Como o ácido úrico mexe com a sua saúde
A gota é famosa, mas pouca gente sabe que ele também tem relação com a saúde cardiovascular — e deve ser mais bem controlado para evitar encrencas
Colesterol, triglicérides, glicose… Você já deve estar cansado de ouvir falar desses nomes e, de tempos em tempos, dosar os níveis dessas substâncias no sangue, certo? Que bom! Em excesso, todas elas fazem algum mal ao organismo. Mas e o ácido úrico? Sabe como anda o seu?
Quem sofre de gota nem precisa pensar para responder a essa pergunta.
Nessa turma, o composto se acumula nas articulações em forma de cristais e gera dores excruciantes, em geral acompanhadas de inchaço e vermelhidão.
São crises que vêm e voltam por anos a fio. Só que não é só desse jeito, tão escancarado, que as taxas elevadas de ácido úrico no sangue destrambelham a saúde.
A ciência hoje sabe que essa situação pode lesar a parede dos vasos sanguíneos, incentivar um processo inflamatório crônico e prejudicar outros órgãos. Estudos apontam, inclusive, uma relação com maior risco de morte por panes cardíacas e vasculares.
O pé atrás com a repercussão mais sistêmica da substância não é de hoje. “Normalmente, temos muito cuidado ao atribuir um papel causal a um elemento numa doença. O colesterol é uma exceção, e das mais conhecidas, mas o ácido úrico tem sido investigado há anos e seus efeitos ainda são negligenciados”, contextualiza a bioquímica Flávia Carla Meotti, professora da Universidade de São Paulo (USP), que estuda o composto em seu laboratório.
De uns tempos para cá, porém, o ácido úrico voltou a ficar em evidência. De um lado, cresce a noção dentro dos consultórios médicos de que ele não é um mero detrito do organismo, mas algo que pode contribuir para processos inoportunos.
De outro, tem gente se aproveitando das brechas nas próprias descobertas científicas para vender dietas e suplementos que, ao barrar o ácido úrico, virariam solução para tudo: obesidade, diabetes, hipertensão e até demência.
Exemplo disso é o livro A Dieta do Ácido (Fontanar), best-seller americano que culpa o componente por uma penca de males e promete “uma saúde extraordinária” a quem controlá-lo.
A obra apresenta alegações graves, mas a maioria delas não é consenso entre as pesquisas e os especialistas. O autor, o neurologista David Perlmutter, lança muitas hipóteses especulativas e dados de estudos preliminares sem a devida comprovação — no passado, fez algo semelhante com o glúten.
Boa parte do novo título é dedicada a um “produto” ofertado pelo médico: uma dieta para baixar o ácido úrico e livrar-se de problemas de saúde.
Quem dera fosse tão simples. É verdade que ainda damos menos atenção do que deveríamos aos níveis dessa substância no corpo. Mas daí a achar que controlá-los é a receita mágica para curar e prevenir doenças é outra história.
“Vira e mexe aparece algo que seria o responsável por todos os males. O ácido úrico é importante, mas não é o centro de tudo. Na verdade, ele faz parte de alterações metabólicas mais complexas”, pondera Marco Antonio Loures, presidente da Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR).
Pedras nos rins são um dos problemas de saúde mais conhecidos e temidos pela humanidade. E foi por causa delas que o protagonista da reportagem foi descoberto, em 1776.
Ao analisar no microscópio os cálculos, o químico sueco Carl Wilhelm Scheele (1742-1786) encontrou o ácido úrico, também detectado na urina humana.
Desde então, aprendemos muito mais sobre ele, mas sempre o tratamos como um subproduto da quebra da purina, proteína fabricada principalmente no fígado e presente em alguns alimentos (carnes e frutos do mar), e um dos componentes básicos do nosso código genético.
Durante muito tempo, esse resíduo foi visto como inofensivo, exceto nas vezes em que se acumulava nas articulações, causando a gota, ou gerava tipos específicos e menos comuns de cálculo renal.
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Perceba: é normal termos ácido úrico circulando pelo organismo, mas, em algumas situações, seus níveis sobem além da conta. É a chamada hiperuricemia.
Além dos problemas mais sintomáticos nas juntas e nos rins, a condição pode machucar os vasos sanguíneos — algo bem mais silencioso. “O ácido úrico em excesso lesa o endotélio, a membrana que reveste o interior das artérias, desencadeando uma inflamação e facilitando o surgimento de placas nas artérias e a hipertensão”, detalha o cardiologista Renato Alves, diretor da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp).
“Essa ação pró-inflamatória nos vasos está ligada a um maior risco de infartos e derrames”, alerta o endocrinologista Carlos Eduardo Barra Couri, pesquisador da USP de Ribeirão Preto.
Em seu laboratório, a bioquímica Flávia Meotti estuda em detalhes tal efeito. Ela conta que, a priori, o ácido úrico tem ação antioxidante. Ou seja, combate os radicais livres, moléculas que se formam naturalmente no corpo capazes de provocar danos às células.
Até por esse efeito, somos uns dos poucos animais que não conseguem eliminar todo o ácido úrico produzido — perdemos, durante a evolução, uma enzima (a uricase) responsável por isso.
O que acontece, então? Cerca de 90% do que sintetizamos é reabsorvido pelo corpo.
“Uma das teorias é que, quando nossos antepassados passaram a andar eretos e ter mais acesso a frutas, o organismo parou de produzir vitamina C, um importante antioxidante. Então ele passou a acumular ácido úrico, talvez pelo fato de apresentar a mesma ação”, conta a professora da USP.
Mas as coisas podem mudar de direção, e o ácido úrico começar a desencadear um efeito oposto. E esse é o campo de pesquisa de Flávia. “Dependendo do tipo de reação química que sofre, ele mesmo se torna um radical livre, passando a ter impactos negativos na saúde”, explica a cientista.
Soa estranho, mas a substância tem uma ação dual: faz bem e mal quase na mesma medida. Por isso, o que prevalece é o equilíbrio. “Quando os níveis se elevam, há mais oportunidades para que o ácido úrico sofra essas transformações deletérias”, diz Flávia.
Cristais que se acumulam
Outra característica é o fato de que o composto é pouco solúvel, precipitando-se na forma de cristais em lugares do corpo onde o pH é mais ácido, caso das articulações.
Só que esses microcristais podem aprontar até nas artérias e outras paragens. E isso, por sua vez, torna o ambiente propício para que o ácido úrico descambe para o seu lado negativo.
Flávia conta que lesões nos vasos ativam uma cascata inflamatória que induz o corpo a liberar mais enzimas que transformam o ácido úrico em radical livre. Por uma série de reações, o resultado disso é mais inflamação. “É uma bola de neve”, resume.
Além de apurar essa relação com danos ao sistema cardiovascular, o grupo da pesquisadora investiga uma possível conexão entre o ácido úrico e a sepse, quadro marcado por uma tempestade inflamatória de alta letalidade que costuma acometer indivíduos internados em UTI.
“Estamos conduzindo um estudo clínico para verificar se, ao interferir nessa cascata inflamatória desencadeada pelo ácido úrico elevado, conseguimos frear a sepse”, revela.
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Fora as hipóteses colocadas à prova, existem atuações mais estabelecidas, como o elo da substância com o diabetes e a hipertensão. “O ácido úrico impede a insulina de agir nas células, podendo induzir a resistência insulínica, fenômeno que abre caminho para o diabetes tipo 2”, aponta Couri. “E também estimula a secreção dos hormônios renais que aumentam a pressão arterial”, emenda o endocrinologista.
Os rins, aliás, são um capítulo à parte. “O cálculo de ácido úrico fica impregnado nesses órgãos, aumentando o risco de infecções por dificultar a saída do líquido filtrado ali”, observa Loures. Em suma: em pessoas com o ácido úrico elevado, os rins entram na berlinda.
Tem um agravante: todos esses enroscos podem passar despercebidos. “O que me preocupa é o que não dá sintomas. A crise de gota acaba sendo o sinal de alerta para procurar ajuda médica, mas a pessoa pode não ter as dores e estar correndo o risco de desenvolver coisas mais sérias”, alerta Couri.
Enquanto pesquisas tentam determinar até que ponto o ácido úrico nas alturas é o causador dessas discórdias, e não uma consequência de um cenário já desfavorável, os médicos conseguem delimitar um perfil de indivíduos que, salvo exceções, apresentam hiperuricemia.
“Em geral, são homens mais velhos, acima do peso e com outros problemas de saúde, como pressão alta e diabetes”, nota o pesquisador da USP.
Causa ou consequência?
Sim, já faz um tempo que o ácido úrico não é ligado apenas à gota. É ponto pacífico que níveis elevados estão associados a maior risco cardiovascular. “Mas ainda não sabemos se ele é um marcador de problemas ou a causa deles”, resume a ópera Couri.
A confusão ocorre porque grande parte dos sujeitos com hiperuricemia tem a chamada síndrome metabólica — o estado que congrega ganho de peso, colesterol alto, hipertensão, diabetes ou pré-diabetes… Aí uma coisa puxa a outra.
“O paciente hipertenso, por exemplo, em geral lida com a questão do excesso de peso e já pode ter sua função renal afetada. Tudo isso leva a pessoa não só a eliminar menos ácido úrico como a produzir mais”, explica o cardiologista Luiz Bortolotto, diretor da Unidade de Hipertensão do Instituto do Coração (InCor), em São Paulo.
É uma bagunça metabólica que dificulta cravar o que começou primeiro, ou se tudo surgiu junto e misturado.
O perigo é subestimar o composto nesse enredo. Uma revisão de estudos publicada em 2019 concluiu que, mesmo separando outras variáveis e fatores de risco, o ácido úrico alto sozinho estaria associado a uma maior mortalidade por doença cardiovascular.
Mais recentemente, em 2022, outra revisão sistemática, em cima de uma porção de pesquisas, veio sugerir que ele pode ser um indicador precoce do desenvolvimento da síndrome metabólica — um sinal de alarme, digamos.
E, por fim, outro artigo, este publicado ano passado pela Associação Americana do Coração, afirma que a relação entre ácido úrico e hipertensão já está “confirmada”, discorrendo sobre os mecanismos por trás disso, como sua ação pró-oxidante e inflamatória nas artérias.
No momento, o que falta entender é se tratar a hiperuricemia com mais afinco resolveria os problemas e aplacaria as ameaças.
“Por enquanto, acho que o ácido úrico é mais um marcador, que pode contribuir para a piora das doenças cardiovasculares, mas não um preditor. Vários estudos tentaram mostrar que baixar os níveis de ácido úrico reduziria o risco cardíaco, mas isso não se comprovou”, elucida Bortolotto.
O cardiologista avaliou se isso poderia acontecer em pacientes renais e encontrou uma associação mais intensa entre os transplantados. “O que nos mostra que, quando outras questões estão controladas, aí, sim, talvez ele sobressaia como um fator de risco”, conclui.
Como controlar o ácido úrico
De qualquer forma, um bom conselho é ficar de olho no ácido úrico, sem se esquecer da conjuntura toda, e, se for o caso, partir para estratégias capazes de baixá-lo. Isso começa por mudanças na alimentação e no estilo de vida e pode ser reforçado com medicamentos específicos prescritos pelo médico.
Agora, não dá para eleger a substância como o vilão do século ou a chave de salvação da saúde. E aí está o problema do livro A Dieta do Ácido.
Seu autor pontifica que controlar o ácido úrico, deixando-o em níveis mais baixos do que é considerado adequado hoje em dia, seria o caminho para escapar de uma miríade de doenças. Para ele, todo mundo, a despeito de ter pressão alta, diabetes ou gota, deveria embarcar nessa.
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Só que seus argumentos são, no mínimo, controversos. Por exemplo: ele compara a substância a uma “espécie de sinal de trânsito, que manda o corpo armazenar ou queimar gordura”.
Nossa, será que mexer ali seria um caminho para perder peso de vez? “Fisiologicamente, não faz sentido. Essa sinalização é feita por alguns hormônios, como os da tireoide, o cortisol, o GH, a grelina, a leptina e a insulina”, esclarece a nutricionista Lara Natacci, Ph.D. pela Faculdade de Saúde Pública da USP.
Depois de construir sua tese, o autor divulga um programa alimentar de redução do ácido úrico, que apela para recursos como suplementos e dieta cetogênica — um cardápio que, na verdade, pode até elevar seus níveis por incluir mais proteínas.
Em poucas palavras, esse plano todo não tem respaldo na ciência. Devemos, sim, valorizar as descobertas da medicina e da nutrição, bem como o papel do ácido úrico em nossa vida, mas, quando a promessa de milagre é grande, desconfie do santo.
Qual é o valor adequado?
Os níveis de ácido úrico no sangue tidos como ideais são 6 mg/dl para mulheres e 7 mg/dl para homens. Em geral, os médicos começam a se preocupar quando os níveis ultrapassam 10 mg/dl.
Porém, com o acúmulo de estudos sobre o assunto, agora alguns profissionais já prescrevem medicamentos antes de chegar a esse patamar a pessoas com maior risco cardiovascular — a ideia é evitar possíveis complicações.
Mas a medida ainda não é consenso.
Fonte complementar: Alex Feitoza, nutricionista da clínica Dietnet, em São Paulo