Mudança em lei pode aumentar quantidade de agrotóxicos que chegam à mesa
O texto, ainda em discussão, quer flexibilizar ainda mais a aprovação de novos produtos e levantou o alerta de especialistas em saúde e alimentação
Foi aprovado pela Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 6 299/2002, que propõe uma nova regulamentação à produção e venda de agrotóxicos.
O texto, que agora segue em tramitação no Senado, preocupa especialistas em saúde e alimentação porque pode flexibilizar ainda mais o registro de novos defensivos agrícolas no país. Desde 2008, o Brasil é o país que mais consome produtos com agrotóxicos, segundo o Instituto Nacional do Câncer (Inca).
Por aqui, há permissão para uso de substâncias já banidas em outros países. Para complicar, ocorre venda ilegal de compostos proibidos. Não à toa, os traços desses produtos chegaram até aos alimentos ultraprocessados — biscoitos, salgadinhos, bebidas e companhia.
Em excesso (e com pouca fiscalização) os agrotóxicos podem fazer mal à saúde tanto de quem os consome quanto de quem os manipula. Segundo o Inca, o consumo frequente de água e alimentos contaminados pelos defensivos agrícolas pode favorecer o desenvolvimento de diversos tipos de câncer. Quem trabalha diretamente com esses compostos está sob maior risco.
Nos últimos três anos, a situação piorou. Utilizando brechas na lei, foram aprovados cerca de 1.500 novos produtos. “Hoje libera-se mais de um agrotóxico por dia. Por que é preciso ter mais celeridade? Esta é a primeira questão a ser levantada sobre esse projeto”, questiona José Pedro Santiago, engenheiro agrônomo e conselheiro do Instituto Brasil Orgânico.
A fiscalização também foi abandonada. Há dois anos, deixou de ser publicado o relatório do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para), criado em 2001 com o objetivo de avaliar continuamente os níveis de resíduos químicos nos vegetais que chegam à mesa do consumidor.
O último documento foi divulgado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 2020. Na época, entraram na análise 4 616 amostras de 14 alimentos. Desse total, 23% foram consideradas insatisfatórias, pois ultrapassavam o limite máximo permitido de resíduos.
Principais polêmicas do projeto
1. Agrotóxicos passam a ser chamados de pesticidas
O termo agrotóxico foi citado pelo engenheiro agrônomo Adilson Paschoal no livro “Pragas, agrotóxicos e a crise ambiente – problemas e soluções”, de 1979 e é usado pela Constituição Federal para categorizar esses produtos.
“Fazer a mudança não é apenas um eufemismo, é um equívoco. O uso do termo chama a atenção para o que é real. Os pesticidas, como diz o nome, matam pestes. Os agrotóxicos até podem eliminar as pragas, mas também intoxicam os seres humanos”, explica Rafael Arantes, nutricionista do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).
A troca de nomes tira a carga de alerta que é importante para toda a cadeia que utiliza ou tem contato com esses produtos químicos, avaliam especialistas.
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2. Aprovação unilateral
Atualmente, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) dá o aval sobre a eficácia do defensivo. No entanto, dado o grau de complexidade da categoria, sempre fizeram parte da análise o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que mede os impactos ambientais, e o Ministério da Saúde, que controla a quantidade de resíduos tóxicos que vão parar na mesa (e na torneira) da população.
Se as mudanças na lei forem sancionadas, o MAPA poderá liberar um produto no mercado sem o consentimento das outras áreas. Para renovação de uso, ainda, o Ibama e o Ministério da Saúde seriam apenas “consultados”.
3. Sem cancelamento de registros
O monitoramento das consequências do uso desses produtos químicos é sempre avaliada por organizações competentes. Por isso, há hoje a possibilidade de se pedir o banimento de agrotóxicos considerados perigosos — mesmo com um certo grau de dificuldade.
A legislação atual permite que entidades representantes de trabalhadores, partidos políticos e outras associações regionais façam esses questionamentos. Com a nova lei, os pedidos ficarão nas mãos de organizações internacionais.
4. Registros temporários
O que pode parecer pontual, na verdade, abre brecha para que esses compostos circulem por meses sem antes passarem por uma análise técnica aprofundada.
“Esse trecho da lei que dá celeridade aos registros pode criar uma linha de produção de autorizações temporárias. O texto permite, por exemplo, que os fabricantes usem compostos similares já aprovados para dizer que seu novo produto cumpre as exigências”, avalia Arantes.
Ou seja, há a possibilidade de incluir substâncias que ainda não foram estudadas com rigor pelas autoridades. Outro trecho do texto permite ainda que a autorização seja postergada por dois meses. Assim, o temporário pode virar permanente.
“Nesse meio tempo, esses produtos já afetaram nossos rios, campos, o estrago já estará feito”, conclui Santiago.
5. Livre exportação
Pela nova lei, se um agrotóxico for produzido só para exportação — sem a intenção de venda no Brasil — ele não precisa ser registrado por aqui.
Além de o defensivo ser um risco para o meio ambiente de outro país, há a questão de que trabalhadores brasileiros farão parte da cadeia de produção e terão contato direto com essas substâncias.
6. Novas misturas vão entrar no mercado
Hoje, para comprar um agrotóxico, é preciso ter uma receita agronômica (documento com a prescrição de uso dos defensivos agrícolas).
A nova lei tem um item que pode driblar a obrigatoriedade. “O texto mantém a necessidade da recomendação do agrônomo, mas exclui ‘casos excepcionais’ da obrigação, o que abre brecha para muita coisa. Quais seriam esses casos?”, questiona Santiago.
7. Propaganda livre
Como nos anúncios de cigarros e bebidas alcoólicas, as propagandas que divulgam agrotóxicos devem vir com avisos sobre seus componentes e riscos à saúde. Elas também são permitidas apenas em veículos de comunicação dirigidos a profissionais da área.
A ideia do PL é retirar a maior parte dessas restrições.
Qual a solução?
Abolir os agrotóxicos não é uma opção viável. “Se alguém proibir agroquímicos, a produção para. É como dizer que a partir de amanhã só poderão circular carros elétricos, sem a estrutura necessária para isso”, explica Santiago.
O caminho, então, seria investir na fiscalização, na regulação e em novos modelos de cultivo que reduzam a necessidade desses produtos.
“Há exemplos, inclusive de produção animal e vegetal em grande escala, que não dependem de agrotóxico, nem de adubo químico, como a permacultura e o sistema agroflorestal”, esclarece o engenheiro.
Na contramão da lei em questão, está parado no Congresso o PL 6670/2016 que institui a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNARA). “Os dois estavam em debate, até que este foi abandonado, e o PL conhecido como ‘do veneno’ passou a ser prioridade”, relata Arantes, citando o apelido dado por críticos ao projeto.
A proposta de retomar esse outro texto faz parte do “Dossiê Contra o Pacote do Veneno e em Defesa da Vida”, organizado pela Agroecologia e Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida (Abrasco), com apoio da Fiocruz. O documento possui 25 notas técnicas de instituições que reprovam os termos da nova lei.
O que o consumidor pode fazer?
Posicionar-se sobre o tema diretamente aos políticos do Congresso e pelas redes sociais é um caminho de mobilização.
No dia a dia, o consumidor pode buscar os alimentos orgânicos, que são produzidos sem defensivos ou fertilizantes sintéticos. Para ajudar, o Idec produziu um mapa de feiras orgânicas brasileiras.
Segundo Santiago, esse tipo de produtor só cresce no Brasil e se multiplica a cada ano. “Há mais de 25 mil produtores orgânicos registrados no Ministério da Cultura”, aponta o engenheiro.