Já parou para pensar por que você come o que come? Nosso comportamento alimentar é moldado desde bebês, quando somos apresentados a diferentes sabores, texturas e sensações, e se consolida seguindo ofertas e exemplos dentro de casa, influências culturais e preferências construídas ao longo da vida.
Pode soar estranho pensar assim, mas a gente não está plenamente no comando das nossas refeições. Não se trata só de gosto pessoal ou valor nutricional. Fatores sociais e econômicos pesam bastante quando vamos ao mercado e sentamos à mesa — algo inclusive sujeito a mudanças e modismos.
Ocorre que, nas últimas três décadas, a dieta brasileira, até então recheada de comida caseira, ingredientes naturais e toques regionais, se transformou. E, do ponto de vista da saúde, para pior.
“Percebemos isso pela compra dos alimentos: as pessoas adquirem cada vez menos sal e óleo para cozinhar, e diminuíram o consumo de arroz, feijão e mandioca”, nota o epidemiologista Carlos Monteiro, professor emérito da Universidade de São Paulo (USP) e líder do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens).
“Ao mesmo tempo, vimos aumentar a ingestão de macarrão instantâneo, salsicha, refrigerantes, biscoitos. Ou seja, mudou o padrão alimentar: as pessoas passaram a comer mais produtos prontos e a cozinhar menos”, resume o médico.
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A metamorfose aconteceu dentro e fora de casa. Até os tradicionais PFs, pratos feitos disponíveis em restaurantes e botecos, dão menos espaço ao arroz com feijão e à salada. O chamariz está na sobremesa e no refri grátis.
De acordo com a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), feita pelo IBGE, o consumo de arroz, feijão e farinha caiu 46% nos últimos 15 anos, enquanto os refrigerantes estão entre os cinco produtos mais ingeridos diariamente.
Do café da manhã ao jantar, decolou a presença de alimentos ultraprocessados — termo criado pelo professor Monteiro para se referir aos industrializados que geralmente nos fazem exceder na cota de sódio, gordura e açúcar adicionados.
As consequências do novo padrão são visíveis e preocupantes: mais da metade dos brasileiros está acima do peso, e milhões sofrem de doenças crônicas como hipertensão e diabetes.
Os agravos dessa tendência, que não é exclusiva do país, seguem em marcha: a maior revisão de estudos sobre ultraprocessados já realizada, recém-publicada no British Medical Journal, revela que o alto consumo está associado a 32 problemas de saúde.
O elo inclui até enfermidades respiratórias, transtornos mentais e distúrbios do sono. A análise levou em conta mais de 45 pesquisas e dados de 10 milhões de pessoas.
Hoje, 20% das calorias diárias dos brasileiros vêm de ultraprocessados. Já é bastante, mas pode complicar ainda mais: nos EUA, com uma sociedade bastante adoecida, já são 60%.
“Quanto maior o hábito, mais difícil de revertê-lo, e não é por menos que muitas nações começaram a lutar contra essa situação”, diz Monteiro. Isso vai muito além das escolhas individuais. “Só mudaremos esses números com políticas públicas.”
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Nos domínios da saúde, mudanças dependem de conhecimento. Sem pesquisas para alicerçar hipóteses e, posteriormente, comprovações, é difícil estabelecer transformações positivas.
Contudo, é desafiador transpor a teoria à prática. Felizmente, em matéria de diretrizes com impacto em termos de saúde pública, o país já tem duas boas referências. Uma delas é o Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde, que completa dez anos. A outra é o decreto assinado pelo presidente em março que propõe uma nova cesta básica, privilegiando alimentos mais naturais em detrimento dos ultraprocessados.
Para muitos especialistas, o Guia nacional é revolucionário: foi o primeiro documento do gênero no mundo a ancorar suas recomendações não apenas na métrica dos nutrientes, mas também no nível de processamento dos alimentos.
E qual a relevância disso?
Bom, antes, todas as referências internacionais trabalhavam apenas com conceitos como variedade alimentar, proporcionalidade de nutrientes e moderação de quantidades, ensinando as pessoas a ingerir carboidratos, proteínas, gorduras, vitaminas e minerais de uma forma adequada.
Mas, com a evolução da indústria, foi preciso começar a considerar o fator processamento.
Por exemplo: numa recomendação de ingestão de 100 gramas de carboidrato e 100 de proteína, sem considerar a maneira como os alimentos são produzidos, é possível optar por carne com arroz ou empanado de frango (nugget) com pão de fôrma branco. Na teoria, eles têm as mesmas quantidades de nutrientes. Na prática, não só a segunda opção é mais calórica como tende a repercutir de um jeito completamente diferente no organismo.
Monteiro e os pesquisadores do Nupens, que ajudaram a lapidar o Guia, perceberam que era crítico levar esses pontos em consideração, sobretudo diante das mudanças no padrão alimentar brasileiro e do aumento da carga de doenças crônicas favorecidas por uma dieta inadequada.
E é importante notar que nem todo alimento que passou em alguma etapa pela indústria é igual. Existem aqueles extensamente modificados. “Há formulações com cinco, dez, 20, até 30 ingredientes, incluindo diversos aditivos químicos”, explica o professor da USP.
Foi assim que surgiu a categoria dos ultraprocessados: alimentos convenientes (prontos para consumo), atrativos (hiperpalatáveis), lucrativos (usam ingredientes de baixo custo) e mais competitivos que alimentos in natura, os quais exigem preparo e possuem sabores menos intensos.
Não é coincidência que essa classe englobe também produtos nutricionalmente desbalanceados, com maior quantidade de açúcar, sódio e gordura saturada. É um combo que não sacia e ainda induz a exageros.
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O début no meio científico dessa nova proposta de classificação dos alimentos ocorreu em 2009, em um comentário que Monteiro publicou na revista Public Health Nutrition, editada pela Sociedade Britânica de Nutrição. O título já deixava claro: “Nutrição e saúde: o problema não é a comida, nem os nutrientes, mas sim o processamento”.
No texto, o médico detalhou que a extensão e o propósito do processamento dos alimentos determinam não apenas seu conteúdo nutricional, mas seu potencial de influenciar o risco de doenças crônicas ligadas à alimentação.
Em 2010, surgiu a classificação NOVA, depois adotada pelo Guia e em inúmeras publicações científicas.
Devido a essa inovação, Monteiro virou referência global na área, sendo hoje um dos nomes mais citados por pares e estudos internacionais.
Na esteira da proposta, o Nupens e outros centros de pesquisa passaram a fazer investigações que coincidiam numa conclusão: o consumo frequente de ultraprocessados estava conectado à maior incidência de problemas de saúde.
No entanto, nem todo mundo aceitou a nova classificação.
Ao longo de mais de uma década, ela acumulou críticas principalmente de profissionais ligados à indústria e à tecnologia de alimentos. Em 2020, o Ministério da Pecuária, Agricultura e Abastecimento chegou a requisitar ao Ministério da Saúde a revisão do Guia Alimentar, alegando que “a classificação NOVA é confusa, incoerente e prejudica a implementação de diretrizes para promover a alimentação adequada e saudável”.
A Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) também não a vê com bons olhos. “Por trabalhar com ciência e tecnologia de alimentos, a gente não reconhece essa classificação de ultraprocessados. O número de etapas de processamento e de ingredientes, mesmo aditivos, não tem nada a ver com a qualidade do alimento. O que define isso é sua composição nutricional”, afirma João Dornellas, presidente da Abia.
“O termo ultraprocessado é amplo e subjetivo, rotulando da mesma forma centenas de alimentos com perfis nutricionais completamente diferentes. Uma bala de goma, uma bolacha recheada, um pão de fôrma com cereal integral e uma fórmula infantil seriam todos ultraprocessados”, continua Dornellas.
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No outro lado, os estudiosos que defendem a NOVA enfatizam: substâncias adicionadas não fornecem os mesmos benefícios que nutrientes vindos do alimento natural. “Sim, os ultraprocessados são uma categoria heterogênea, que envolve desde produtos que fazem mal, como refrigerantes, até aqueles como pão de fôrma, que possuem algum valor nutricional. Mas qual valor?”, questiona Monteiro.
Para entender melhor essa discussão, é preciso decupar o conceito de matriz alimentar. Esse termo faz referência à forma com que nutrientes, compostos bioativos e diversas outras moléculas estão agrupados no alimento in natura de uma maneira sinérgica, que potencializa seu aproveitamento pelo organismo. Quando se isola um nutriente para colocá-lo numa formulação artificial, sem todos os outros compostos que ajudavam a maximizar sua ação, o efeito dentro do organismo não é o mesmo.
Segundo o pesquisador australiano Gyorgy Scrinis, autor do livro Nutricionismo (Editora Elefante), olhar para os alimentos se baseando só nos seus nutrientes aparentes é uma forma reducionista e simplista, muitas vezes incorporada pelas indústrias para vender produtos.
Conseguimos ver isso na prática com o crescimento do setor de alimentos com apelo saudável, que costumam atrair o consumidor exclusivamente pela presença/adição ou não de certos nutrientes.
Por exemplo: achocolatados industrializados estampam na embalagem dispor de cálcio e ferro (sem falar em vitaminas), um jeito de tornar o produto mais rico nutricionalmente. Mas, na verdade, esses dois minerais competem por absorção, pois ambos têm o mesmo mecanismo de transporte e instalação celular. Com frequência, o cálcio inibe a absorção de ferro e ele mesmo nem é aproveitado como deveria.
Ou seja: alguns nutrientes presentes em receitas industrializadas não farão diferença a quem for ingeri-las.
“O que é melhor? Um pão com fibra adicionada, emulsificantes e corantes, ou uma baguete de pão natural, feita com farinha de trigo, água, fermento e sal? Os ultraprocessados são heterogêneos, mas a comparação não tem que ser feita entre o pão de fôrma e o refrigerante, mas entre alimentos correlatos”, pontua Monteiro.
E isso nos remete a outra questão: a substituição dos alimentos in natura e minimamente processados pelos ultraprocessados. “Quando se opta pelo requeijão pronto, que contém soro de leite e aditivos para imitar o gosto do queijo, o indivíduo costuma deixar de lado um queijo branco artesanal”, exemplifica o líder do Nupens.
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Ok, então o valor nutricional dos ultraprocessados seria pior? Sim, segundo um estudo clínico detalhadamente controlado e publicado no periódico científico Cell Metabolism.
Veja só: 20 adultos com peso estável passaram quatro semanas internados em dependências dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos EUA. Eles foram selecionados aleatoriamente para formar dois grupos. Nas duas primeiras semanas, uma turma recebeu uma dieta composta apenas de ultraprocessados e a outra de alimentos naturais e minimamente processados; depois a oferta se inverteu.
As dietas foram cuidadosamente desenhadas para ter o mesmo número de calorias totais, densidade energética, macronutrientes, fibras, açúcares e sódio. Os voluntários tinham três refeições diárias e foram instruídos a consumir o máximo disponível ou quanto desejarem.
Resultado: o consumo energético foi maior durante a dieta ultraprocessada, cerca de 508 calorias a mais. Na balança, houve aumento de quase 1 quilo em duas semanas. Com o cardápio sem ultraprocessados, deu-se o oposto: os voluntários perderam, em média, 900 gramas naqueles 14 dias.
A conclusão dos autores do experimento foi categórica: “Limitar o consumo de alimentos ultraprocessados pode ser uma estratégia eficaz para prevenção e tratamento da obesidade”.
Além desse estudo, centenas de pesquisas observacionais relacionam os ultraprocessados a doenças — uma associação que, não raro, envolve outros elementos do estilo de vida.
Para além da composição nutricional, ainda se investiga quais são os males do processamento exagerado. “Estamos atrás de respostas para algumas perguntas. Como eles estimulam o consumo excessivo? Qual o impacto dos aditivos na saúde? Contaminantes na embalagem podem nos impactar?”, expõe a nutricionista Vanessa Montera, pesquisadora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Em sua pesquisa de doutorado, ela esmiuçou a quantidade de aditivos existentes em alimentos comuns no supermercado. E relata que os resultados foram chocantes: “Cheguei a encontrar em um produto de panificação 33 tipos de aditivos”.
A nutricionista também chama a atenção para o fato de a indústria afirmar que os aditivos são essenciais para manter o tempo de prateleira dos produtos. Na maior parte das vezes, porém, eles não são voltados à segurança alimentar, mas ao poder de sedução do alimento. “Mais cheiroso e saboroso, com uma textura melhor, uma cor mais bonita… São os chamados aditivos cosméticos, que incentivam o consumo exagerado”, argumenta.
Outra crítica feita pela profissional é quanto aos testes para a aprovação desses compostos no mercado. Eles se restringiriam a averiguar se podem causar mutações genéticas e não prejudicam gestantes. “Ninguém avalia atualmente se o aditivo vai alterar o metabolismo ou se há interação e qual seria o efeito de dezenas de aditivos juntos, como são colocados nos alimentos vendidos no mercado”, diz a pesquisadora da Uerj.
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Uma das constatações que assombram epidemiologistas, médicos e nutricionistas é que, no geral, os ultraprocessados mais desequilibrados são também aqueles mais baratos e acessíveis à população com menor renda. Esse foi um dos critérios levados em consideração na proposta de mudança da cesta básica brasileira. O objetivo é que ela fique mais diversificada e equilibrada.
“Temos um novo entendimento para a cesta. No decreto antigo, focavam-se apenas questões de provisão alinhadas ao salário mínimo”, afirma Patrícia Gentil, diretora do Departamento de Promoção da Alimentação Adequada e Saudável do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS).
“Hoje, em função das questões de saúde e da necessidade de se convergir um conjunto de políticas públicas que orientem desde a produção até o consumo de alimentos, a gente organizou a nova cesta como um norte”, detalha.
“O decreto assume qual é o nosso entendimento de alimentação saudável e como a gente quer acabar com a fome no Brasil e garantir o direito à alimentação a todos”, complementa Gisele Bortolini, coordenadora-geral do mesmo departamento do MDS.
A cesta básica nacional tem décadas de história: ela data de 1938, quando, assim como voltou a acontecer, muita gente não tinha o que comer no Brasil.
Naquela época, as autoridades associavam a fome apenas a fatores naturais (o clima, o solo, a safra…), esquecendo-se dos aspectos sociais. Quem mudou esse paradigma foi o médico e geógrafo Josué de Castro. Em suas análises, ele expôs que, mesmo com progressos tecnológicos, a fome perdurava no Brasil como consequência do nosso passado de colonização e escravidão, da exploração indevida da terra e da persistente desigualdade de renda. Não era culpa da natureza, mas da sociedade.
Nesse cenário, o presidente Getúlio Vargas baixou um decreto implementando a chamada “Ração Essencial Mínima”, popularmente conhecida como cesta básica.
Ela foi proposta dentro de um conjunto de medidas para fazer parte do cálculo do salário mínimo, de modo que estipulava não apenas os alimentos, mas também as quantidades em que eles deveriam estar presentes para suprir as necessidades. Naquele ano, 13 itens foram selecionados: carne, leite, feijão, arroz, farinha, batata, tomate, pão francês, café em pó, banana, açúcar, óleo e manteiga.
Com o passar do tempo, esses alimentos foram se alterando de acordo com a região e o preço, já que a cesta começou a consumir boa parte do salário. Assim, produtos como biscoitos, massas prontas para bolo e outros ultraprocessados passaram a ser figuras cativas na provisão mensal.
A nova cesta reconfigura essa composição. Mais do que combater a insegurança alimentar, suprindo meramente uma cota de calorias, o conjunto preza as qualidades da comida.
“É uma ação maravilhosa, porque não adianta eu, como profissional, falar para uma pessoa comer frutas, legumes e verduras se ela não tem dinheiro para comprar nem pagar o transporte até a feira. Ter essas opções na cesta básica é o primeiro passo para melhorar nossa realidade”, opina a nutricionista Graziela Traversari, especialista em saúde da família que atua na atenção básica em Santa Catarina.
“Essa abordagem de trazer a cesta básica para dialogar com a agricultura local e familiar, um segmento essencial para se ter autonomia econômica no país, dá um salto positivo estratosférico”, diz a nutricionista Anelise Rizzolo, do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição da Universidade de Brasília (UnB). “Com isso, a gente vai capilarizar a economia alimentar e incentivar as redes de abastecimento locais nos estados e municípios.”
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Mas, claro, um decreto, sozinho, não resolve tudo. “Muito pelo contrário, agora é que o trabalho começa. Vai ser essencial estabelecer uma conversa com os mercados que vendem cestas básicas, bem como com os produtores, para tornar a proposta realmente viável”, acredita Anelise.
Não é tarefa simples. Apesar de assertivo do ponto de vista da alimentação, o documento não estipula as quantidades de itens de cada grupo e prioriza alimentos mais perecíveis, o que pode impor desafios logísticos.
“Como vai se dar o acesso a esses alimentos? Normalmente, uma cesta básica vem numa caixa que é entregue às pessoas, mas nem sempre isso acontece no mesmo dia em que ela fica pronta. Vai ser preciso um grande alinhamento para que produtos frescos sejam distribuídos rapidamente e não haja comprometimento de seu estado e qualidade”, pondera a nutricionista Lara Natacci, da Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição (Sban).
A profissional também alerta para outro ponto: é urgente uma maior educação sobre o preparo dos alimentos, pois, pesando a mão em ingredientes culinários, comidas feitas em casa podem se tornar prejudiciais à saúde.
“Muitos brasileiros ainda colocam bastante sal, açúcar e gordura nas preparações caseiras. Então, não basta falar que tem que fazer a comida. É preciso orientar como é que faz”, aponta Lara, que também é culinarista.
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A filosofia por trás da cesta — que segue o Guia Alimentar e privilegia alimentos naturais, quando possível de produtores menores — ainda desperta outras dificuldades quando a teoria tem de virar prática.
“Valorizar a agricultura local é importante, inclusive por trazer renda para a região, mas é preciso equilibrar o espaço dado a esses atores com cadeias de produção maiores, porque uma escala pequena pode comprometer e encarecer a oferta, prejudicando os consumidores finais”, analisa a economista e nutricionista Flávia Mori, professora da USP.
“Acredito que também é essencial ter as quantidades mínimas e máximas de cada grupo que compõe a cesta para poder calcular um custo de vida em cima disso — e quanto ela vai pesar no orçamento”, completa. Finalmente, Flávia indaga: “O que vai ser subsidiado ou ter uma alíquota reduzida ali dentro?”
Bem, quando se fala em imposto, o debate se acirra e passa a envolver descontos e taxações.
Antes de tudo, não é surpresa para ninguém que nós, brasileiros, pagamos uma grande carga tributária, inclusive para comer.
Um levantamento mostra que 22,5% do preço dos alimentos corresponde a imposto — sim, um quarto do seu almoço vai direto para o governo. Esse número é altíssimo: nos outros países-membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), como nações europeias e os EUA, a média é de 7%.
Não é por acaso que se discute uma ampla reforma tributária no Brasil. Nesse aspecto, a proposta federal garante que a nova cesta básica será livre de taxas. Significa que todos aqueles alimentos in natura ou minimamente processados sairão mais baratos? Não dá para cravar, mas é o que se espera.
“O decreto presidencial é um orientador. Agora o governo vai apresentar um projeto de lei sugerindo que os itens da nova cesta sejam considerados para alíquota zero e reduzida. Não temos como garantir que todos os alimentos entrarão nelas, porque ainda vai haver toda uma discussão de custo de desoneração e avaliação do Ministério da Fazenda, fora a negociação dentro do Congresso”, esclarece Patrícia Gentil, do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
Tal subsídio, ou isenção, é visto como crucial para melhorar a alimentação do brasileiro. Ora, hoje os produtos ultraprocessados não são só mais práticos e atrativos como também costumam custar menos — pense num pacote de macarrão instantâneo.
“Se até agrotóxicos têm isenção fiscal, é o mínimo que todos os alimentos da nova cesta básica consigam também”, opina Anelise. A adoção do subsídio, aliás, é unanimidade entre os entrevistados.
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Controvérsias, contudo, giram em torno de outra medida em debate, inclusive no âmbito da reforma: a taxação de ultraprocessados.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), esses produtos já “pagam” mais impostos que outras categorias alimentares. Mas, com matéria-prima barata e fabricação em grande escala, esse grupo de industrializados continua mais em conta.
“A ideia do ultraprocessado é aumentar o lucro das empresas produzindo por baixíssimo custo. Existe toda uma engenharia para maximizar o prazer que a pessoa tem com esse tipo de alimento ao mesmo tempo que se reduz o preço”, afirma Monteiro.
“Um bolo de amêndoas ultraprocessado, por exemplo, tem seu sabor inteiro vindo de aromatizantes. A indústria até coloca umas fagulhinhas de amêndoas para enganar o consumidor, mas o fato é que acaba produzindo por muito menos do que se fosse um bolo que realmente tivesse alimentos de verdade em sua base”, ilustra o professor.
Além disso, muitos ultraprocessados dispõem de incentivos fiscais: desde a década de 1990, fábricas de refrigerantes na Zona Franca de Manaus não pagam impostos. De acordo com a ONG ACT Promoção da Saúde, o Brasil deixa de arrecadar 3,8 bilhões de reais todo ano por causa da isenção à indústria de refrigerantes.
Nesse contexto, um manifesto que reúne entidades e especialistas clama para que os ultraprocessados sejam alvo do futuro Imposto Seletivo, tributo extra que será cobrado de produtos que podem fazer mal à saúde ou ao meio ambiente.
Hoje, mercadorias não essenciais ou nocivas já pagam uma alíquota maior: cerca de 80% do preço do cigarro e de bebidas alcoólicas destiladas é imposto. Raciocínio semelhante seria aplicado a esse tipo de alimento.
Mas isso não limitaria a chegada de comida à boca dos brasileiros? “Há dois movimentos que não podem andar separados: é preciso subsidiar o alimento mais saudável e taxar os prejudiciais, até para ter um equilíbrio nas contas”, ressalta Anelise.
Monteiro concorda, mas sublinha outra questão: “Taxar é a forma mais eficaz de desestimular consumidores e até as empresas a criarem mais desses produtos”.
Além do professor da USP, médicos como Drauzio Varella, chefs de cozinha como Rita Lobo e diversas instituições, como a Abeso (Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica) e a Sbem (Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia), assinam o manifesto.
Para João Dornellas, da Abia, todos os alimentos deveriam ter menos impostos. Não faria sentido taxar mais esse grupo de produtos quando há gente passando fome.
Mas, indagam os defensores da nova proposta, é com ultraprocessados que queremos acabar com a fome no país?
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Mesmo que um imposto extra recaia sobre os ultraprocessados, os consumidores precisarão permanecer atentos e bem instruídos.
“A indústria vai tentar dar um jeito de reformular produtos para escapar da taxação”, prevê Flávia. “Um bom exemplo disso é o que aconteceu com o bombom Sonho de Valsa, que, no ano passado, deixou de ser bombom só para pagar menos imposto”, cita a professora da USP.
O caso é curioso: quando o chocolate pertencia à classe dos bombons, o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) cobrava 5% de tributo sobre a mercadoria. Mas a gigante alimentícia Mondeléz mudou a embalagem e o reclassificou como wafer, que tem IPI zero, escapando da taxação.
Não foi algo inédito. O Serenata de Amor, da Nestlé, fez o mesmo movimento em 2021. Até o sorvete do McDonald’s mudou seu nome oficial para bebida láctea, livrando-se, assim, da alíquota mais alta.
Estamos falando do que pesa no bolso dos cidadãos e das empresas, mas também de algo que influi na qualidade e na expectativa de vida de cada um de nós. A má alimentação é considerada hoje o principal fator de risco modificável por trás de mortes ao redor do mundo.
Por isso, além de políticas públicas que contribuam para um melhor padrão alimentar, é fundamental que as pessoas saibam comer bem. Trata-se de algo que pode e deve ser ensinado desde cedo, em casa e na escola.
Desde 2012, há um marco de referência para a educação alimentar e nutricional, que faz parte da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional do governo. E, hoje, multiplicam-se iniciativas do tipo em creches, colégios, centros comunitários e postos de saúde. Documentos oficiais, a exemplo do Guia, ajudam a balizar os profissionais e a própria população.
“O Ministério da Saúde tem nos respaldado bastante com seus manuais de auxílio e orientação”, comenta Graziela. Milhares de profissionais já foram treinados com base no Guia e o utilizam em suas recomendações diárias — o programa de alimentação escolar também é norteado por ele.
Médicos e nutricionistas também podem ser aliados da causa na rede de atenção básica, que presta os primeiros atendimentos aos pacientes. Nesse sentido, para Graziela, é preciso fazer mais. “Cuidar da alimentação previne doenças, então nosso papel é oferecer uma assistência completa, que ajude o indivíduo a mapear a região onde mora para comprar bons alimentos, entender e acolher suas preferências, dar dicas culinárias, enfim, o que for possível para mudar a realidade alimentar da sua família”, acredita a especialista.
Em vários municípios do país existem também núcleos que visam educar as comunidades: em São Paulo, por exemplo, há o Cresan (Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional), que oferece gratuitamente vegetais de uma horta pública, oficinas temáticas e aulas de culinária.
Contudo, muitos brasileiros mal sabem que atividades assim existem gratuitamente, e nem imaginam que podem consultar um nutricionista pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Fora a divulgação tímida, carências estruturais dificultam que iniciativas como o Cresan consigam abraçar uma grande demanda. E isso quando existe um centro desses na cidade.
A falta de orientação de qualidade, adaptada às condições do paciente/cidadão, colabora para o velho roteiro persistir: gente que não sabe como comer melhor, ou, pior, até sabe, mas julga inviável, e continua optando por tudo aquilo que é mais prático, barato e prejudicial.
Por isso, fazer o conhecimento circular desde a formação da criança é uma das bandeiras de movimentos que querem sacudir a realidade atual e apostam na inclusão da educação alimentar no currículo escolar.
“Já tivemos vários projetos de lei que tentaram essa aproximação, mas ainda falta um aval do governo. E agora há uma tendência que é trabalhar o tema da alimentação balanceada como um eixo transversal nas salas de aula, não como uma disciplina específica”, conta Anelise.
Fora o preço e a desinformação, outro obstáculo para um cardápio saudável é o tempo — ou a falta dele.
Tirando algumas frutas, muitos alimentos in natura de fato não estão prontos para consumir de cara, exigindo preparo e habilidades na cozinha. Mas é possível aprender e descomplicar as coisas. No fundo, é a criação de um hábito. E isso passa por desligar o piloto automático e entender que a comida vai muito além de pacotes de refeição pronta, fast-food e delivery.
É possível pegar gosto por cozinhar. Com a prática, os processos se tornam mais fáceis, gostosos e moldáveis à rotina. A virada no comportamento alimentar pode não ser fácil. Mas é necessária. Hora de ir além da teoria.