Alzheimer: descobertas da ciência para salvar as engrenagens do cérebro
Ainda estamos longe de encontrar uma cura, mas a ciência está desvendando formas de prevenir e frear o colapso cerebral que consome o paciente e a família

Por que ninguém pagou essa conta? Era o que o engenheiro mecânico Daniel München, de 54 anos, tentava entender enquanto administrava suas finanças.
“Ele sempre foi bom de cálculo, trabalhou por 20 anos na indústria automobilística, e, de repente, os números não batiam”, relata Carla Pedroso, publicitária e esposa. “Parecia que ele estava fazendo as coisas com descaso, o que não é do seu feitio.”
Os episódios foram uma surpresa para a família de Porto Alegre até que descobriram por que as contas da casa não fechavam. “Eu mesmo estava esquecendo de pagá-las. Tinha muita dificuldade de me organizar”, admite München, que começou a apresentar mudanças de humor e a enfrentar problemas visuais.
“Quando pego um livro, por exemplo, não consigo ler linha por linha. É como se houvesse um plano aqui e outro mais abaixo. Fica tudo muito confuso”, explica.
O primeiro diagnóstico que o engenheiro recebeu foi o de depressão — junto com um leve déficit cognitivo flagrado em um teste neuropsicológico.
O tratamento para o transtorno mental foi iniciado, mas, mesmo que o humor tivesse amainado, queixas relacionadas à memória e à visão não cessaram. Foi passando por uma nova bateria de exames que, em 2023, ele recebeu a notícia: tratava-se de um quadro inicial e precoce de Alzheimer.
Nesta reportagem, você vai ler sobre:
- Primeiros sinais do Alzheimer
- Casos triplicarão até 2050
- Fatores de risco do Alzheimer
- Um problema evitável
- Políticas públicas de prevenção da demência
- Loteria genética
- Como surge o Alzheimer
- Em busca de um alvo
- Novos remédios contra o Alzheimer
- O futuro do tratamento do Alzheimer
- Tratamento humanizado
- Cuidados dentro de casa
- 14 fatores por trás do Alzheimer
- Nem tudo é Alzheimer
- O que está ao nosso alcance
- Demência por definição
- Tratamento além dos remédios
- Quem cuida do cuidador
Primeiros sinais do Alzheimer
O caso não é comum — a maioria dos pacientes manifesta os sinais da doença a partir dos 65 anos —, mas ilustra bem a realidade de quem passa a viver com a doença.
“Os primeiros sinais da condição podem passar despercebidos ou ser confundidos com doenças psiquiátricas”, afirma o geriatra Leonardo Oliva, presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG).
A lista de indícios inclui mudanças comportamentais, dificuldade para cumprir atividades diárias (como cozinhar, dirigir e pagar contas) e esquecimento de episódios recentes (conversas ou eventos, por exemplo).
“Além da memória, linguagem, comportamento, capacidade de planejamento e organização, noção de espaço e percepção visual são outras funções que vão minguando com o avanço da doença, que é o tipo mais comum de demência no planeta”, explica o neurologista Wyllians Borelli, coordenador do Centro da Memória do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre.
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Casos triplicarão até 2050
Um desafio que ganha uma escala cada vez maior. Segundo os cálculos do estudo Carga Global de Doença (GBD), publicado no periódico The Lancet, 57 milhões de pessoas em todo o mundo vivem com demência. Só no Brasil, são 1,8 milhão.
E, com o envelhecimento populacional, a tendência é que os números tripliquem até a metade do século. Em 2050, serão mais de 150 milhões de casos ao redor do globo, sendo 5,7 milhões por aqui.
A depender da população analisada, estima-se que os pacientes com Alzheimer representem até 70% desse montante. Felizmente, a ciência já nos dá direções para reprogramar a rota: sabe algumas formas de reduzir o risco da condição e desenvolve remédios que, pela primeira vez, podem mudar o curso da doença.
São peças que, pouco a pouco, vão se encaixando e revelando os mecanismos por trás do Alzheimer. E nos dão pistas de como salvar as engrenagens da mente.

Fatores de risco do Alzheimer
O aumento da expectativa de vida infelizmente tem um preço: a maior predisposição a doenças crônicas, entre elas as demências. Quanto mais assopramos as velinhas, maior é o risco de encarar um déficit cognitivo.
Segundo o primeiro Relatório Nacional sobre a Demência (Renade), divulgado pelo Ministério da Saúde em 2024, um em cada 12 brasileiros com 60 anos ou mais vive com algum tipo de demência. A partir dos 90 anos, a prevalência chega a ser de um a cada três idosos.
“É uma condição extremamente comum, mas isso não quer dizer que seja um processo normal da idade”, esclarece a geriatra Claudia Suemoto, diretora do Biobanco para Estudos em Envelhecimento da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Por mais que, com a idade, estejamos expostos a processos inflamatórios que, aos poucos, minam nossos neurônios, não devemos menosprezar os sinais de algo errado com a cabeça — ou então estaremos perdendo a chance de escapar de grande parte dos prejuízos.
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Um problema evitável
Segundo estudo da USP orientado por Suemoto, 54% dos casos de demência na América Latina poderiam ser evitados prevenindo uma série de fatores de risco. O índice é superior à taxa global, de 40%.
Isso demonstra que, por aqui, no geral, os hábitos, o acesso a tratamentos de saúde e outras oportunidades que as pessoas teriam ao longo da vida podem influenciar muito mais a evolução do déficit cognitivo do que os nossos genes são capazes de determinar — diferentemente do que é visto em regiões ricas, com menor desigualdade social.
Um consenso publicado no The Lancet lista 14 fatores que, se alterados, ajudariam a evitar milhões de casos de demência ao redor do planeta.
Na infância e adolescência, o baixo nível de escolaridade precisa ser combatido. Da fase adulta à meia-idade, é crítico enfrentar um rol de situações que podem reverberar na cachola: perda auditiva, o colesterol “ruim” (LDL), depressão, traumatismo cerebral, inatividade física, diabetes, tabagismo, hipertensão, obesidade e excesso de álcool. Na velhice, por sua vez, o déficit de visão, o isolamento social e a poluição atmosférica são particularmente nocivas à mente.
Sim, há muitas oportunidades de intervir. O ponto é que, inúmeras vezes, não basta uma iniciativa particular. O comprometimento cognitivo é também um problema de saúde pública.
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Políticas públicas de prevenção da demência
Logo, precisamos de políticas que ajudem a zelar pelo nosso cérebro, garantindo acesso à educação de qualidade a todos, a redução da emissão de poluentes no ar e o controle de doenças crônicas pelos sistemas público e privado.
“Já temos programas fabulosos, como o Hiperdia, que faz acompanhamento de pacientes com hipertensão e diabetes no SUS, além de contarmos com o Programa Nacional de Imunizações, que é referência mundial”, cita Celene Pinheiro de Oliveira, geriatra e presidente da Associação Brasileira de Alzheimer (Abraz), que defende um plano de ação efetivo para as demências no país.
Já que a especialista citou as vacinas, cabe contar que, recentemente, um estudo de peso mostrou que a vacinação na maturidade não nos protege apenas de infecções, mas também de danos aos neurônios que podem resultar em colapso cognitivo.
Ao avaliarem dados de 436 mil pessoas acima dos 60 anos, pesquisadores da Universidade de Oxford, no Reino Unido, notaram que aqueles vacinados contra o vírus sincicial respiratório (VSR), ligado a casos de pneumonia na velhice, tinham 29% menos chance de ter demência.
Já os que tomaram a vacina contra o vírus do herpes-zóster tiveram uma redução de 18%. Entre idosos imunizados com as duas opções, a probabilidade foi 37% menor. No Brasil, ambas estão disponíveis na rede privada e devem entrar no SUS em 2026.
Loteria genética
São várias as formas de proteger as engrenagens do nosso cérebro, mas ainda existem aspectos que não conseguimos gerenciar ou alterar. Caso dos genes. “Mas apenas 5% dos casos de Alzheimer são determinados por variantes do DNA. A absoluta maioria é esporádica, influenciada pelo nosso estilo de vida e pelo envelhecimento”, pontua Borelli.
Quando a genética entra com tudo, o diagnóstico se repete de geração em geração e tende a ocorrer mais cedo, como aconteceu com Daniel München.
“A minha família inteira por parte de mãe teve demência, eu só tive um pouco mais cedo do que os outros”, conta o engenheiro mecânico gaúcho, que descobriu uma mutação no gene APOE, que pode ser herdado de qualquer um dos genitores e aumenta consideravelmente o risco de doenças neurodegenerativas.
Investigar essa herança pode ser interessante para pessoas que têm suspeita ou diagnóstico fechado de Alzheimer e com forte histórico familiar da condição.
Se esse não é o seu caso, não há indicação para esse tipo de teste. “Até porque não existem, hoje, terapias gênicas que corrijam essas alterações”, afirma Suemoto. A orientação geral é cultivar hábitos saudáveis e manter doenças crônicas controladas para evitar quaisquer danos à central de comando do corpo.
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Como surge o Alzheimer
Para os cientistas, estudar as variantes genéticas ligadas à demência pode ajudar a entender como ela se desenvolve no nosso cérebro — o que é ainda um mistério.
No geral, os genes identificados como predisponentes ou determinantes para o Alzheimer são aqueles que estão associados a um acúmulo de proteínas chamadas beta-amiloides na massa cinzenta.
Elas são naturalmente produzidas pelo corpo e, a princípio, desempenham uma função proveitosa ao aprendizado e à memória, atuando justamente na conexão entre os neurônios.
Elos mais fracos ou mais fortes podem determinar a lembrança ou o esquecimento de uma informação. Diariamente, essas proteínas são varridas do cérebro por um sistema de limpeza próprio durante o sono, como parte do processo de consolidação de memórias.
“Em algumas pessoas, porém, essa faxina pode deixar de ser eficiente e, então, as beta-amiloides vão se acumulando, formando placas que atrofiam a rede neuronal, causando a morte dessas células e o declínio da cognição”, descreve Elisa Resende, coordenadora do Departamento Científico de Neurologia Cognitiva e do Envelhecimento da Academia Brasileira de Neurologia (ABN).
Essas placas podem ser observadas por exames de imagem, como tomografias e ressonâncias magnéticas, e aumentam de tamanho conforme a doença progride.
As beta-amiloides são as proteínas que mais recebem a atenção dos médicos e cientistas hoje, mas não são as únicas envolvidas no quebra-cabeça dessa doença.

Em busca de um alvo
O caso do americano Doug Whitney tem desafiado os neurologistas. O portador de uma variante genética fortemente ligada ao desenvolvimento do Alzheimer de início precoce, doença que acometeu toda a sua família por gerações, não tem sinal nenhum do problema aos 75 anos.
Seu DNA foi sequenciado e analisado pelo grupo Rede de Alzheimer Dominantemente Hereditária, que reúne pesquisadores de todo o mundo para entender as origens genéticas da condição. O que os cientistas observaram é que, mesmo com o gene a favor do acúmulo de placas amiloides, outra variável impedia a ignição da demência.
Era a ausência de acúmulo da proteína tau, outro elemento que leva ao declínio cognitivo. O estudo, publicado na renomada revista Nature Medicine, mostra que outras proteínas podem se tornar alvos importantes no combate da doença.
E isso talvez explique o impacto ainda modesto das primeiras drogas desenvolvidas para modificar a trajetória do Alzheimer — antes delas, os remédios miravam somente a contenção de sintomas.
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Novos remédios contra o Alzheimer
Consolidados no tratamento de doenças autoimunes e do câncer, os anticorpos monoclonais são drogas que combatem um tipo específico de proteína ligada a uma patologia — como se fossem agentes de defesa do corpo, mas produzidos em laboratório.
Há décadas a indústria farmacêutica tem investido no desenvolvimento deles para desmantelar o acúmulo de amiloides. Em estudos iniciais, os fármacos tiveram resultados promissores, mas, em estudos clínicos mais extensos, eles beneficiaram pequenos grupos de pacientes e foram acompanhados de riscos consideráveis.
De qualquer forma, despontaram como novas opções para frear o declínio cognitivo de quem recebe hoje um diagnóstico inicial da doença.
A primeira droga a ter como alvo a proteína amiloide foi o aducanumabe, desenvolvido pela farmacêutica americana Biogen. Ela provocou a redução de placas no cérebro, mas não houve benefício clínico significativo, ou seja, não minimizou as manifestações do Alzheimer.
Sob controvérsias, foi aprovada pelo órgão regulatório dos Estados Unidos, mas não chegou a ser liberada aqui no Brasil pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Acabou sendo retirada do mercado.
Outra medicação promissora da mesma classe é o lecanemabe, que direciona seu ataque a estruturas que precedem a formação de placas amiloides. Também desenvolvida pela Biogen, em parceria com a japonesa Eisai, a droga tem demonstrado resultados promissores em ensaios clínicos.
Dados recém-divulgados durante o maior congresso sobre Alzheimer do mundo, realizado no Canadá, mostram que pacientes diagnosticados ainda no início da doença são os que mais tiram vantagem das infusões. E os efeitos se estendem por anos.
Em pesquisa com quase 1,8 mil pessoas, o medicamento reduziu em 34% o avanço do declínio cognitivo após quatro anos de aplicação. Inchaço e sangramento cerebral, no entanto, foram observados principalmente nos seis primeiros meses de uso em uma parcela dos usuários.
Há poucos meses, a agência regulatória nacional deu sinal verde para o primeiro tratamento do gênero a entrar no Brasil. Trata-se do donanemabe (nome comercial Kisunla), criado pela americana Eli Lilly, a mesma farmacêutica por trás da famosa tirzepatida (vendida como Mounjaro), prescrita para diabetes e obesidade.
Em estudos clínicos, a droga demonstrou reduzir a progressão do Alzheimer em 35% ao longo de quase um ano e meio. “Cerca de 99% das moléculas estudadas contra a doença falharam em ensaios clínicos nas últimas duas décadas. No Brasil, por exemplo, foram 25 anos sem nenhuma nova opção terapêutica antes da aprovação do Kisunla pela Anvisa, em abril deste ano”, contextualiza Luiz André Magno, diretor médico sênior da Eli Lilly do Brasil.
Por ora, o remédio é indicado apenas a pacientes com sintomas iniciais da doença e que não sejam portadores de certa variante do gene APOE4, pois eles tiveram maior risco de efeitos colaterais graves.
“São opções farmacológicas que trazem novas perspectivas para o tratamento da doença, mas são uma alternativa voltada apenas para casos iniciais, já que nenhuma molécula demonstrou reduzir o prejuízo de casos moderados a avançados, que correspondem a quatro em cada cinco diagnósticos no Brasil”, pondera o neurologista Jamary Oliveira Filho, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e coordenador do Centro de Pesquisa Clínica do Hospital Mater Dei, em Salvador.
Para os casos incipientes de Alzheimer, são recomendadas infusões mensais do donanemabe, que podem ser repetidas por até um ano e meio — período em que se atinge a eficácia máxima do produto.
A administração é feita em clínicas e deve ser monitorada, pois há risco de reações adversas, como sangramento cerebral. O preço do tratamento no Brasil ainda não foi definido, mas, para ter uma ideia, nos Estados Unidos um ano de infusões custa 180 mil reais. Ou seja, é uma terapia de alto custo, o que limitará seu acesso em escala.
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O futuro do tratamento do Alzheimer
Aliás, diante da incapacidade de reverter quadros estabelecidos de demência, os cientistas começaram a testar o caminho oposto: encontrar pessoas que tenham placas amiloides no cérebro mas não manifestam sintomas de declínio cognitivo.
A ideia é que, com base em um exame de sangue que rastreie a proteína problemática, seja possível entrar com a droga antes para prevenir o desenvolvimento da doença. O donanemabe, da Lilly, protagoniza estudos com essa proposta, ainda não concluídos.
Outra aposta da ciência reside nos análogos de GLP-1, as “canetas emagrecedoras”. Acredita-se que elas tenham um efeito neuroprotetor, além de atuarem em dois dos fatores de risco do Alzheimer, a obesidade e o diabetes.
A semaglutida, princípio ativo do Ozempic, está sendo testada para essa finalidade, e os resultados do estudo da fabricante Novo Nordisk estão previstos para o fim do ano.

Tratamento humanizado
Por enquanto, em matéria de tratamento, a maioria dos pacientes toma medicações como os inibidores da colinesterase e a memantina, classes bem consolidadas que, apesar de não combaterem a possível causa da doença, amenizam os sintomas e ajudam a desacelerar o avanço do Alzheimer.
Mas não é só em pílulas e injeções que se baseia o controle da demência.
Na verdade, boa parte dos cuidados para manter a qualidade de vida dos pacientes reside em ações que estimulam a socialização e fortalecem a saúde física e a mobilidade.
Por isso, para aqueles que são diagnosticados na fase inicial da demência, é importante incentivar a autonomia e adaptar atividades prazerosas ou significativas à nova realidade. É o que o médico de Daniel München lhe recomendou.
O engenheiro continua correndo e vai sozinho até a academia perto de casa, ajuda em tarefas domésticas e curte consumir conteúdos sobre carros e tecnologia. Faz tudo com o apoio e o zelo de Carla e mantém a vontade de ter novas experiências — inclusive a de dar uma entrevista contando o que tem vivido.
Preservar a autonomia do paciente foi algo que a fotógrafa mineira Cris Montheiro também escolheu fazer com o pai, Aroldo, de 79 anos. Diagnosticado há dez anos com Alzheimer, seis deles foram morando sozinho em sua casa, com estratégias de organização elaboradas pelas filhas.
Mas, após sofrer uma queda no domicílio e apresentar outras dificuldades, o pai foi convidado a se mudar para a casa da filha mais velha, onde ficou quatro anos. Hoje, a família deu mais um passo corajoso nos cuidados com um paciente com demência: aceitou ajuda.
“Há seis meses ele está vivendo em uma instituição onde não só recebe suporte profissional como também tem uma agenda completa de atividades, algo de que gosta muito, pois sempre foi ativo”, conta Cris, que levou mais de um ano para tomar a decisão.
“Começamos a levá-lo uma vez por semana, depois duas, e ele se animava para ir para lá.” Aos poucos, a família inteira foi se acostumando à alternativa e se desvencilhando da ideia de que contratar um serviço especializado seria uma forma de abandono. Pelo contrário, seu Aroldo recebe visitas na hora do almoço e aos fins de semana.
Entre o alívio na rotina e a culpa como filha, Cris compartilha como tem sido essa jornada com quase 80 mil seguidores nas redes sociais e em seu podcast Memórias de Alzheimer.
Nas plataformas, ela conversa com famílias que enfrentam o desgaste físico e emocional de cuidar de quem ama — e de se sentir impotente diante do avanço da condição.
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Cuidados dentro de casa
“As famílias são os verdadeiros pilares do tratamento da demência no Brasil”, afirma Cleusa Pinheiro Ferri, psiquiatra e epidemiologista do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo. Envolvida na elaboração do Renade, a pesquisadora levantou dados sobre o perfil dos cuidadores de pacientes com Alzheimer.
Ou melhor, cuidadoras: 86% das pessoas nessa função são mulheres. São elas também que arcam com a maior parte dos gastos com o tratamento. Segundo o estudo nacional, cuidar de um indivíduo com quadro inicial custa, em média, 2 082 reais por mês para as famílias. Mas apenas 22% dos pacientes são diagnosticados nessa fase.
Já no estágio mais avançado, que representa quatro em cada dez pessoas com demência, o gasto praticamente dobra e chega a quase 4 mil reais.
Outros levantamentos também chamam a atenção para o aumento do risco de problemas de saúde entre os familiares, devido à sobrecarga na função.
“A pessoa tem que estar bem para cuidar plenamente do outro. Por isso, é preciso que ela conte com uma rede de apoio e tenha tempo para as suas necessidades, mantendo a saúde em dia e o prazer de viver”, afirma a presidente da Abraz.
Com voluntários em todo o Brasil, a instituição comandada por Celene Oliveira, a primeira do tipo no país, oferece oficinas e rodas de conversa para trocar experiências e, acima de tudo, garantir que as engrenagens entre pacientes e cuidadores continuem funcionando.
Afinal, sem esse acolhimento e as próprias descobertas da ciência, jamais superaremos as páginas desafiadoras que o Alzheimer e outras demências impõem à história da nossa sociedade.
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14 fatores por trás do Alzheimer
Intervir neles poderia ajudar a evitar um em cada dois casos da demência
1. Baixa escolaridade
No Brasil, é o fator principal. Menos anos de educação formal aumentam o risco de desenvolver a doença.
2. Perda auditiva
Déficit na escuta dificulta a compreensão do mundo e a interação social. É preciso diagnosticar e tratar.
3. Hipertensão
A pressão alta vai, aos poucos, danificando os vasos sanguíneos, inclusive da cabeça. É um fator de inflamação.
4. Tabagismo
Fumar acelera o envelhecimento, compromete a saúde vascular e a irrigação do sangue para o cérebro.
5. Obesidade
O excesso de peso está ligado à inflamação crônica. É preciso reduzir especialmente na meia-idade.
6. Depressão
Caso não tratada, pode levar ao declínio cognitivo e também está associada ao isolamento do indivíduo.
7. Sedentarismo
Prática de exercícios melhora a circulação sanguínea e estimula a neuroplasticidade. Por isso, não fique parado!
8. Diabetes
Resistência à insulina e estresse oxidativo da doença geram desordens metabólicas que impactam o cérebro.
9. Alcoolismo
Consumo abusivo aumenta em 133% o risco de desenvolver lesões cerebrais, segundo estudo da USP.
10. Traumatismo
Lesões cranianas expõem o cérebro a maior risco de diversos tipos de demência, incluindo o Alzheimer.
11. Poluição do ar
Poluentes como fuligem, dióxido de carbono e material particulado fino são os principais perigos à cabeça.
12. Isolamento social
Sem estímulos, o cérebro se torna inativo e as conexões neuronais vão enfraquecendo. Assim vem o declínio.
13. Colesterol alto
Mais especificamente, é o aumento de LDL que deve ser controlado. Está ligado também a problemas vasculares.
14. Perda de visão
Doenças oculares não tratadas podem não apenas levar à cegueira como também prejudicar a cognição.
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Nem tudo é Alzheimer
Conheça as principais formas de demência e saiba de que forma elas afetam a cognição humana
Alzheimer
Conhecida por causar uma perda irreversível da memória, é a síndrome demencial mais comum em todo o mundo.
Vascular
Provocada por danos aos vasos sanguíneos do cérebro, compromete capacidade de planejamento e autocontrole.
Frontotemporal
Altera o comportamento do paciente, que pode se tornar mais impulsivo, desinibido, inquieto e explosivo.
Corpos de Lewy
Afeta principalmente a atenção e pode estar acompanhada de alucinações visuais e tremores.
Mista
É possível desenvolver dois tipos de demência. O combo mais comum é o de Alzheimer e demência vascular.
Início precoce
Classificação recebida por quem é diagnosticado antes dos 65 anos. Esses pacientes são minoria.
O que está ao nosso alcance
Hábitos saudáveis podem reduzir o risco de demência
Manter o cérebro ativo
Vale matricular-se numa escola de idioma, aprender a tocar um instrumento ou completar caça-palavras. Tudo pelas conexões neuronais.
Controlar outras condições
Doenças cardiovasculares, transtornos mentais e deficiências auditivas e visuais merecem atenção contínua, pois repercutem no cérebro.
Praticar atividade física
Os exercícios regulares ajudam a retardar o declínio cognitivo e fazem parte do combate a diversas doenças que predispõem ao Alzheimer. Vale correr, pedalar, malhar, nadar…
Alimentar-se bem
Excesso de comidas industrializadas e consumo abusivo de álcool estão ligados ao declínio cognitivo. Privilegie alimentos in natura e minimamente processados no prato.
Dormir direito
Pessoas que dormem menos de seis horas por noite estariam mais expostas à demência. Uma boa noite de sono preserva os neurônios e regula humor e memória.
Cuidar da saúde mental
Tratar a depressão pode reduzir o risco de Alzheimer. O transtorno é capaz de acelerar o processo de inflamação e declínio cognitivo que está por trás das demências.
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Demência por definição
Síndromes afetam dois ou mais domínios cognitivos
Memória
Os processos de retenção, aquisição e recuperação de lembranças recentes ou de longa data são prejudicados com o início de um quadro demencial.
Linguagem
As dificuldades vão desde o esquecimento de palavras até a fala embolada e os prejuízos à escrita e à leitura. Costuma ser um fator de isolamento para o paciente.
Funções executivas
Falhas em planejamento, atenção, memória de trabalho e flexibilidade mental comprometem a autonomia de quem vive com demência e atrapalham a rotina.
Habilidades visuais e espaciais
A forma como o cérebro processa o que os olhos veem se torna imprecisa. A pessoa perde a noção de espaço e o risco de queda aumenta.
Comportamento
É comum que os pacientes tenham alterações de humor, adquiram trejeitos repetitivos e percam a inibição. Podem se tornar irritadiços e agressivos.
+ Leia também: Demência: o que fazer quando o paciente deixa de reconhecer a família?
Tratamento além dos remédios
Colocar a mente e o corpo em movimento integra o plano de ação
Terapia de estimulação cognitiva
Atividades em grupo melhoram memória, linguagem e atenção. A interação social promove estímulos ao cérebro e alavanca a qualidade de vida.
Programa de reabilitação cognitiva
Abordagem individualizada que estabelece estratégias para manter a autonomia do paciente ao realizar tarefas diárias.
Intervenções psicossociais
Focam em reduzir a agitação e a ansiedade do indivíduo ao enfrentar eventos sociais. É um recurso para manter vínculos com familiares e amigos.
Terapia de reminiscência
Conversas com o apoio de fotos, músicas ou objetos que remetam a memórias antigas podem fazer bem ao humor, à autoestima e à conexão com o cuidador.
Música e dança
Sessões mediadas por canções e coreografias ajudam a estreitar laços e reviver sensações de prazer e alegria. Podem ser um respiro na rotina tanto para o paciente como para o cuidador.
Terapias físicas
Prática regular de exercícios auxilia a fortalecer a musculatura e aumentar a flexibilidade. É essencial para evitar quedas, ter uma boa mobilidade e mais autonomia.
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Quem cuida do cuidador?
Como evitar o adoecimento e o esgotamento de quem dá suporte
Rede de apoio
Ter com quem contar é o mínimo. Não faltam formas de contribuir: ajuda nos cuidados com a higiene, alimentação, idas ao médico… Não pode estar presente? Faça um pix.
Cuidadores profissionais
O Alzheimer é uma doença e precisa ser tratada por alguém capacitado. Caso o bolso permita, não hesite em pedir ajuda de quem entende.
Exames em dia
É preciso estar bem para cuidar de alguém. Faça exames de rotina para flagrar quaisquer problemas e tratá-los logo. Não se coloque em segundo plano.
Estimule o cérebro
Não se esqueça de você. Tem vontade de voltar a estudar, aprender uma língua ou passar mais tempo lendo? A hora é agora! O cérebro precisa de estímulos para se manter saudável.
Mexa-se
Exercitar-se melhora o humor, reduz a ansiedade e aumenta a disposição. É uma atividade passível de ser feita com o paciente também.
Socialize
É essencial afastar a solidão. Mantenha e crie novos laços. A companhia de outras pessoas pode se tornar um refúgio para a mente no cotidiano.
Texto: Larissa Beani | Design: Letícia Raposo/Estúdio Coral | Ilustração: J Studios/Getty Images