A administradora carioca Michelle da Cunha Barbosa, de 41 anos, estava preparando a filha, Gabriela, para sua festa de aniversário de 7 anos quando notou algo incomum no corpo da menina.
“Um dos mamilos estava um pouco inchado”, recorda a mãe sobre o episódio ocorrido em 2016. “Num primeiro momento, achei que ela tinha sido picada por algum bicho. Continuei de olho e resolvi levá-la ao pediatra.”
No consultório, a menina passou por uma avaliação física e o médico esclareceu que aquele inchaço era, na verdade, o broto mamário — estrutura que, com o passar dos anos, cresce e origina as mamas.
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Seu surgimento é chamado de telarca e marca o início da puberdade em meninas. O problema é que Gabriela era jovem demais para passar por essa fase.
Ainda assim, os exames de sangue e de imagem solicitados pelos médicos atestavam alterações hormonais próprias desse período e idade óssea avançada para sua idade. O diagnóstico? Puberdade precoce. Aquela transição da infância para a vida adulta pela qual todos nós passamos havia começado cedo para a pequena Gabi.
O que é puberdade precoce?
Em meninas, o esperado é que a fase puberal ocorra entre 8 e 13 anos, e, em meninos, dos 9 aos 14. Casos que apresentem sinais evidentes antes disso são considerados precoces.
Estima-se que a condição afete uma a cada 5 mil ou 10 mil crianças e que seja dez vezes mais comum no sexo feminino. E o que era considerado um quadro raro tem se repetido com frequência muito maior após a pandemia de Covid-19. No mundo todo.
A endocrinologista pediátrica Amanda Veiga Cheuiche, que realiza um doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), tem notado o fenômeno nos estudos e em seus atendimentos.
“Muitos pais chegam ao consultório preocupados com o rápido crescimento dos filhos e com o fato de que o corpo deles está diferente do dos colegas da mesma idade”, relata.
Com o radar ligado, a médica vem acompanhando a publicação de várias pesquisas apontando o aumento de casos de puberdade precoce em países como Itália, Turquia, China e Estados Unidos.
Por isso, conduziu uma revisão sistemática de 23 artigos que compararam o período pré-pandêmico com o da crise sanitária, somando mais de 700 mil participantes de 11 nações distintas.
“Desses, 22 trabalhos encontraram um aumento de 1,3 a 5 vezes no número de casos em meninas”, afirma Amanda. Entre os meninos, os estudos internacionais registraram desde uma redução no diagnóstico até um crescimento de 2,8 a 3,4 vezes.
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Como é feito o diagnóstico
Quando meninas apresentam sinais de puberdade antes dos 8 anos e meninos, antes dos 9, devem passar por uma bateria de exames.
A lista inclui amostras de sangue para checar níveis hormonais, ultrassonografias pélvicas para identificar mudanças em ovários ou testículos (as glândulas que produzem os hormônios sexuais), ressonância magnética cerebral para verificar as estruturas que orquestram o crescimento e a regulação do organismo e até mesmo radiografias do esqueleto para avaliar a idade óssea.
Tudo isso será útil para cravar a condição e determinar o tipo de puberdade precoce, que pode ser dividida em central ou periférica.
Na primeira, também chamada de “verdadeira”, o que provoca o amadurecimento prematuro é uma disfunção que começa lá no meio do cérebro. É a forma mais comum do problema. E a mais misteriosa.
Puberdade precoce central
Para compreender melhor o que falamos, precisamos nos familiarizar com duas áreas do cérebro, o hipotálamo e a hipófise.
Do tamanho de uma amêndoa, o hipotálamo está localizado no centro da cabeça e ajuda a regular várias atividades e sensações do corpo (como a temperatura, o sono, a sede e o apetite).
Ele também coordena a atividade de uma glândula na vizinhança, a hipófise, produzindo substâncias que a estimulam ou a inibem. E isso repercurte literalmente no corpo todo.
Na puberdade precoce central (PPC), o hipotálamo fabrica, antes da hora, os hormônios liberadores de gonadotrofinas, mais conhecidos como GnRH.
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Esses hormônios são direcionados à tal hipófise, que está localizada imediatamente abaixo dele no cérebro e mede o mesmo que uma ervilha.
Essa glândula é superinfluente, pois interage com diversas outras centrais hormonais do organismo, como as glândulas mamárias, adrenais e sexuais.
Uma vez estimulada pelo GnRH, ela envia hormônios luteinizantes (LH) e folículo-estimulantes (FSH) às gônadas sexuais de homens e mulheres.
“Essa é a principal característica dessa condição: ter o eixo hipotálamo-hipófise-gônadas ativado”, resume Crésio de Aragão Dantas Alves, presidente do Departamento Científico de Endocrinologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
É como se a orquestra começasse a tocar a música, e de forma acelerada, antes do início previsto do concerto.
Na sinfonia hormonal, ao chegar aos ovários, o LH atua no desencadeamento da ovulação e no desenvolvimento do corpo lúteo, sendo essencial para a produção de estrogênio e progesterona.
Já o FSH tem um papel relevante no crescimento de folículos ovarianos, que precedem os óvulos.
Nos meninos, no encontro com os testículos, o LH estimula as células locais a produzirem a testosterona e o FSH influencia a espermatogênese, ou seja, a geração de espermatozoides.
“Além das gônadas sexuais trabalhando a todo vapor na produção de hormônios, outras glândulas espalhadas pelo corpo também começam a agir sob o estímulo da hipófise e do hipotálamo”, descreve a ginecologista Cláudia Salomão, da Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).
Devido a esse efeito mais sistêmico, aparecem os sinais de puberdade que conhecemos tão bem: crescimento de mamas e genitálias, surgimento de pelos e espinhas, mudanças de humor…
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Essa origem central da puberdade precoce é o que mais se encontra nos consultórios — e foi o caso de Gabriela, diagnosticada aos 7 anos.
Também é a situação mais cercada de mistérios. Nem sempre é possível encontrar o motivo exato das alterações que ocorrem nas estruturas cerebrais que regem toda a produção inicial de hormônios. Estima-se que cerca de 90% dos casos sejam idiopáticos, isto é, de causa desconhecida.
Ciente disso, a endocrinologista Ana Claudia Latronico, professora da Universidade de São Paulo (USP), se dedica ao estudo da puberdade precoce há três décadas e comanda um grupo que já desvendou algumas pistas genéticas sobre o amadurecimento prematuro.
“Até o momento, identificamos cinco diferentes genes que, ao apresentarem mutações, levam à puberdade precoce central”, conta. Essas variantes do DNA ajudam a explicar casos em que há histórico familiar da condição e podem ser identificadas por meio de testes genéticos.
A puberdade precoce central é também o quadro que vem apresentando aumento no diagnóstico da pandemia pra cá. Suspeita-se que o sedentarismo e o ganho de peso propiciados pelas medidas de controle e o receio à Covid-19 possam estar por trás.
“A obesidade na infância está relacionada a um incremento na produção de substâncias que amadurecem os ossos, por exemplo”, repara Alves. “Além disso, a exposição a telas, mais comum na pandemia, inibe a melatonina, o hormônio do sono. E sua desregulação pode afetar a produção de outros hormônios.”
Puberdade precoce periférica
Mas, como pontuamos, se há uma desregulação central — partindo da cabeça —, há também uma periférica. Nesses casos, menos habituais, as causas costumam ser mais delimitadas. Tumores benignos ou malignos em glândulas podem modificar a produção hormonal, bem como os chamados desreguladores endócrinos.
“São substâncias de origem externa que, ao entrarem em contato com o corpo, bloqueiam ou estimulam os hormônios”, define a médica Margaret Boguszewski, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem). E elas têm atraído cada vez mais a atenção da ciência.
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Entre os principais disruptores endócrinos conhecidos e acusados de ligação com a puberdade precoce estão estireno e bisfenol A (usados na fabricação de certos plásticos), benzeno, chumbo, mercúrio, além de muitas substâncias presentes em agrotóxicos.
Por isso, viver em zonas rurais em que ocorre amplo uso de defensivos agrícolas é um dos fatores de risco para o desenvolvimento de puberdade precoce periférica (PPP).
Em 2018, um estudo da Universidade Federal do Ceará (UFC) relacionou essas substâncias químicas a casos de malformação congênita e amadurecimento sexual prematuro em bebês e crianças que vivem na Chapada do Apodi, área no Nordeste comumente sobrevoada por aviões que pulverizam pesticidas.
Outro tipo de disruptor, um tanto inusitado, pode estar circulando dentro da família. “Muitos pais aplicam géis de testosterona na pele e, ao abraçarem ou brincarem com os filhos, sem querer, transferem o hormônio para os pequenos, fazendo com que eles comecem a apresentar características puberais”, alerta Sidney Glina, urologista do Hospital Israelita Albert Einstein, na capital paulista.
Tratamento para o corpo… e a mente
Identificar os sinais da puberdade precoce o mais cedo possível e estabelecer o diagnóstico correto são passos essenciais para administrá-la direito. Quadros periféricos são tratados com a retirada ou controle de tumores e interrupção da exposição aos tais disruptores endócrinos.
Já quadros centrais necessitam dos chamados bloqueadores de puberdade. São doses de hormônios análogos aos produzidos pelo hipotálamo, que devem ser aplicados periodicamente nas crianças para inibir o desenvolvimento antes da hora.
“O princípio consiste em fazer com que esses hormônios cheguem à corrente sanguínea e a hipófise passe a reconhecê-los como algo normal, e não como um estímulo para a produção de outros hormônios”, explica Margaret.
Tais medicamentos estão disponíveis inclusive no Sistema Único de Saúde (SUS). O tratamento é interrompido assim que os médicos avaliarem que o paciente está na idade ideal para desenvolver a puberdade naturalmente.
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A estudante Gabriela, que hoje tem 14 anos, passou quatro anos em tratamento. “Ela tomava a aplicação a cada 21 dias”, recorda a mãe, Michelle. “Por mais que explicássemos que era importante, ela não parecia entender muito bem o que estava acontecendo. Era muito nova.”
Agora adolescente, Gabriela já percebe a relevância da intervenção. “Explicar à criança o que está acontecendo com seu corpo e responder às suas dúvidas na hora e da maneira adequadas é fundamental para que corra tudo bem nessa fase”, afirma Juliana Aparecida Selegatto, psicóloga especializada em terapia cognitivo-comportamental da clínica Mental One, da rede Care Plus, em São Paulo.
Nesse sentido, o entrelaçamento das repercussões físicas e psíquicas da puberdade precoce demanda atuação dos profissionais nessas duas frentes.
Um exemplo: casos não tratados costumam levar à baixa estatura, já que os ossos da criança sofrem o “estirão” a partir de uma altura inicial muito mais baixa do que a ideal — e não voltam a crescer após o fim do período puberal.
Se os sinais não forem identificados rapidamente pelos pais, o corpo do pequeno pode mudar muito e ficar diferente do dos colegas, tornando o garoto ou a garota mais vulneráveis a comentários jocosos e bullying.
Há estudos que apontam também que, como essas crianças podem adquirir características mais maduras, estão mais suscetíveis ao risco de abuso sexual e gravidez na adolescência, a depender do contexto social.
“É importante que os pais tenham informação e esclarecimento sobre o assunto para que a criança tenha acesso ao tratamento correto e, inclusive, a um acompanhamento psicológico”, afirma Andrezza de Paula Brito, psiquiatra da infância e da adolescência e membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
Após o diagnóstico de Gabriela, Michelle se tornou uma porta-voz ativa sobre a condição, e hoje ajuda a administrar o grupo “Puberdade Precoce — Brasil” no Facebook, que conta com 2,2 mil membros, a maioria familiares de crianças com esse diagnóstico.
“Como mãe, o maior desafio foi explicar à minha filha por que ela estava passando por aquilo. Hoje eu e ela vemos que cada aplicação do hormônio, por mais dolorosa que fosse, valeu a pena”, comemora. Sim, tudo tem seu tempo…
Corpos em transição
Meninos e meninas vivem mudanças que vão de altura a erupções na pele
Crescimento
A hipófise, glândula cerebral, produz uma grande quantidade de hormônios GH, levando ao salto de altura e ao amadurecimento dos ossos
Pelos
A glândula adrenal é a responsável por influenciar o desenvolvimento de pelos nas axilas, genitálias e, em meninos, no rosto
Suor e odor
Glândulas sudoríparas são estimuladas pela testosterona. O mau cheiro não se deve aos hormônios, mas ao contato com bactérias da pele.
Pele
Com o desenvolvimento das glândulas sebáceas, a pele fica mais oleosa e predisposta a cravos e espinhas. A acne é um problema comum.
Região íntima
Hormônios sexuais induzem o aumento das genitálias, incluindo vulva e lábios, nas meninas, e pênis e testículos, nos meninos.
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Sinais de puberdade nas meninas
Mudanças começam pelas mamas e culminam na menstruação
Crescimento dos seios
O primeiro indício de puberdade é o surgimento do broto mamário, que dará origem às mamas. Nesse período, sentir sensibilidade ou dor na região é comum.
Curvas pelo corpo
Além do aparecimento dos seios, os ossos da pelve crescem e alargam o quadril. Por isso, a cintura pode ficar mais fina. O ganho de peso também é normal nessa fase
Secreção vaginal
Manchas brancas e amarelas podem ser notadas na calcinha. São fluidos que limpam e lubrificam o canal vaginal, um sinal saudável de desenvolvimento.
Menarca
Nos estágios finais, as garotas têm sua primeira menstruação. O sangramento mensal é provocado pela descamação do útero quando não há fecundação.
Sinais de puberdade nos meninos
Alterações comportamentais e na estrutura óssea são as mais notadas
Crescimento íntimo
Nos garotos, a primeira manifestação da puberdade é o aumento dos testículos. Esse processo está ligado ao aumento da produção de testosterona.
Mudança de voz
A partir dos 12 anos, há um alargamento das cordas vocais e o crescimento do pomo de adão, cartilagem sobre o osso no centro do pescoço. Com isso, a voz fica mais grave.
Alargamento torácico
Enquanto a pelve se destaca nas meninas, os ombros e o tórax se avolumam nos meninos — em geral, aos 14 anos. O “estirão” também envolve ganho de massa muscular.
Autodescoberta
No tempo de cada um, durante a puberdade, os meninos têm a primeira ejaculação, conhecida como semenarca. Essa etapa é normal e não precisa causar constrangimento.
Como lidar enquanto responsável?
A fase não é fácil, mas é mais bem encarada com apoio dos pais
Acolhimento
Quando as mudanças corporais começarem a aparecer, as crianças ficarão muito curiosas. Não ridicularize ou minimize preocupações e dúvidas delas.
Diálogo
Criar vínculos é muito importante para construir confiança. Converse com seu filho sobre amizades e passatempos e atente para o uso abusivo de telas.
Papel da escola
Um ambiente saudável é essencial para o desenvolvimento cognitivo e social de todos. As instituições precisam estar preparadas para garantir o suporte aos alunos.
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E quando ela não vem?
Saiba o que ocorre no quadro oposto ao da puberdade precoce
A puberdade é considerada tardia quando as meninas chegam aos 13 anos e ainda não desenvolveram as mamas e os meninos, até os 14, não apresentaram hipertrofia dos testículos.
O atraso pode ser constitucional, em que o início é demorado, mas não ocorrem maiores repercussões à saúde, ou por consequência de um distúrbio, o hipogonadismo.
“Essa segunda possibilidade consiste em uma deficiência mais permanente dos hormônios sexuais”, traduz a médica Ana Claudia Latronico.
Assim como na puberdade precoce, a tardia também pode ter origens centrais e periféricas. Em geral, o tratamento é feito com reposição hormonal.