Refluxo não é tudo igual: nova classificação melhora tratamento
Estudo recém-publicado estratifica a doença para um cuidado mais assertivo
A doença do refluxo gastroesofágico (DRGE) é um dos diagnósticos mais comuns da gastroenterologia: mais de 20 milhões de brasileiros sofrem pela condição.
Conhecida apenas como refluxo, ela ocorre quando o conteúdo do estômago retorna ao exófago, tubo que leva o alimento da boca até o restante do sistema digestivo.
Nesse cenário, há um funcionamento inadequado do esfíncter esofágico inferior, válvula que fecha este tubo assim que a comida engolida passa por lá. O extravasamento de conteúdo é uma doença crônica, que pode gerar azia, mal estar, dores, dentre diversas repercussões no estilo de vida do indivíduo.
Mas se engana quem acha que todo refluxo é igual, e que todos devem ser tratados da mesma forma — com redução de acidez gástrica, por exemplo.
Por isso, este ano, um grande estudo propôs novas formas de estratificar o refluxo, e, assim, orientar melhor as opções de tratamento.
“Ainda hoje essa doença é confundida com outras e muitas vezes tem um tratamento mal orientado. Determinar exatamente o tipo e fenótipo do refluxo de cada paciente é essencial para uma melhora efetiva”, afirma a médica argentina Rosa Ramos, chefe do Laboratório de Motilidade do Hospital Britânico Central de Buenos Aires, à Veja Saúde.
A médica concedeu a entrevista no evento Conecta, em Salvador.*
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Tipos de refluxo
Para entender as novas divisões, e como elas impactam o paciente, é importante compreender a complexidade da condição.
De forma geral, a DRGE possui duas grandes divisões:
- Erosiva, quando são identificadas lesões na parede do esôfago, a chamada esofagite;
- Não-erosiva, quando não há lesões na mucosa esofágica. Ou seja, ela está normal.
Alguns fatores são essenciais para determinar qual é o grau de lesão esofágica e se haverá muitos ou poucos sintomas associados a uma possível lesão:
- Quanto volta de ácido (volume), e se sais biliares estão presentes nesse conteúdo;
- Quanto tempo esse ácido fica em contato com o esôfago;
- Qual a resistência do esôfago ao ácido.
“As lesões podem gerar mais ou menos sintomas, a depender de características individuais. Quanto mais sensível for o esôfago, menos lesão você precisa ter para aparecerem sintomas”, explica o médico Ricardo Barbuti, chefe do ambulatório de gastroenterologia clínica do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP).
Essa sensibilidade esofágica é, em parte, geneticamente determinada, mas não só. “O bem-estar psicoemocional também interfere bastante. Então, quando há muito estresse, ansiedade, cansaço físico ou mental, pode haver uma exacerbação da intensidade e frequência dos sintomas nesses períodos”, complementa o gastroenterologista.
É neste contexto que surgem diferentes espectros de apresentação da doença, para além da classificação erosiva ou não-erosiva.
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Diagnóstico e fenótipos da doença do refluxo
Identificar corretamente o subtipo de refluxo é fundamental para direcionar melhor o tratamento. Por exemplo: quando a endoscopia não mostra machucados no esôfago, não faz sentido usar medicamentos para reduzir a acidez do estômago, já que não é isso que está causando os sintomas.
Só que a maioria dos portadores se encontra nessa situação. “Apenas 30% dos pacientes submetidos à endoscopia apresentam lesões visíveis, a esofagite”, afirma Rosa. “Os outros 70% têm sintomas, mas não têm lesões no esôfago”, esclarece a especialista.
É aí que surgem subtipos da doença, que exigem mais testes para o diagnóstico preciso. Em casos não erosivos, outros dois exames são de grande ajuda: a manometria e a impedâncio-phmetria esofágica.
A manometria avalia a motilidade, coordenação e força com a qual o esôfago se contrai e o funcionamento dos esfíncteres. “Esse exame verifica alterações que poderiam contraindicar, por exemplo, o tratamento cirúrgico da doença do refluxo”, afirma a médica Carla Granja, coordenadora do Núcleo de Avaliação Funcional do Aparelho Digestivo (NAFAD).
Já a impedâncio-phmetria é o padrão ouro para diagnóstico de DRGE atualmente. Ela é feita por meio de uma fina sonda inserida pelo nariz, com eletrodos que quantificam a acidez do líquido refluído, a extensão alcançada por ele, quanto tempo fica em contato com o exôfago, quantas vezes por dia ocorre refluxo, etc
Mesmo assim, o teste pode não ser conclusivo. “Apenas 50% dos pacientes não erosivos apresentam resultados patológicos na impedâncio-phmetria. Os outros 50% são normais”, expõe Rosa. Ora, e o que há com esse grupo de normais?
“Nem todos têm doença do refluxo. Uma porcentagem possui pirose funcional, quando não há nenhuma alteração fisiológica, mas as pessoas apresentam os mesmos sintomas”, expõe Rosa.
“Ter o diagnóstico correto é essencial para definir um tratamento assertivo, já que esses pacientes não melhoram com medicamentos antirefluxo convencionais, mas sim com neuromoduladores, outra abordagem”, explica a especialista argentina.
Como comenta a médica, muitos fenótipos (ou subtipos) da DRGE podem ser detectados no indivíduo através de toda essa saga diagnóstica, como o esôfago de Barret, hipersensibilidade ao refluxo e até a própria pirose funcional.
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Consenso de Lyon e classificação em scores
Diante da gama de possibilidades que abrange a DRGE, o Consenso de Lyon, atualizado em 2018, é a principal diretriz para o diagnóstico da condição, que inclui uma série de valores de referência para a exposição à acidez estomacal.
Pois um grande estudo deste ano, publicado no The American Journal of Gastroenterology, pegou os valores definidos pelo documento para criar escores que estratificam os pacientes.
Na pesquisa, uma pontuação derivada de parâmetros de testes esofágicos definidos por Lyon conseguiu dividir os fenótipos de refluxo e identificar a probabilidade de resposta dos sintomas das terapias antirefluxo.
É uma ferramenta para médicos correlacionarem os achados dos exames a subtipos da doença e, assim, aprimorar o tratamento.
“Muitas pessoas têm refluxo persistente mal tratado por falta de um bom diagnóstico. O paciente que tem refluxo dorme mal, vive mal e gasta muito dinheiro com remédios que nem sempre são os indicados”, afirma Rosa, que é coautora do trabalho.
Em caso de suspeita da doença, procure um bom gastroenterologista que consiga diagnosticar corretamente seu caso.
*A repórter viajou a convite da farmacêutica Apsen, que organizou o evento