Basta rever suas fotos de eventos sociais, happy hours e refeições com família e amigos. E é bem provável que encontre uma garrafa ou uma lata de cerveja sobre a mesa ou nas mãos dos convivas. Pudera: dificilmente alguma bebida alcoólica a supera em popularidade no Brasil.
Para não perder o trono, nos últimos anos as cervejas vêm ostentando novas fórmulas, sabores, cores e promessas. Não só para se diferenciar entre milhares de rótulos nacionais e internacionais mas também para manter um lugar ao sol entre quem está de olho na saúde e se preocupa (com razão!) com a ingestão de álcool.
Não é à toa que, entre as variedades que mais se projetaram, chamam a atenção as versões sem teor alcoólico. Entre 2019 e 2021, o consumo delas praticamente dobrou de quase 140 milhões de litros vendidos para cerca de 260 milhões, segundo levantamento do Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja (Sindicerv).
Ganhando espaço nas gôndolas, as representantes dessa vertente também têm suas particularidades, que nem sempre saltam à vista. Podem ser comercializadas como “cervejas sem álcool” aquelas cujo nível alcoólico não passa de 0,5% no volume da bebida. Elas são diferentes das “zero álcool”, uma categoria mais nova que, pela lei, tem no máximo 0,05% da substância.
Tanto grandes fabricantes como cervejarias artesanais querem beber dessas águas no mercado.
Quem vem se destacando no segmento é a Heineken. “Nossa bebida 0.0 pode ser uma ótima aliada do público que não deseja os efeitos do álcool no momento do consumo”, afirma a engenheira de alimentos Marina Ferreira, gerente de public affairs do grupo holandês no Brasil. O produto tem irrisórios 0,03% de álcool, e uma garrafinha long neck soma 69 calorias. “Ela possui metade das calorias disponíveis na versão com álcool e pode ser consumida em qualquer momento do dia”, diz Marina.
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Como boa parte do valor energético de uma cerveja vem do seu teor alcoólico, as bebidas com a pegada zero ou light também estão caindo no gosto de quem não quer engordar nem permitir que o suor gasto nos exercícios seja em vão. “A cerveja é como se fosse um pão líquido. Não havendo exagero, do ponto de vista nutricional ela pode ser melhor que um refrigerante ou um suco industrializado”, avalia o médico Mario Kehdi Carra, diretor do Departamento de Obesidade da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem).
“A opção sem álcool tem a vantagem de não contar com a substância que provoca as alterações na saúde física e mental e oferecer menos calorias, muitas vezes preservando o sabor original”, completa.
Conservar um sabor mais próximo ao original, convencendo até os puristas a experimentar, é fruto de um processo que variou ao longo dos anos e venceu desafios técnicos.
Os ingredientes básicos (água, malte, lúpulo, levedura e cereais não maltados) são os mesmos, mas a receita da cerveja sem álcool foi mudando. No passado, o método preferido era a interrupção da fermentação, o que gerava um produto final mais doce, que desagradava o paladar de quem estava acostumado aos diferentes níveis de amargor das versões tradicionais.
Aí surgiram técnicas como a destilação a vácuo, utilizada pela Heineken, que conseguem deixar o gosto num patamar mais parecido com o da cerveja normal, o que é complementado pela adição de um aroma de malte no final da preparação.
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A questão do sabor também preocupava os fabricantes do que outrora era um nicho da bebida, as opções low carb. A ideia aqui, apreciada pelo público fitness, não é remover o álcool, mas diminuir a fração de carboidratos do pão líquido.
No processo mais comum, as empresas recorriam a uma enzima capaz de consumir o açúcar residual que costuma ficar na produção da cerveja. Com essa tática, a quantidade de carboidrato baixava quase a zero, já que ele era convertido em álcool.
Só que isso gerava um novo problema: álcool demais dispara a contagem calórica e faz mal à saúde.
Um jeito de consertar esse efeito colateral foi reduzir o uso de malte, fundamental para uma bebida mais encorpada. “O resultado foi uma cerveja aguada, que deu às pessoas a sensação de que as low carb são bebidas sem sabor. Isso queimou o filme delas”, conta Nuberto Hopfgartner, médico de formação que decidiu se tornar mestre cervejeiro e hoje é dono da Doktor Bräu, uma das empresas que apostam em fórmulas com menos álcool, calorias e carboidratos.
Hopfgartner investiu em um processo até então inédito por aqui, que se baseia em um equipamento importado da Alemanha capaz de fazer osmose reversa, uma reação química que permite preservar o malte e o sabor e cortar a dose de carboidrato.
Além das opções pilsen e IPA, a Doktor Bräu também lançou uma cerveja sem álcool que pretende competir com os isotônicos que fazem parte da rotina dos atletas. “Fora o açúcar e os sais minerais, o produto tem uma concentração de proteínas que os isotônicos comuns não têm, e apenas um oitavo das calorias da marca mais conhecida nesse segmento”, relata Hopfgartner.
Na seara das cervejas mais saudáveis, outra proposta que chegou há pouco ao mercado envolve o aporte de ingredientes naturais. É o caso da PANC Beer, que, como entrega a sigla no rótulo, dispõe de plantas alimentícias não convencionais como ora-pro-nóbis e uvaia. “A uvaia, por exemplo, é cítrica e tem vitamina C. Lembra aquele toque de um limãozinho e funcionou muito bem com a cerveja tipo IPA”, explica a modelo e apresentadora Marília Moreno, que ajudou a desenvolver a fórmula.
Além dos componentes diferentes, a PANC Beer prima pelo baixo teor alcoólico. A bebida com uvaia tem em torno de 0,8%, muito menos do que uma IPA normal (entre 5,5 e 7,5%).
Com tantas opções, novidades e até promessas de benefícios à saúde, convém não confundir algumas coisas. Nem sempre a cerveja low carb entrega um teor alcoólico e calórico lá embaixo, enquanto as versões sem álcool podem muito bem não ser enquadradas como low carb.
E, no meio disso, ainda tem as cervejas sem glúten, destinadas especialmente a pessoas com doença celíaca ou intolerância a essa proteína encontrada em vários dos cereais tipicamente usados na fabricação da bebida. A lógica por trás dela e de outras alternativas que vêm chegando ao mercado é uma só: poder oferecer ao consumidor com restrições — seja em relação ao glúten, seja em relação ao álcool em si — uma forma de apreciar sua cerveja.
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Agora, apesar de contornar inconvenientes, a nova geração cervejeira não tem passe livre e ilimitado no dia a dia.
O consumo responsável continua valendo, sobretudo se houver álcool no pedaço, mesmo em volume reduzido. “Ninguém deve tomar uma bebida alcoólica buscando ser mais saudável nem devemos incentivar pessoas abstinentes a começar a ingerir álcool”, ressalta o psiquiatra Arthur Guerra, presidente executivo do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa).
O recado do especialista não pode ser encarado como aquelas frases protocolares ao final de propagandas de cerveja na TV. O consumo consciente e não abusivo tem de ser encorajado porque não foram só as cervejas com composição mais equilibrada que se expandiram no Brasil.
Se as versões sem álcool arrebanharam mais fregueses, as tradicionais também tiveram um aumento nas vendas desde 2019: 13% a mais no período, ultrapassando os 14 bilhões de litros. É um mercado quase 54 vezes maior que o das não alcoólicas.
Embora o crescimento não tenha causa única, tudo leva a crer que pesou o efeito pandemia. “O que as pesquisas têm demonstrado mundialmente é que as pessoas que bebiam apenas em situações sociais reduziram o consumo. Por outro lado, quem bebia em casa aumentou”, resume Guerra.
Além dos cuidados habituais envolvendo a ingestão etílica, a popularização dos produtos artesanais também impôs um novo desafio ao consumidor: verificar a procedência de marcas menos conhecidas ou estreantes.
É prudente checar a embalagem para conhecer direito o que cada bebida traz — tanto o teor alcoólico como a lista de ingredientes — e ficar atento às certificações. “Muitos laboratórios no Brasil não têm padronização de dosagem ou de calorias. E é importante a cerveja trazer no rótulo indicações de laudos feitos por centros renomados e atestados pelo Mapa, o Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento, que fiscaliza essa produção”, contextualiza Hopfgartner.
Quando não há contraindicações médicas, uma cerveja de boa qualidade e consumida com moderação até pode brindar a saúde com alguns efeitos positivos. “O que conta com maior evidência na literatura científica é a proteção cardiovascular”, diz a nutricionista Rosana Perim, que durante 35 anos realizou pesquisas sobre o tema junto ao HCor, em São Paulo.
“A cerveja tem propriedades antioxidantes que vêm dos seus polifenóis. Associados a um estilo de vida saudável, eles ajudam a reduzir o risco de doenças como as do coração”, justifica. Rosana ressalta que há ao redor de 50 tipos de polifenol encontrados na cerveja, muitos deles estudados por seu impacto no controle da pressão, do colesterol e da glicose no sangue.
De novo: o exagero coloca qualquer perspectiva de benefício a perder. E qual, então, seria o limite? Ele vai variar de pessoa para pessoa, mas dá para se guiar pela recomendação de entidades como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Instituto Nacional de Abuso do Álcool e Alcoolismo dos Estados Unidos: no máximo uma dose por dia para mulheres e até duas para homens.
Quando falamos em cerveja, a tal dose equivale a uma lata de 350 mililitros. Mas, ainda assim, não dá pra abrir mão de duas ponderações. Primeira: esse padrão não vale para pessoas com problemas de saúde ou restrições médicas. Segunda: não adianta passar vários dias em branco para encher a cara no fim de semana. Não é uma conta em que você acumula créditos para gastar depois.
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O “beber pesado episódico”, a expressão utilizada pelos especialistas, pode gerar prejuízos físicos, mentais e sociais no longo prazo. Cautela nunca é demais também para pessoas com diagnóstico de dependência alcoólica — mesmo diante de uma bebida que prometa ser mais leve. “É muito difícil que elas consigam voltar a um estado em que podem praticar o chamado consumo moderado”, afirma Guerra. Nessa situação, não tem jeito: a abstinência completa é o melhor caminho para evitar recaídas e sofrimentos.
Outra visão, outra receita
A tendência de reformular produtos para torná-los mais balanceados e atrativos a um consumidor zeloso com seu bem-estar está em alta e, no caso das cervejas, pode ajudar até a potencializar os efeitos de uma bebida que, a exemplo do vinho, é investigada há décadas por suas propriedades nutricionais.
“Já temos diversos estudos dentro e fora do país evidenciando seus benefícios na prevenção de doenças”, salienta Rosana.
Quem está nesse mercado há de concordar. “A geração Z está cada vez mais preocupada com a saúde, e o consumo responsável não é uma moda passageira”, observa Hopfgartner. “A mesma revolução que nós tivemos com a expansão do mercado de cervejas artesanais vai ser vista, nos próximos anos, com as cervejas mais saudáveis”, aposta o mestre cervejeiro. É ou não é um motivo para comemorar?!
O que faz do chope… um chope?
A primeira diferença entre ele e a cerveja está na forma de armazenamento: o chope é servido em barris, enquanto a gelada vem em latas de alumínio ou garrafas de vidro.
Como o chope é tirado por meio de torneiras de um ambiente com a pressão do gás carbônico, também conta com mais espuma.
É por essa razão que há quem fique com sensação de estufamento após o consumo — o que se aplica a qualquer bebida gaseificada. Outra distinção importante entre chope e cerveja — inclusive definida por lei — é que o primeiro não é pasteurizado.
Isso explica eventuais diferenças de sabor, ainda que o fabricante seja o mesmo, e também o fato de o conteúdo do barril ter prazo de validade bem menor do que a cerveja.
Como se faz cerveja sem álcool?
Um dos produtos da fermentação dos cereais usados na cerveja é o álcool. Mas dá para fazer versões com menor teor ou praticamente isentas dele. Vai depender da técnica da cervejaria e do sabor desejado.
Dá para interromper a fermentação quando se atinge a marca de 0,5% de álcool — e a bebida fica mais doce. Há a destilação a vácuo e a evaporação, que deixam o sabor do lúpulo mais pronunciado. E também novas tecnologias, como osmose reversa e uso de leveduras especiais que não geram álcool.
Quem deve passar longe
Alguns públicos continuam tendo que evitar cervejas e outras bebidas alcoólicas — para eles, não há dose mínima segura. Fazem parte do grupo menores de 18 anos, gestantes e lactentes, quem toma alguns tipos de remédios, qualquer um que vá dirigir ou operar alguma máquina, portadores de problemas no fígado ou transtornos psiquiátricos etc.
“De maneira geral, quem se enquadra nessas categorias está em maior risco de colocar em perigo a si e aos outros”, explica o psiquiatra Arthur Guerra.