À exceção de xaropes e analgésicos em gotas, com gostinho de tutti frutti, feitos para a criançada engolir sem sofrimento, a maioria dos medicamentos costuma deixar um rastro amargo pela boca. O que teria levado, então, o vinagre, um ingrediente tradicional, que incrementa saladas, molhos, carnes e até sobremesas, a ser posto na mesma prateleira dos remédios?
Pistas históricas indicam que a fama vem de longe, dos tempos de Hipócrates (460-370 a.C), o pai da medicina ocidental, que já prescrevia o vinagre para tratar uma penca de males.
Na Idade Média, ele fez sucesso nos mosteiros pela atuação digestiva e chegou a ser usado até contra a peste bubônica por suas propriedades antissépticas. Séculos depois, quem diria, o produto saiu dos pergaminhos e levantou fervura nas redes sociais.
Artistas, blogueiros e toda a sorte de influenciadores digitais só começam o dia depois de beber uma mistura de água com vinagre. É o tal do “shot matinal”.
Entre as principais alegações terapêuticas, destaca-se uma suposta ação contra o ganho de peso. Como emagrecer não é um processo tão simples, muita gente se agarra a fórmulas mágicas e midiáticas, sobretudo as que contam com o aval de celebridades cibernéticas.
Para o nutricionista Felipe Almeida, criador da Nutriflix, plataforma de cursos profissionais sediada em Porto Alegre, o que explica a badalação em torno do vinagre é a soma da praticidade com o apelo natural.
“O medo da ingestão de medicamentos produzidos pela indústria contribui para a busca de milagres vindos de alimentos”, afirma o professor, que desfia seu senso crítico e suas análises bioquímicas em sua página no Instagram. “Um dos perigos por trás desse movimento é afastar o paciente do que é realmente efetivo para seu tratamento.”
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Dia sim, outro também, surge um ingrediente com poderes antiobesidade na internet. “Mas falamos de uma condição multifatorial, que deve ser tratada com ciência e respeito. O processo de emagrecimento envolve diversas estratégias, nunca um único alimento ou tempero”, adianta a nutricionista Valéria Machado, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Só que, mesmo sob o fogo cruzado dos experts, alguns elementos vivem (re)aparecendo como o elixir do sucesso. É o caso do vinagre. “Muitas dessas tendências surgem a partir de relatos isolados, que ganham destaque e se espalham pelos meios virtuais”, nota Valéria.
O único jeito de endossar ou derrubar as lendas da nutrição é botar as hipóteses ou promessas contra a parede da ciência. E digamos que pesquisadores libaneses tentaram fazer isso com o popular vinagre de maçã.
Em um ensaio clínico com 120 jovens com sobrepeso ou obesidade, os voluntários foram divididos em quatro grupos, que receberam orientação para o consumo, em jejum, de doses diferentes do produto (5, 10 e 15 ml), além de placebo (um líquido inócuo).
Após 12 semanas, a turma que ingeriu maior quantidade perdeu, em média, 7 quilos, como relata o trabalho publicado numa das revistas do British Medical Journal. Foi o bastante para a notícia bombar.
Os especialistas, claro, correram atrás para checar os achados espantosos. “Resultados assim não aparecem nem em intervenções com medicamentos”, diz Almeida, que vê furos na metodologia empregada. “Os responsáveis não controlaram a dieta nem citam dados sobre possíveis mudanças no cardápio”, avalia. Valéria também flagrou falhas: “Há discrepância na idade dos participantes, de 12 a 25 anos, uma janela com grandes diferenças metabólicas”.
Durval Ribas Filho, presidente da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran), acredita que, ainda que a publicação tenha credibilidade, o período do teste e o número de voluntários não permitem erguer o vinagre ao pedestal. Se como tempero ele segue uma unanimidade, como receita medicinal pode deixar a desejar.
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Receita que atravessa o tempo
“Para começar, ninguém sequer teve de fazê-lo, porque na verdade se fez sozinho. Em qualquer lugar em que por acaso haja um pouco de açúcar ou álcool esquecido, o vinagre estará a caminho”, escreve o químico americano Robert Wolke em O Que Einstein Disse a Seu Cozinheiro (Zahar).
Brincadeiras à parte, a engenheira de alimentos Giselle Ribeiro de Souza, do Instituto Federal do Rio Grande do Sul, em Bento Gonçalves, explica que o sumo da uva — ou de outra matéria-prima — é fermentado por micro-organismos, como as leveduras, produzindo um líquido alcoólico. “Na segunda etapa, entram em cena as bactérias Acetobacter aceti, que geram o ácido acético”, diz.
Depois, processos de filtragem, estabilização e pasteurização são adotados para estancar outras reações químicas, garantindo a cor e o sabor peculiares.
No trabalho libanês, além da perda de peso, os cientistas observaram impacto do consumo de vinagre de maçã nos níveis de colesterol, triglicérides e glicose dos participantes.
Outros estudos já sugeriam esses benefícios. Há indícios de que o vinagre interfira na velocidade da digestão, num mecanismo que promove a saciedade e o equilíbrio glicêmico. Soma-se a isso a ação na atividade de certas enzimas envolvidas no processamento dos carboidratos, o que favoreceria, outra vez, a diminuição das taxas de açúcar na corrente sanguínea.
Experimentos com animais revelam, ainda, um efeito na sensibilidade da insulina, o hormônio que libera passagem para a glicose entrar nas células — mais um possível mecanismo de controle glicêmico.
Quanto às taxas de colesterol e triglicérides, uma das explicações por trás da redução seria o aumento da excreção de ácidos biliares. Isso faz com que o organismo se despeça das moléculas engorduradas e fique com um melhor perfil lipídico. Agora, essas repercussões estão longe de significar que o vinagre substituiria os medicamentos usualmente prescritos para manter colesterol, triglicérides e glicemia na linha. Portanto, nem pense em encará-lo como remédio nesses contextos.
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No quesito emagrecimento, há indícios de que, além de contribuir para evitar a fome de leão, o produto tenha propriedades termogênicas, isto é, ele poderia acelerar o metabolismo e a queima calórica.
De novo: não faz milagres! Mais recentemente, cientistas também examinaram seu impacto na microbiota intestinal. E tudo leva a crer que o uso regular do tempero seja positivo para o ecossistema nos confins do aparelho digestivo. Já se observou um efeito no declínio de bactérias indesejáveis e no aumento das benfeitoras.
Por falar em digestão, vem de longe a fama do vinagre em prol de estômago e vizinhança. Já diria a monja alemã promovida a santa Hildegarda von Bingen (1098-1179), que foi enfermeira e estudiosa de plantas medicinais: “Quando consumido na comida, ajuda o corpo a digerir alimentos”.
A bioquímica moderna explica o que está por trás. O condimento dispara a salivação, estimulando a produção de suco gástrico. Se por um lado isso ajuda muita gente, por outro pode atrapalhar se já existe algum problema no pedaço. “Não o recomendamos a pacientes com gastrite, duodenite, úlcera péptica e refluxo”, avisa Ribas Filho. Aliás, o uso puro pode até queimar o esôfago.
Esse mesmo recado se estende aos cuidados dermatológicos. Tem pele sensível? Melhor não aderir ao vinagre na rotina de skincare para evitar irritações. O uso em prol da derme também vem da Antiguidade e se perpetua até hoje. Inclusive, uma revisão de estudos de 2022, publicada no periódico International Journal of Dermatology, destaca propriedades antimicrobianas, antifúngicas e antioxidantes, que podem ser úteis no tratamento de infecções e feridas.
“Mas, mesmo com uma coleção de evidências e explicações sobre os mecanismos de ação, o vinagre nunca deve ser encarado como uma panaceia”, afirma a nutricionista Maria Cecilia Corsi, à frente do Cecilia Corsi Food Coach, na capital paulista. Então desconfie das promessas de “remédio” e “superalimento” por aí.
Para a nutricionista Ana Paula Gines Geraldo, coordenadora do Projeto Cozinhando com Ciência, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o erro é apostar todas as fichas em um único ingrediente e ignorar o contexto.
“Quando a base da alimentação é forrada de ultraprocessados, e, no caso de pessoas com diabetes, não há controle da glicemia e se abusa dos doces, não dá para acreditar em algo como milagroso”, diz.
Inclusive, nas discussões da nutrição atual, está ficando antiquada a dicotomia, feita de vilões e mocinhos, e toda aquela velha ideia de hipervalorizar determinados alimentos ou nutrientes.
Ainda que alguns elementos sobressaiam, é a sinergia que traz o benefício. Só assim podemos colher frutos com o consumo equilibrado do vinagre. O principal componente dessa história é o ácido acético, mas existem outras substâncias bem-vindas, a depender da matéria-prima.
Na teoria, o vinagre típico vem da fermentação do vinho das uvas — tanto que o nome vinu acre vem do latim e significa, ao pé da letra, vinho azedo. Mas o ser humano resolveu testar outras receitas, de acordo com os cultivos locais. Daí vieram os vinagres de maçã, arroz, álcool (derivado da cana-de-açúcar)… A rigor, são chamados de fermentados acéticos — designação que aparece em alguns rótulos.
De acordo com o ingrediente usado, muda a concentração de fitoquímicos. Porém, no geral, as formulações, sobretudo as elaboradas a partir de frutos, contam com catequinas, epicatequinas e toda uma turma de ácidos, entre os quais o gálico, o clorogênico e o cafeico, além de quercetina. Um desfile de termos complicados, todos da família dos compostos fenólicos, que têm, em comum, a festejada ação antioxidante.
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Significa que neutralizam os radicais livres, que, em excesso no organismo, danificam as células e abrem uma avenida a doenças. Essas substâncias se encontram diluídas nos vidros de vinagre, mas já dão uma força quando combinadas a outros elementos de uma dieta saudável.
História do vinagre
Ninguém sabe ao certo quando se deu a descoberta do vinagre, em que momento alguém decidiu usar esse produto resultante do trabalho de micro-organismos na cozinha. Mas há farta documentação sobre a convivência da nossa espécie com o bom e velho tempero. Conta-se que babilônios usavam uva-passa e tâmaras no preparo, lá pelos idos de 4000 a.C. Povos antigos misturavam o líquido resultante à água, tornando-a mais segura para o consumo.
Relata-se também que, durante muito tempo, a fabricação se resumia a deixar azedar tonéis de bebidas alcoólicas, especialmente o vinho. O processo foi se aprimorando, até que o cientista francês Louis Pasteur (1822-1895) demonstrou a atuação das bactérias acéticas na fermentação. Desde os primórdios, um dos principais usos do vinagre é a conservação dos alimentos.
“O hábito permanece, de acordo com o costume de cada região. Há desde os picles de pepino até conservas de cebolas, azeitonas, alcaparras, cenouras, pimentões, bem como preparos com folhas como acelga, repolho, espinafre”, expõe a nutricionista e chef de cozinha Juliana Watanabe, que vive e fez seus estudos sobre dieta mediterrânea na Espanha. Geralmente se emprega o vinagre branco, o de álcool, para essa finalidade, já que é o mais neutro.
O segredo do sucesso nessa atuação está em seu principal componente, o ácido acético, que impede o crescimento de micróbios. A mesma substância está por trás de elementos de sabor. “A acidez promove salivação e enaltece outros gostos, ampliando as experiências gustativas”, diz Cecilia, que também é culinarista.
Acrescentem-se ainda os aromas desprendidos quando o vinagre é aquecido. Cada matéria-prima oferece sutilezas de cor, sabor e perfume. Fã do vinagre de maçã, a professora Ana Paula o coloca no molho de chimichurri para acompanhar carnes, especialmente as de porco.
Para quem tem apego ao clássico, os produtos de vinho dominam prateleiras — dos mais comuns e baratos aos mais sofisticados.
“O branco é frutado e não altera a cor dos alimentos, só agrega. Vai bem no vinagrete e em molhos amanteigados”, exemplifica Ana. Já o tinto é rei nas saladas. “Aqui na Espanha também se vê bastante o de xerez, oriundo da região da Andaluzia”, descreve Juliana. Tempera preparações como o gaspacho, uma sopa fria de tomates e pepino.
O destaque entre os elaborados a partir de vinho é o aceto balsâmico. “O legítimo é feito na região de Módena, na Itália, e inclusive há selos de certificação”, relata a engenheira de alimentos Giselle de Souza. Caríssimo, tradicionalmente é envelhecido em barris de madeira, ganhando coloração negra e sabor adocicado — por isso, faz bonito em sobremesas.
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Nos países asiáticos, a matéria-prima é o arroz, que resulta em um vinagre mais suave. “Na receita de arroz para sushi, sua acidez faz o contraponto ao açúcar”, comenta Juliana. Sim, opção não falta. “Vale conhecer tipos variados e escolher o seu”, recomenda Giselle, que, inclusive, incentiva a visita aos produtores.
A dica é comprar vidros pequenos, para que eles não façam aniversário na despensa. Afinal, quanto mais o tempo passa, mais chance de oxidação e mudança nas características sensoriais.
Só não vale despejar em tudo quanto é prato para que acabe logo… Cecilia chama a atenção para a quantidade: “Tem que saber dosar, até para evitar que ele se sobreponha aos outros ingredientes”.
A sugestão é ir testando, tanto o tipo quanto as combinações nas receitas. Das salgadas às doces. Em alguns países, aliás, se apreciam até bebidas refrescantes à base de vinagre. É tanta versatilidade à mesa que, convenhamos, nem é preciso apelar para sua suposta fama de remédio.
Em outras frentes
O vinagre frequenta as prateleiras da lavanderia e da área de serviço há muito tempo. É que sua acidez ajuda a remover o excesso de sabão das roupas, sendo útil na etapa de enxágue. Pau para toda obra, ele também é parceiro na hora da faxina, contribuindo para tirar manchas de vidros e espelhos e odores desagradáveis da cozinha.
A nutricionista Ana Paula Geraldo conhece outras serventias. “No preparo de receitas, quando você não vai usar o alimento imediatamente após cortá-lo, vale mergulhá-lo em água com vinagre”, ensina. Ele estanca oxidações e alterações na coloração. “Outra dica é colocar um pouquinho ao bater clara em neve. Além de deixar o preparo mais brilhante, a estrutura ficará mais firme depois,” conta. Faz toda a diferença em um suflê, por exemplo.