e escritores famosos como Oscar Wilde, Franz Kafka e Virginia Woolf acabaram diagnosticados como tal”, explica.
O filósofo coreano Byung-Chul Han, da Universidade de Berlim, na Alemanha, pensa diferente. Autor de A Sociedade do Cansaço, ele compara os dias de hoje à vida selvagem. E critica o conceito de multitasking – a execução de várias tarefas ao mesmo tempo, como comer, ver TV e ainda ficar no celular. “Isso não representa progresso civilizatório. Trata-se de retrocesso”, dispara. E vai além: “Um animal ocupado em mastigar a presa deve tomar cuidado para que, ao comer, ele próprio não acabe comido”, faz a metáfora.
No Brasil, a opinião de Han é compartilhada pelo filósofo Luiz Felipe Pondé. “Nunca vivemos tanto, tivemos que ser tão eficientes e felizes, além de precisarmos acumular tanta coisa”, avalia. A neurologista Dalva Poyares, presidente da Associação Brasileira de Medicina do Sono, concorda: “Andamos trabalhando demais e dormindo muito pouco”. Uma pesquisa recente do Ibope dá uma ideia da repercussão desse comportamento: 98% dos brasileiros entrevistados se dizem cansados e 61%, exaustos.
“Por falta de repouso, nossa civilização caminha para a barbárie”, escreveu opensador alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900). Ele já alertava para a necessidade de às vezes pisar no freio. E, se não visualizamos o impacto imediato no mundo à nossa volta, é nítido que a saúde já começou a pagar opreço.
Para entender melhor os efeitos orgânicos do cansaço, os estudiosos passaram a dividi-lo em três estágios. O primeiro é o cansaço em si, um estado de indisposição após um esforço físico (uma partida de futebol) ou mental (um exame de vestibular). Sentir-se cansado não é razão para pânico. Todo mundo precisa dessa reação para conhecer seus limites. “Em geral, o cansaço tende a desaparecer após uma boa noite de sono“, tranquiliza a neurologista Andrea Bacelar, diretora da Associação Brasileira do Sono. Agora, se no dia seguinte você acordar tão ou mais desprovido de energia, é possível que tenha entrado no segundo estágio, a fadiga.
O termo vem da palavra latina fatigari e quer dizer “fazer desabar”. É uma sensação de cansaço persistente, que, além de indicar limites físicos ou mentais ultrapassados, não raro também é sintoma de uma doença – a lista de mazelas associadas vai de anemia a depressão. Nessa fase, o sujeito apresenta dificuldade de concentração, irrita-se com facilidade e queixa-se de dores e fraqueza muscular. “Na maioria das vezes, o cansaço melhora com repouso e lazer. Se não melhorou, é importante procurar um médico para investigar a origem dele”, aconselha Dalva Poyares.
A situação se agrava quando a fadiga torna-se excessiva ou prolongada. Aí, sim, compromete a qualidade de vida e soma prejuízos à saúde. A certa altura, Anna Katharina relata que não tinha pique sequer para levantar da cama pela manhã. Ou seja, ela cruzou a linha para o terceiro estágio da coisa, a exaustão. A raiz etimológica, também do latim, é exhaurire, que significa “esvaziar-se”. “Sentir-se exausto é passar dos limites. É não ter recursos físicos ou emocionais para sair daquela situação”, define a psicóloga Ana Maria Rossi, presidente da International Stress Management Association (Isma-BR).
Cabeça em combustão
Quando a exaustão ocorre particularmente no ambiente de trabalho, ganha outro nome: síndrome de burnout. Aqui, a origem da expressão é inglesa e poderia ser traduzida como “queimar-se por completo”. A síndrome do esgotamento profissional foi descrita pela primeira vez em 1974 pelo psicólogo alemão Herbert Freudenberger. Segundo a Isma-BR, atinge 30% da população economicamente ativa do Brasil.
“Você desconfia que está a um passo do burnout quando começa a exagerar no uso de estimulantes, como café e refrigerante, para permanecer alerta. Esses artifícios, além de não resolverem o problema, ainda podem causar danos ao organismo”, avisa a psicóloga Heidi Hanna, diretora do Instituto Americano de Estresse.
O impacto da exaustão, não só na saúde, mas na produtividade, é devastador. “Há quem pense que passar mais tempo no escritório é sinônimo de produtividade. Nem imagina que, se estivesse descansado, produziria mais em menos tempo”, reflete Dalva.
E o problema não para por aí. Castigados pelo cansaço, os trabalhadores tendem a cometer mais e mais erros. Alguns deles de proporções catastróficas. Quer exemplos? O acidente nuclear da usina de Three Mile Island, na Pensilvânia (EUA), em 28 de março de 1979, ou o desastre ambiental do petroleiro Exxon Valdez, no Alasca (EUA), em 24 de março de 1989. Isso sem contar que muitas vezes a catástrofe é individual: a pessoa mergulha na ineficiência e na infelicidade. Se a conjuntura não ajuda, ficará a um passo de uma crise depressiva.
Identificar o burnout não é algo difícil. Existem pelo menos três sinais claros da condição: queda acentuada na produtividade, apatia e presenteísmo. Ana Maria Rossi resume essa ópera sombria: “Por mais que trabalhe, oprofissional nesse estágio não consegue produzir. Muitas vezes ele estápresente fisicamente no emprego, mas ausente mentalmente”.
Por essas e outras, Heidi Hanna aconselha prestar atenção às manifestações do burnout. Se alguma luz vermelha acende no painel do carro, é indício de que algo não está funcionando direito. Ou a temperatura do óleo está alta, ou o veículo está sem bateria ou, ainda, uma das portas está aberta. Com o nosso corpo acontece o mesmo.
“É importante detectar o problema quanto antes. Se ignorarmos o alerta, podemos ficar sem combustível ou sofrer um acidente na estrada”, compara a especialista. Agora imagine que falamos de milhões de pessoas passando por uma situação desse tipo – seja no trabalho, seja na vida em geral. Sim, segundo Dalva Poyares, o cansaço já virou um problema de saúde pública.
Leia mais: O que é Burnout
Anna Katharina e Levi Felix conseguiram escapar dessa epidemia de cansaço. Ela voltou a dar aulas na universidade e já pensa no próximo livro. Ele percorreu 15 países da Ásia ao lado da namorada e, ao retornar para casa, fundou a organização não governamental Digital Detox, que promove palestras e organiza acampamentos sobre dependência tecnológica.
Nesses eventos, os visitantes são convidados a deixar tablets, smartphones e afins do lado de fora. “Procuro dar às pessoas a chance de se desconectarem de tudo e curtirem mais e melhor a vida real”, justifica Felix.
O psicólogo Cristiano Nabuco de Abreu, da Universidade de São Paulo, afirma que, mais do que restringir, é preciso alertar a população sobre o uso abusivo da tecnologia. “Reduzir o tempo de conexão pode ser um antídoto e tanto contra o cansaço. De segunda a sexta, aconselho colocar o aparelho no silencioso, diminuir o acesso a grupos no WhatsApp e desligar o celular fora do horário de trabalho. Já aos sábados e domingos, o melhor a fazer é deixá-lo guardado na gaveta. Devemos usar a tecnologia a nosso favor”, raciocina Abreu.
Tão importante quanto repensar o emprego dos dispositivos hi-tech é criar na agenda espaços para o descanso e respeitar o período de férias. Sim, tem que parar para recarregar a energia. E, se for passear por aí, seria interessante aproveitar para também praticar meditação.
É o que sugere um estudo da Escola de Medicina Icahn do Hospital Monte Sinai, nos Estados Unidos. A equipe do biólogo Eric Schadt recrutou 94 mulheres de 30 a 60 anos e pagou a viagem delas para um resort na Califórnia. Enquanto um grupo foi matriculado em um curso de meditação, o outro ficou à vontade para curtir o local.
Após seis dias, as duas alas apresentaram resultados positivos: redução expressiva do estresse e fortalecimento da imunidade. Dez meses depois, nova avaliação. Dessa vez, os efeitos se revelaram mais duradouros nas adeptas da meditação. Conclusão: o descanso em si já faz um bem danado. Se agregar práticas meditativas, então, o corpo e a mente conseguem se desvencilhar ainda mais das garras do cansaço.
Devagar, devagarinho
Se o Detox Digital nasceu na Califórnia, o movimento Slow Life veio de Kakegawa, na província japonesa de Shizuoka. Enquanto um sugere a desconexão do mundo virtual, o outro propõe um novo estilo de vida – bem mais calmo, sem pressa e correria. Do Japão, o movimento migrou para outros países. Na Itália, ganhou uma versão gastronômica: o Slow Food, que defende paz na hora das refeições.
Entusiasta dessa corrente, o neurocientista John Fontenele Araújo, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, explica que um simples cochilo vespertino já pode trazer benefícios. Mas convém respeitar alguns preceitos, como trabalhar durante operíodo da manhã e não passar de 20 minutos de soneca. “Mais que isso, o indivíduo terá dificuldade para ficar alerta depois. É como desligar o carro em lugar frio. Para o motor pegar novamente, demora”, compara.
Outro aliado contra o cansaço nosso de cada dia é o mindfulness – “consciência plena”, em livre tradução. Falamos de um método cada vez mais popular. Em vez de fazer tudo ao mesmo tempo e agora, essa técnica de meditação, criada pelo pesquisador americano Jon Kabat-Zinn em 1979, prega realizar uma tarefa por vez.
“O multitasking não passa de ilusão. Só conseguimos fazer várias coisas simultaneamente porque aprendemos a trabalhar como robôs. Com o mindfulness, realizamos o mesmo número de atividades, no mesmo intervalo de tempo e, o que é melhor, com mais qualidade de vida”, afirma a psicóloga Danniela Sopezki, doutoranda em saúde coletiva na Universidade Federal de São Paulo. Claro que no corre-corre das grandes cidades não é um desafio dos mais fáceis se livrar desse ritmo apressado e desgastante. Mas vale a pena repensar o jeito de ver e fazer as coisas. Pelo bem da sua saúde… e da civilização.
Glossário da falta de energia
Cansaço
Estado de indisposição, geralmente transitório, provocado por esforço físico ou mental. Desaparece após uma boa noite de sono.
Fadiga
Sensação de cansaço persistente, que também pode indicar alguma doença, como anemia, depressão ou hipotireoidismo. Na dúvida, consulte um médico.
Exaustão
Quadro de esgotamento que compromete a qualidade de vida. É a terceira e mais grave fase do estresse, que pode ser dividido em alerta, resistência e exaustão.
Burnout
A síndrome do esgotamento profissional provoca estresse crônico e abala a produtividade. Atinge cerca de 30% dos trabalhadores brasileiros.