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Cadê o feijão? Estudos indicam declínio crescente no consumo do alimento

Além dos prejuízos à tradição e ao paladar, essa tendência pode resultar em perdas importantes para a saúde do brasileiro

Por Regina Célia Pereira (texto) | Letícia Raposo, do Estúdio Coral (design) | Alex Silva (fotos)
Atualizado em 2 Maio 2023, 18h12 - Publicado em 2 Maio 2023, 18h11

Quem dera a preocupação fosse escolher se ele vai por cima ou por baixo do arroz. Pobre feijão! Diante de um cenário em que o grão vem perdendo a condição de favorito no prato do dia a dia, pesquisadores se debruçam sobre uma enorme peneira de questões para catar os motivos por trás desse sumiço à mesa.

Quem investigou a fundo essa história foi a nutricionista Fernanda Serra Granado.

“Se seguir a tendência de queda atual, o feijão deixará de ser consumido de forma regular, ou seja, pelo menos cinco dias na semana, já em 2025”, revela a autora de uma tese de doutorado sobre o tema pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Fernanda chegou a essa projeção após esmiuçar dados de 572 675 brasileiros acompanhados pelo Vigitel (Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico), trabalho realizado pelo Ministério da Saúde.

Outro cientista atento ao despencar dos números é o agrônomo Alcido Elenor Wander, da Embrapa Arroz e Feijão. Ele conta que o consumo da leguminosa na década de 1960 era de 23 quilos por ano por habitante. A estimativa para 2022 ruiu para 12,7 quilos.

“É uma queda de quase 50%”, frisa o pesquisador. E sintoma de uma mudança no padrão alimentar do nosso povo.

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Por incrível que pareça, durante a pandemia, observou-se um discreto freio nesse declínio. “Com o confinamento inicial, parte da população pôde se dedicar mais ao preparo da comida”, explica Wander, que conduziu um estudo a respeito.

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Só que, passado o ápice da Covid-19, a derrocada do feijão voltou.

A correria e a falta de tempo para a culinária estão entre as justificativas para o encolhimento na ingestão.

“Em busca da praticidade, há quem opte por fast-food, comida pronta industrializada, entre outros itens ultraprocessados, sem falar nas refeições vendidas por aplicativos de celular”, nota Fernanda.

Nesse círculo vicioso, quanto menos tempo se passa diante do fogão, maior a chance de se desligar das tradições e dos preparos caseiros.

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“Se antes as receitas eram passadas de geração em geração, hoje esse ciclo de aprendizagem é quebrado”, diz a nutricionista. E, sem o reforço do hábito, não se perdem só os pratos para ocasiões especiais. Até o feijão de cada dia sai de cena.

Resgatar ensinamentos traz mais tempero e nutrientes para o presente. “Lembro-me do gosto do feijão de minha bisavó Nati, do preparado pela Santa, a cozinheira lá de casa, e do feito pela vovó Dolores”, conta a chef Tereza Paim, do restaurante Casa de Tereza, em Salvador, que salpica todos esses segredos em seu menu.

“É preciso desfazer o mito de que cozinhar feijão é difícil”, pontua a nutricionista Ana Paula Gines Geraldo, coordenadora do Projeto Cozinhando com Ciência, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

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A sacada é planejar. “Vale organizar desde a hora das compras até as estratégias que facilitam a rotina em casa, como congelar o alimento”, ensina.

Se tem uma imagem e um barulhinho que remetem ao feijão, eles vêm da panela de pressão. De fato, ela é uma mão na roda para amolecer, sem perder algumas horas, aqueles ingredientes mais duros.

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Mas, de tanto ouvir histórias de complicações e explosões no fogão, tem gente que prefere manter distância. Não precisa ser assim: com uma pitada extra de cuidado, manutenção e limpeza, o risco de desventuras é mínimo.

Graças ao sistema de vedação, no utensílio a cocção é rápida, o que evita o desperdício de tempo e de gás. Hoje, aliás, uma alternativa para quem quer investir na cozinha são as panelas elétricas, que também encurtam a passagem do alimento pelo calor.

Por falar em economia, alguns especialistas acreditam que outro motivo a depor contra a presença do feijão é a oscilação no preço do produto nas gôndolas.

Quem diria, mas, no final da década de 1970, a saudosa Beth Carvalho já cantava: “De que me serve um saco cheio de dinheiro, pra comprar um quilo de feijão”.

E parece que ele vem pesando ainda mais no bolso. “Cada vez que o consumidor vai ao mercado e depara com a alta do preço, tende a optar por outros itens e fazer substituições”, observa Fernanda.

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Mas, na ponta do lápis, será que vale mesmo trocá-lo por um pacote de macarrão instantâneo, por exemplo?

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“Se você avaliar o rendimento, um saco comum do tipo carioca já pode entregar várias porções para a semana”, ilustra a chef Heloisa Bacellar, de São Paulo.

“Outro temor comum e infundado para evitar o feijão é o medo de engordar”, repara a nutricionista Hellen Suleman, professora do Senac em Curitiba.

E, aqui, aquela pesquisa da UFMG pede passagem para desfazer enganos. Os dados analisados indicam que, pelo contrário, o grão pode ajudar a conter o ganho de peso.

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Pelos cálculos, quem consumia o alimento rotineiramente apresentava um risco 15% menor de cair no grupo da obesidade. Sempre comendo na quantidade certa, sem gula, por favor.

“O feijão tem excelente perfil nutricional e, no geral, seu consumo está atrelado a um cardápio mais equilibrado”, constata Fernanda.

Não bastasse vir acompanhado de arroz, folhas e filés — a base do nosso PF, o prato feito —, o ingrediente sozinho esbanja fibra e proteína, combo que prolonga a saciedade e breca o apetite. Tem razão para escanteá-lo da dieta?

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(Gráfico: Alex Silva | Design: Estúdio Coral/SAÚDE é Vital)

Deixar os feijões de fora do cardápio é atitude que vai na contramão do movimento de valorização das fontes de proteína vegetal, que se espalha pelo planeta.

Eles são estrelas em campanhas de incentivo ao consumo com apelo ambiental e, assim como o grão-de-bico, a ervilha e a lentilha, são conhecidos, lá fora, como pulses.

“O termo designa o caldo grosso resultante da preparação de sopas feitas com as sementes secas”, esclarece Marcelo Eduardo Lüders, presidente do Instituto Brasileiro do Feijão e Pulses (Ibrafe).

Nos velhos livros de botânica, entretanto, a família era tratada apenas como leguminosas: todos os integrantes do clã contêm vagens com sementes presas em uma de suas partes. Alguns gostam de clima mais ameno, outros se dão bem em áreas tropicais.

Dentre as espécies de feijão, a mais popular chama-se Phaesolus vulgaris e nasceu em berço americano.

“São dois grandes grupos genéticos, o mesoamericano, que cobre do norte do México à Colômbia, e o andino, que se estende do Peru à Argentina”, explica a agrônoma Luciene Camarano, pesquisadora da Embrapa Arroz e Feijão.

Da turma mesoamericana fazem parte os pequeninos rosinha e o preto; já a andina contempla tipos com grãos maiores, como o branco e o jalo.

O engenheiro-agrônomo Rogério Vieira, da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig), destaca ainda outro gênero, o Vigna.

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“O feijão azuki e o mungo são asiáticos, enquanto o feijão caupi, ou feijão-de-corda, é originário da África”, exemplifica.

Dentro dessa última categoria aparece o fradinho, que serve de matéria-prima para delícias da culinária nordestina, caso do acarajé.

O vai e vem dos povos espalhou as sementes pelos quatro cantos do mundo. Indígenas que viviam nas terras tupiniquins, bem antes de Cabral aparecer, comiam os grãos cozidos de forma meio seca.

“Os colonizadores é que passaram a preparar receitas com caldo”, conta Fernanda, que também mergulhou na história em sua tese de doutorado pela UFMG.

Não se sabe ao certo quando o alimento tornou-se preferência por aqui, mas, segundo o antropólogo Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), “o século 19 revela que o ecúmeno feijoeiro se alargara, tornado indispensável, acompanhando o desenvolvimento da população, já um prato nacional, inseparável da farinha, inevitável em todas as mesas”.

Sobre a data do casamento com o arroz, há indícios de que se deu ainda no século 18, quando o cereal tornou-se mais popular nestas paragens.

Hoje, para formar o par perfeito, o feijão-carioca tem sido o escolhido pela maioria dos brasileiros.

Mas, que ironia, ele não faz tanto sucesso nas bandas do Rio de Janeiro. Também conhecido como carioquinha, esse tipo foi desenvolvido em solo paulista a partir de outras variedades, e seu nome teria sido inspirado em uma raça de porcos marrons, roliços e manchados.

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Há quem defenda, porém, que se trata de uma homenagem ao calçadão de Copacabana.

Discussões à parte, fato é que o feliz enlace promove um arranjo proteico de primeira qualidade.

“Enquanto o arroz tem metionina e triptofano, o feijão fornece lisina e isoleucina”, descreve o médico Durval Ribas Filho, presidente da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran).

Ele se refere a pedacinhos de proteína, os aminoácidos, que, assim, juntos e misturados, se completam e atuam no organismo, reparando uma porção de tecidos, como os músculos.

Apreciador da combinação, Ribas Filho traz memórias da cidade paulista de Paraíso, quando sua mãe, dona Armelinda, fazia feijão em uma enorme panela de ferro de uso exclusivo para o alimento.

“Depois servia bem quentinho, com arroz, bife feito na hora, ovo estalado e salada de alface com tomate”, recorda o nutrólogo.

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(Foto: Alex Silva/A2 Estúdio)

Além do casamento com o arroz, uma união celebrada por especialistas é a do feijão com fontes de vitamina C.

Até o escritor Vinicius de Moraes (1913-1980) destacou a sinergia no poema Feijoada à Minha Moda: “Deve depois frigir a couve picada, em fogo alegre e presto. Uma farofa? — tem seus dias… Porém que seja na manteiga! A laranja gelada, em fatias (seleta ou da-baía) — e chega”.

Não bastasse tornar tudo mais apetitoso, os vegetais citados ajudam no aproveitamento do ferro. Isso porque a vitamina C favorece a absorção do mineral pelo corpo. Xô, anemia!

Dada a deixa do poeta, convém ceder espaço à feijoada. Prato símbolo da culinária brasileira, ela traz o tempero da miscigenação, com influência direta dos cozidos europeus. Lembra festa, mesa farta… e gordura!

Nutricionistas recomendam que, diferentemente dos preparos mais leves, a feijoada deve ser degustada vez ou outra mesmo.

Tem quem sugira deixá-la mais magra. Só não dá para descaracterizar a receita — basta diminuir a quantidade ou o tamanho dos cortes suínos gordos.

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No cotidiano, não vale só revezar nas criações culinárias. Tem tantas variedades, cores e sabores entre os feijões que é merecido conhecer e alternar as espécies.

A chef Helô Bacellar conta que, certa vez, foi passear em um mercado, voltou com a sacola cheia com pelo menos dez tipos da leguminosa e, diante da indecisão na escolha, inventou uma receita com todos eles.

“Como eram bem diferentes, cozinhei cada um separadamente e só depois refoguei, temperei e juntei em um mix colorido e delicioso”, descreve.

Outro chef, o paraense Saulo Jennings, do restaurante Casa do Saulo, no Pará e no Rio de Janeiro, lembra que, quando criança, havia um rodízio de feijões à mesa.

“Alternavam o manteiguinha, o rajado e o preto, com legumes, com carne-seca ou na dobradinha”, relata. Sua mãe, dona Selva, era quem cuidava das panelas e hoje repete a festa com os netos.

No menu do chef, o feijão manteiguinha, conhecido também como Santarém, é o astro. “Faço vinagrete, salada, pipoca e até feijoqueca, um tipo de moqueca”, lista.

Já a cozinheira Tereza Paim não esconde o gosto pelo feijão verde, ícone do Nordeste brasileiro. “Uso refogado na manteiga de garrafa e acompanhado de carne de sol”, comenta a chef baiana. O fradinho também não pode faltar nas suas receitas de acarajé e abará.

Para além das tradições, a inovação dá as caras nas aulas de culinária no Senac-PR, onde a professora Hellen troca o grão-de-bico por feijão-branco na receita de homus, por exemplo.

Use a caixa de busca ou clique no índice para encontrar o verbete desejado:

Mais ao sul, na cozinha da UFSC, a nutricionista Ana Paula utiliza o carioquinha para preparar brownies e hambúrgueres. Tem truques, claro. “Mas ainda é fundamental ensinar o que é básico, como salgar o feijão do dia a dia”, afirma. Não é raro as pessoas errarem a mão.

Helô tem uma dica que nunca falha: “Uma folhinha de louro é sempre bem-vinda”.

Outro ensinamento clássico é deixar os grãos de molho por pelo menos oito horas e dispensar o líquido antes de levar ao fogo.

A técnica, chamada remolho, remove componentes da leguminosa por trás de desconfortos após a ingestão.

“Feijões contêm oligossacarídeos, carboidratos que podem chegar intactos ao intestino grosso e, mais tarde, causar gases e distensão abdominal”, explica a nutricionista Karina Gama, do Conselho Regional de Nutricionistas da 3ª Região (CRN-3).

Mais uma sugestão para estes tempos corridos é congelar o alimento. Separe um dia mais tranquilo para cozinhar, divida tudo em porções, leve ao freezer e descongele ao longo da semana.

“O ideal é deixar mais al dente, antes do congelamento, para que a casca não se rompa e prejudique a consistência”, orienta Ana Paula.

Veja: são dicas e cuidados singelos, mas com potencial enorme de abrandar o declínio no consumo de feijão, devolvendo a ele seu papel nutritivo e simbólico à nossa mesa.

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(Mapa: Nelson_A_Ishikawa/GI/Getty Images)

Favas contadas

A velha expressão, utilizada para qualificar algo como certo e seguro, teria surgido há séculos e deriva do uso dessas sementes parentes do feijão para indicar votos em antigos sistemas de eleição.

Originária da região mediterrânea, a fava (Vicia faba), também chamada fava- -italiana, tem grãos grandalhões e achatados, que são bastante apreciados em receitas de sopas, sobretudo na Europa.

Historiadores relatam que eles estão entre os primeiros alimentos domesticados pelo homem. Mas não confunda a fava com o feijão-fava (Phaseolus lunatus), leguminosa americana também conhecida como feijão-de-lima. Essa variedade, com versões rajadas, avermelhadas e esbranquiçadas, faz sucesso no Nordeste brasileiro.

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(Foto: Alex Silva/A2 Estúdio)
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