Em janeiro de 2023, Vitor Marcos morreu na porta de um hospital da capital paulista por falta de uma maca que o sustentasse — antes disso, o jovem de 25 anos que passava mal já havia sido negado em outros dois hospitais por falta de infraestrutura para atender pessoas com obesidade.
Em dezembro de 2022, a influenciadora digital Juliana Nehme, que também é modelo plus size, foi impedida de embarcar na classe econômica de um avião por “ser gorda”.
A responsável pela companhia aérea alegou que a paulistana de 38 anos só poderia embarcar na classe executiva (com assentos maiores) e a compra da nova passagem não poderia ser feita no mesmo dia. Depois de lágrimas e estresse, ela conseguiu autorização para viajar três dias depois.
No fim do mesmo mês, a consultora de imagem Amanda Souza viralizou nas redes sociais por ser descartada após o primeiro encontro às claras do programa Casamento às Cegas Brasil, da Netflix.
No reality show, os possíveis casais conversam inicialmente sem se ver, e nessa etapa ela estava se dando bem com o parceiro. Mas, depois de encontrá-la pessoalmente, o homem não quis prosseguir a relação. Amanda foi a primeira mulher do programa a ser recusada após o primeiro encontro.
Morte, constrangimento, rejeição: como ilustram esses três casos recentes, a gordofobia pode se manifestar em diferentes contextos sociais. E todos eles escancaram quanto uma pessoa acima do peso é julgada e estigmatizada por sua condição.
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Ao mesmo tempo, o culto à magreza voltou aos holofotes. A chamada moda “y2k” — sigla para “year 2000” ou “ano 2000”, em português —, que revive as tendências do início deste milênio, já acumula bilhões de fãs em redes sociais como Instagram e TikTok. Ela valoriza barriga negativa, piercing no umbigo e calças de cintura baixa.
Até as socialites do famoso clã Kardashian, conhecidas pelas curvas acentuadas e seios avantajados, perderam peso e tiraram as próteses de silicone para pegar a onda e compartilhar o novo padrão de beleza. A ditadura da magreza renasce. A gordofobia ganha fôlego.
Bem mais que uma conversa sobre estética, esse é um assunto de saúde pública. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), passa de 1 bilhão o número de pessoas com obesidade no planeta.
No Brasil, mais da metade da população se encontra acima do peso e 22% estão com obesidade propriamente dita. Trata-se de uma condição de incidência crescente, com contornos de pandemia — apesar de seus efeitos prejudiciais à saúde serem mais lentos do que os de uma Covid-19.
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Obesidade é doença? Muitos especialistas concordam que, sim, é uma doença crônica. No mínimo, um fator de risco para uma penca de problemas.
O excesso de peso deixa o organismo em estado inflamatório, entope as artérias e patrocina diabetes, hipertensão, colesterol alto, dificuldades cardiorrespiratórias, apneia do sono e complicações ortopédicas. Sem falar no sofrimento psicológico… E no preconceito social.
Já faz algumas décadas que a medicina se esmera em achar um tratamento resolutivo e seguro. Pílulas mágicas não existem, mas a evolução de remédios e procedimentos é uma realidade.
E, neste ano, há o que comemorar. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou um novo medicamento para obesidade, a semaglutida (Wegovy), do laboratório Novo Nordisk. Injetado com uma caneta no tecido subcutâneo, seu uso regular leva, segundo os estudos, à perda de 15 a 17% do peso corporal, índice inédito para um fármaco.
A aprovação era tão esperada pelos médicos que, antes de ela receber aval do governo, muitos já prescreviam o Ozempic, uma droga com semaglutida como princípio ativo, mas com finalidade e dosagem diferentes — voltada ao controle do diabetes tipo 2 e utilizada para a obesidade em caráter off label (sem indicação em bula).
E não para por aí: já se projeta a chegada de outra medicação potente para ampliar esse arsenal terapêutico que, durante anos, não recebia reforços.
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Então será que esses avanços são a solução para o excesso de peso e, de quebra, para a gordofobia? A coisa está longe de ser tão simplista.
Para início de conversa, os novos remédios não são baratos (podem passar de mil reais por mês) e, a princípio, não serão fornecidos pelo SUS. Depois, o combate à discriminação é um desafio à parte e que não pode esperar.
A gordofobia se origina de um erro conceitual: muitos acreditam que alguém é gordo porque quer e ele tem de se virar para emagrecer, como se não fosse algo que dissesse respeito à sociedade.
“Ainda existe a crença, inclusive de profissionais de saúde, de que a obesidade é um desvio comportamental, e os pacientes são responsabilizados por isso. Mas falamos de uma doença crônica e multifatorial, com influência genética e do estilo de vida”, afirma o médico Paulo Miranda, presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem).
“Perguntar a alguém nessa condição por que nunca emagreceu é o mesmo que perguntar a um calvo por que o cabelo dele caiu. Não é algo simples”, expõe a endocrinologista Jacqueline Rizzolli, da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso).
E não é mesmo! Que o diga quem vive essa saga em busca de respeito e um tratamento que lhe confira mais saúde.
Para entender quão complexa é a obesidade, precisamos dar um passo atrás e rever o básico: a gordura.
Somos ensinados desde cedo a passar longe dela nas refeições e a odiar seu acúmulo no corpo. Faça um teste: pesquise “gordura” no Google. O que aparece? Imagens pejorativas de pessoas gordas e conteúdos do tipo “Como acabar com a gordura localizada?” ou “5 dicas para perder gordura de vez”.
Só que, ao contrário do que se propaga, ela tem uma razão de existir e é tão essencial à vida que o organismo guarda energia na forma de… gordura. A capacidade de armazenar lipídios (seu nome técnico) foi um trunfo evolutivo. Possibilitou que os antepassados do ser humano tivessem um isolante térmico natural, ficassem um bom tempo sem comer e desenvolvessem um cérebro bem-dotado.
Na época dos caçadores e coletores, quem estocava mais gordura no corpo estava em franca vantagem — afinal, não havia delivery e eram comuns períodos de carestia. Uma representação disso é a Vênus de Willendorf, estátua esculpida 25 mil anos antes de Cristo que destaca uma mulher com barriga e seios bem volumosos. O artefato era um símbolo do acesso à comida e fazia alusão à fertilidade e ao bem-estar — só procria e prospera quem come.
Com o desenvolvimento da agricultura e a domesticação de animais, a oferta de alimentos foi gradualmente aumentando. Mas continuava dando trabalho comer.
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É com o surgimento das civilizações que o corpo humano passa a ser visto sob nova perspectiva. Os gregos da Antiguidade foram os primeiros a eleger um padrão “ideal”: como indicam suas estátuas, homens deviam ser atléticos e musculosos; mulheres, curvilíneas.
Historiadores afirmam que os espartanos legavam homens gordos ao ostracismo por eles supostamente serem menos úteis nas batalhas.
Nesse contexto, Hipócrates, o pai da medicina, foi um dos primeiros a escrever sobre a importância do equilíbrio entre aquilo que se ingere (dieta) e aquilo que se gasta (atividade física). Essa forma de enxergar as coisas perpetuou-se com os romanos, mas não persistiu na Idade Média.
Na nova era que se anunciava, o corpo era espelho do meio social. Só era gordo quem fosse rico e levasse uma vida ociosa. Magro era quem labutava nos campos. Um descompasso que foi inclusive objeto de crítica de religiosos.
No Renascimento, do século 15 em diante, o modelo clássico e os corpos “mais proporcionais” voltam a ser valorizados, como demonstra o Homem Vitruviano, de Leonardo da Vinci. Mas a nobreza ainda fazia questão de ostentar fartura, como documentam as mulheres representadas pelo pintor flamengo Rubens.
É só na Idade Moderna que se começa a refletir efetivamente sobre os malefícios da obesidade. Mas a história da nossa relação com a gordura irá mudar mesmo após a Revolução Industrial, no século 19.
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Com a disseminação das máquinas, o estilo de vida das pessoas que migravam para as cidades foi se transformando. Com o tempo, aumentaram a oferta de alimentos calóricos (e de baixo valor nutricional) e o sedentarismo (menos suor, mais maquinário).
A rotina de trabalho — primeiro nas fábricas, depois também nos escritórios — e a loucura dos centros urbanos tornaram o ser humano mais estressado do que nunca. Começa a se desenhar, então, o cenário para a explosão da obesidade, que vingou na segunda metade do século 20, e continua firme e forte.
Segundo alguns teóricos, somos frutos dessa dissonância entre evolução biológica, pois herdamos um corpo ávido por poupar energia, e evolução cultural, marcada por rápidas e intensas metamorfoses sociais.
Acontece que a sociedade que pariu o corpo gordo é a mesma que não o entende nem o tolera.
“Hoje, a insatisfação com isso faz girar a economia, estimulando as pessoas a investir tempo e dinheiro no emagrecimento. Mas não deixa de ser uma forma de elitização: só quem pode pagar por alimentação saudável, academia e procedimentos estéticos alcança o padrão estabelecido”, analisa a antropóloga Renata Rennó, do conselho técnico da Associação Brasileira de Transtornos Alimentares (Astral Br).
Não à toa, a obesidade cresce em ritmo galopante entre pessoas e nações mais pobres. Que também ficam mais doentes. Daí a medicina reconhecê-la como uma doença crônica complexa, influenciada por fatores genéticos, ambientais, sociais, psíquicos e comportamentais.
“Essa complexidade inerente é muitas vezes descartada em favor da visão do sobrepeso e da obesidade como uma questão de força de vontade, um truque empunhado pelas indústrias para descartar a ação regulatória em favor da responsabilização pessoal. É implausível que pouca força de vontade explique o aumento concomitante da prevalência de obesidade em tantas faixas etárias e grupos étnicos”, argumenta um editorial da revista científica The Lancet.
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O parâmetro adotado pela OMS para calcular o peso ideal de cada pessoa é o índice de massa corpórea (IMC).
Ele é um cálculo simples — peso dividido pela altura ao quadrado — e, dependendo do resultado, você recebe uma classificação diferente: abaixo do peso, quando é menor que 18,5; normal, entre 18,5 e 25; sobrepeso, de 25 a 29,9; e obesidade, a partir de 30. Dentro dessa última categoria, existem graduações: de 30 a 34,9 é grau I, de 35 a 39,9 é grau II, e maior que 40 é grau III.
O IMC é amplamente usado e aceito, mas também criticado por não diferenciar os componentes do peso corporal (músculo, osso, gordura…).
“Pensando numa perspectiva coletiva, é um instrumento válido para pesquisas sobre peso. Mas a aplicação no nível individual é muito vaga, não nos diz como é a distribuição de gordura ou o volume de massa magra”, explica a nutricionista Pabyle Flausino, doutoranda em Saúde Coletiva da Universidade Estadual do Ceará (Uece).
“Além disso, esses parâmetros de corte foram criados baseados na população americana, que tem um padrão de corpo diferente da latina e de outras etnias”, pondera a pesquisadora.
Quando se fala em obesidade e sobrepeso, uma das perguntas que mais se fazem é: “Existe gordinho saudável?”
A literatura médica não é unânime, mas de forma geral se acredita que todo excesso de peso possa representar um risco. E, aqui, é importante novamente diferenciar as coisas. No caso, o próprio tipo de gordura corporal.
“A gordura visceral, aquela que fica entre os órgãos e é visível pelo tamanho do abdômen, é a mais perigosa para a saúde”, diz a endocrinologista Karen de Marca, do Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia (Iede), no Rio de Janeiro.
“Uma pessoa com IMC indicando sobrepeso que tem pouca gordura nas pernas e nos braços, mas muita na região da barriga, pode ter uma saúde pior que a de outra com IMC de 30”, exemplifica a também diretora da Sbem.
O que faz o número ou o ponteiro da balança mudar não é apenas o percentual de gordura do corpo. Como o peso é inespecífico, o ideal é olhar para a composição corporal. Nesse sentido, a meta é aumentar a massa muscular e diminuir a gordura, sobretudo a visceral. A forma mais indicada de chegar lá é apostar no binômio dieta equilibrada e atividade física, sem se esquecer dos exercícios de força, que promovem o desenvolvimento muscular. A balança não é confiável para medir essas mudanças porque você pode ir à academia, ganhar massa magra, perder gordura e, ainda assim, seu peso poderá não oscilar.
Levando em conta as limitações do IMC, e um entendimento mais global da obesidade, o Canadá foi um dos primeiros países a atualizar radicalmente suas diretrizes de tratamento. O documento pontua que só o peso não é suficiente para definir obesidade, e são necessários outros parâmetros para o diagnóstico.
Fora isso, não se pauta mais apenas na perda de peso em si, mas em mudar e melhorar o estado de saúde do paciente.
O guideline se baseia numa ferramenta diferente para classificar o excesso de peso e orientar o tratamento, o Sistema de Estadiamento da Obesidade de Edmonton (Edmonton Obesity Staging System, ou EOSS), que, muito além do peso, leva em consideração comorbidades e alterações físicas, psíquicas e funcionais.
“Gostamos muito desse consenso canadense, e ele servirá como referência a uma futura diretriz da Abeso”, revela Jacqueline, coordenadora do Departamento de Cirurgia Bariátrica da instituição.
“O ideal é não ter um único parâmetro para avaliar o paciente, mas somar as informações. Nem mesmo a presença de comorbidades indica necessariamente que o quadro é mais grave. Uma pessoa com obesidade e a pressão arterial controlada pode estar numa situação menos preocupante do que outra que não é hipertensa mas está com um excesso de peso maior. É tudo muito individual”, reflete a especialista.
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O xis da questão com a obesidade é que ela pode não vir sozinha. A confeiteira Débora* tem 1,69 metro de altura e chegou a pesar 110 quilos. Após o parto da filha, teve o primeiro caso de trombose, e começou a querer perder gordura. Fez uso de remédios como sibutramina e orlistat, mas nenhum deu resultado.
Após contrair Covid-19, Débora teve uma nova trombose e precisou passar por uma cirurgia nas veias das duas pernas. A confeiteira procurou um endocrinologista com o objetivo de tomar remédios controlados para emagrecer — de repente, um tipo de anfetamina, droga que nem é mais recomendada nesses casos pelo risco de efeitos colaterais psicológicos.
O médico prescreveu doses baixas de semaglutida (Ozempic). Em cinco meses e meio, a paciente perdeu 21 quilos. “No início, tive azia, queimação, dor de cabeça, sonolência, e a medicação prendeu muito meu intestino. Mas já me adaptei, e sou grata a esse remédio”, relata.
Débora foi um dos milhares de brasileiros que saíram do consultório com a indicação off label da semaglutida até então disponível.
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Agora, os profissionais terão à disposição a versão apropriada para tratar a obesidade. A expectativa é alta porque muita gente já obtinha êxito na perda de peso usando de 0,5 a 1 grama de semaglutida. E a nova medicação (Wegovy) tem 2,4 gramas do princípio ativo — dose semanal que, segundo os ensaios clínicos, mantém seu bom perfil de segurança.
Dando nome aos bois, a badalada semaglutida é um agonista de receptores de GLP-1, uma família de medicamentos que revolucionou o tratamento do diabetes e quer mudar a história da obesidade.
Nosso corpo fabrica naturalmente o GLP-1. Ele é produzido pelo intestino em resposta à ingestão de comida e estimula o pâncreas a secretar insulina para que a glicose seja captada do sangue e vire energia nas células. A sacada da indústria farmacêutica foi criar uma molécula que imita esse hormônio.
“Hoje é um dos medicamentos mais potentes para controlar o diabetes tipo 2”, conta o endocrinologista André Vianna, diretor da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD). Mas e a perda de peso? Bem, essa ação não fica atrás, porque o hormônio (e, por extensão, o remédio) também retarda o esvaziamento do estômago e atua no sistema nervoso controlando a sensação de saciedade.
Só que a semaglutida dá um passo além. “Ela é 94% análoga ao hormônio natural, e esses 6% de diferença trazem uma vantagem: dura mais tempo no organismo”, explica Vianna. “Enquanto o GLP-1 fica cerca de um minuto e meio no sangue, a semaglutida é quebrada gradualmente e sua ação dura sete dias”, continua o endocrinologista. Por isso ela requer apenas picadas semanais.
Além da semaglutida, que também conta com uma versão via oral, temos no Brasil outras duas medicações dessa classe, a liraglutida (indicada para diabetes e perda de peso) e a dulaglutida (prescrita para diabetes).
Mas, como dissemos, não há pílula ou injeção milagrosa. Usar análogos de GLP-1 não exime ninguém de cuidar da alimentação e fazer exercícios. E, sim, existem efeitos colaterais. As drogas podem causar náusea, diarreia e desconforto no abdômen. Quem tem refluxo ou bebe álcool regularmente precisa conversar bem com o médico antes de partir para elas.
Apesar do custo mais alto, o fato é que muita gente vem comprando o remédio por conta própria para emagrecer — sem saber se preenche os critérios para tanto. “Mas o tratamento farmacológico para a perda de peso só deve ser feito com indicação e acompanhamento médico”, reforça Miranda.
Outro ponto de atenção é que esses remédios exigem uso contínuo. É totalmente contraindicado (e contraproducente) tomar só para caber no vestido ou no terno de casamento. “A obesidade é um problema altamente recidivante, ou seja, se as medidas terapêuticas não forem adotadas no longo prazo, vai haver reganho de peso”, avisa o presidente da Sbem.
Utilizando o fármaco direitinho, porém, o saldo é positivo. “Para a semaglutida, já temos estudos com pacientes em uso do medicamento por até dois anos. As pesquisas prosseguem, mas é essencial lembrar que, no tratamento, há a fase de perda de peso ativa e a fase de manutenção do peso perdido. Os dois períodos precisam estar contemplados no planejamento terapêutico ”, esclarece o endocrinologista.
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A safra de novas soluções contra a obesidade não para na semaglutida. Outro medicamento está para ser aprovado no Brasil, a tirzepatida. Desenvolvida pelo laboratório Eli Lilly, ela já é comercializada nos Estados Unidos.
Trata-se de uma classe nova, a dos agonistas duplos. De acordo com o diretor da SBD, a tirzepatida não só simula a ação do GLP-1 mas também a de outro hormônio intestinal, potencializando o controle dos mecanismos de fome e saciedade.
Nos estudos, ela chegou a reduzir mais de 20% do peso dos pacientes — maior índice conquistado por um remédio até agora. Também prescrita para o diabetes tipo 2, espera-se que desembarque no país até o fim deste ano.
Não, inclusive é uma prática proibida e não recomendada pelas sociedades médicas. Apesar de os derivados da testosterona (os anabolizantes) induzirem perda de gordura e ganho de massa muscular, isso não acontece sem riscos potencialmente graves à saúde. Alguns deles são: infertilidade, agressividade intensa, acne severa, aumento do risco de problemas cardiovasculares (como infarto e morte súbita cardíaca) e de tumores em órgãos como fígado e pâncreas. Nas mulheres, engrossamento de voz e hipertrofia do clitóris podem ser irreversíveis. Lembrando: só se toma hormônio se houver déficit dele comprovado por exames. Aliás, as anfetaminas (como mazindol, femproporex e anfepramona), que inibem o apetite, não são mais indicadas para perder peso.
O efeito poderoso dos novos medicamentos na perda de peso chegou a fazer algumas pessoas questionarem se eles não substituiriam a cirurgia bariátrica, a popular “operação de redução de estômago”. Mas não funciona assim, tudo depende da indicação individualizada, do contexto e dos propósitos.
“A cirurgia promove uma perda de peso maior. Ao realizar alterações anatômicas, também ocorrem alterações hormonais, e isso garante um emagrecimento sempre acima de 30% do peso corporal, podendo chegar a 60%”, contextualiza Antônio Carlos Valezi, presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM).
“Remédios como a semaglutida são uma excelente opção para quem não tem indicação cirúrgica, ou mesmo para aqueles que realizaram o procedimento e, por algum motivo, engordaram de novo”, elucida o cirurgião.
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Hoje a operação — e há diversas técnicas, algumas delas menos invasivas — é recomendada a pessoas com IMC acima de 40 ou acima de 35 acompanhado de comorbidades, como diabetes e pressão alta.
A escolha do método cirúrgico leva em conta justamente o quadro geral do indivíduo. “Se ele faz uso de medicamentos contínuos, como aqueles para pacientes reumatológicos ou transplantados, a gente prefere a cirurgia que não reduz o intestino, a fim de não haver comprometimento na absorção dessas drogas”, exemplifica Valezi.
A bariátrica está disponível no SUS. Na verdade, é um dos poucos tratamentos para obesidade incluídos na rede pública, desde que o paciente se enquadre nos critérios e encare uma longa fila de espera. “Tem gente querendo engordar só para conseguir fazer a cirurgia pelo SUS”, conta, preocupada, Pabyle.
Sim, inclusive está cada vez mais comum: cerca de 50% dos pacientes ganham pelo menos 5% do peso de volta no longo prazo. Na verdade, os resultados absolutos da cirurgia só são vistos cinco anos depois do procedimento, tempo necessário para a pessoa se adaptar ao peso novo. Segundo a Abeso, se houver até 10% de reganho, a depender do caso, o tratamento cirúrgico surtiu um bom efeito. Mas, se o reganho for maior que isso, e começar apenas um ano após o procedimento, é preciso voltar ao especialista para averiguar. Cabe ressaltar que o resultado da cirurgia não se mantém sem mudanças no estilo de vida. A falta de acompanhamento e adesão a novos hábitos pode resultar até na necessidade de uma nova operação.
À base de remédio ou pelo bisturi, é ilusão pensar que a obesidade é um problema que se resolve da noite para o dia. Há prós e contras em cada tratamento e deve-se ter em mente que o controle da doença se estende por anos a fio. Do contrário, a pessoa sofrerá com o efeito sanfona (grandes flutuações de peso), que pode ser ainda mais prejudicial que o excesso de peso em si.
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E, quando se fala em tratamento, nenhum profissional de saúde deixará de receitar o que é o carro-chefe nessa estrada: os ajustes permanentes no estilo de vida. Equilibrar a alimentação e praticar exercícios físicos é o básico, mas algo ainda muito negligenciado. E, de novo, não existe caminho curto. Ou dietas e treinos mágicos.
“É interessante pensar que nunca estivemos num momento como este: ao mesmo tempo que muita gente faz, conhece e divulga diversas dietas, nunca vivemos numa sociedade tão pesada”, reflete a nutricionista Mariana Dimitrov, pós-doutora pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP).
“A cultura da dieta, principalmente a restritiva, claramente não está ajudando as pessoas a emagrecer. É preciso que a alimentação seja uma aliada na busca pela saúde, não uma inimiga”, argumenta.
Mariana realizou, durante o mestrado e o doutorado, uma pesquisa no estilo “intervenção” com 58 voluntárias com obesidade. Durante sete meses, elas tiveram acompanhamento nutricional — mas sem prescrição de regime, só orientações —, fizeram atividade física sem a obrigação de bater metas e priorizando os exercícios de que gostavam e participaram de grupos de discussão sobre temas como a moralização do corpo e da saúde.
Ao final do experimento, o peso médio delas não mudou, só que houve melhora na capacidade física, na função muscular, no padrão alimentar (menos ultraprocessados, mais frutas e hortaliças) e na percepção da sua imagem corporal, com efeitos se estendendo para além do tempo de estudo.
“Elas tiveram um claro ganho de saúde”, afirma a pesquisadora. “Sair do ciclo de culpa pela comida e encarar um novo estilo de vida, recuperando o prazer de se movimentar, melhorou muito a qualidade de vida”, diz.
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A saída do sedentarismo é realmente um ponto de virada diante do sobrepeso e da obesidade.
“O exercício individualizado é o melhor remédio. Um estudo clássico feito pelo Colégio Americano de Medicina do Esporte mostrou que pessoas ativas com o IMC acima de 27 apresentavam uma taxa de mortalidade quatro vezes menor do que as mais magras que eram inativas”, expõe o educador físico Marcos Fortes, pesquisador do Serviço de Obesidade, Transtornos Alimentares e Metabologia do Iede, no Rio.
“O exercício potencializa o efeito da alimentação, do medicamento e da terapia comportamental no tratamento da obesidade, além de reduzir diversos fatores de risco associados à condição”, concorda e acrescenta a educadora físca Ana Dâmaso, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que há anos investiga o assunto.
E se engana quem pensa que, para perder peso, a pessoa precisa se esgoelar na esteira ou na bicicleta — ou seja, fazer atividade aeróbica em alta intensidade. Correr, pedalar e nadar são muito bem-vindos, mas o ideal é iniciar com exercícios resistidos, até porque a pessoa já elimina gordura com as mudanças no cardápio.
Então, que tal incluir sessões de musculação na agenda? “A força e a manutenção da massa muscular representam a valência mais protetora no quesito saúde. Só após fortalecer articulações, tendões, ligamentos e músculos, e aprimorar a capacidade metabólica, é que se deve treinar com mais intensidade”, orienta Fortes.
Aliás, não importa se a malhação for na academia, em casa ou no parque, supervisão profissional é de suma importância. “É essencial treinar com um instrutor especializado e habilitado para reduzir o risco de lesões”, observa o educador físico. Não é detalhe: uma lesão pode ser o estopim de um círculo vicioso que culmina no sedentarismo de novo.
Bem, se dieta e exercício são o mínimo do tratamento multiprofissional da obesidade, talvez você se pergunte: o objetivo é fazer o sujeito atingir um peso ou IMC “ideal”? Na verdade, não.
Perder peso, ganhar saúde. Pode parecer tão trivial, mas, na prática, ser algo extremamente desgastante.
“É muito difícil mudar os hábitos alimentares, um dos principais pilares do tratamento. A percepção de que basta usar a racionalidade e escolher alimentos melhores não leva em conta que o comer no dia a dia é algo muito mais intuitivo que racional. As pessoas com obesidade se esforçam, fazem um exercício diário para mudar e isso muitas vezes implica sofrimento e frustração se não conseguem seguir o planejado”, avalia a endocrinologista Maria Edna de Melo, do Grupo de Obesidade e Síndrome Metabólica do Hospital das Clínicas da USP.
Tendo em vista esse desafio, e um olhar mais humanizado para o tema, a Abeso e a Sbem lançaram, em 2022, um documento propondo uma nova maneira, mais sensível e antenada às evidências, de classificar a condição, introduzindo os conceitos de “obesidade reduzida” e “obesidade controlada”.
Agora, entende-se que nem todo mundo que busca tratamento vai chegar ao IMC recomendado, mas, ainda assim, poderá ter um ganho enorme de saúde.
“Estudos mostram que reduzir de 5 a 10% do peso corporal já promove benefícios significativos. Por isso, o tratamento deve ser acompanhado de metas baseadas numa redução percentual do peso em relação ao estado inicial”, esclarece Miranda. “E, uma vez atingida a meta, deve haver uma estratégia para a manutenção do peso perdido”, destaca o presidente da Sbem.
Dentro dessa abordagem mais completa e efetiva, a cabeça não pode ser esquecida. “Um acompanhamento psicológico ou psiquiátrico também é crucial para o tratamento”, defende a psicóloga Leorides Duarte-Guerra, coordenadora-geral do Núcleo de Estudos de Obesidade (NEO) do Instituto de Psiquiatria da USP (IPq-HCFMUSP).
“Em pesquisa recente, notamos que 81% dos pacientes que vão para cirurgia bariátrica têm algum transtorno mental, como depressão, bipolaridade e ansiedade”, revela a especialista.
Nesse contexto, é preciso ficar atento à complexidade das questões psicológicas. “Nem toda pessoa com obesidade tem transtorno de compulsão alimentar. É errado fazer essa associação direta”, salienta a psicóloga Fabíola Luciano, que foi colaboradora do Grupo de Assistência, Ensino e Pesquisa em Comer Compulsivo e Obesidade (GRECCO -IPqUSP). “Um diagnóstico preciso e individualizado é essencial para a condução correta do tratamento”, ressalta.
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Uma das manifestações de ansiedade mais comuns, que influencia diretamente o ganho de peso, é o chamado comer emocional. “Muitos pacientes sofrem por conta da dificuldade de lidar com as próprias emoções, e acabam usando a alimentação como uma esquiva, uma válvula de escape. Isso pode vir em situações de crise, mas também no dia a dia, por ócio, tédio ou mesmo falta de atenção ao comer”, pontua Fabíola, que é especialista em terapia cognitivo-comportamental.
E, quando o tema é gatilho emocional, é impossível não voltar a falar de gordofobia. Sobretudo quando ela parte de quem deveria acolher: os profissionais de saúde.
“Para pessoas gordas, é uma batalha ir ao médico. Já ouvi casos de gente que tem tremedeira e falta de ar no dia. A gente se prepara porque sabe que não vai ser uma consulta. Vai ser um embate. Muitos chegam e nem conseguem falar onde dói. Já ouvem o ‘tem que emagrecer’ do profissional”, relata o nutricionista Erick Cuzziol, especialista em comportamento alimentar e criador do perfil Nutricionista Gordo no Instagram.
A dificuldade de mudar o ponteiro contra o preconceito é tão grande que moveu Erick e uma comissão da Abeso a entrar numa batalha em busca de leis, para que, assim como a homofobia e o racismo, a gordofobia também seja encarada como crime.
“Essa discriminação afasta as pessoas do tratamento. Se houvesse um acolhimento, poderíamos salvá-las de diversas doenças crônicas”, justifica Erick. “Mas o que a gente vê é um alto índice de desistência por causa de uma espiral de humilhação: na consulta, na academia, em todo lugar que se busca ajuda. A sociedade estressa, ofende e persegue essas pessoas, gerando comportamentos alimentares disfuncionais e contribuindo para que elas se entreguem”, esmiúça.
Outro desafio de peso, apontado pelos especialistas, é a falta de tratamentos oferecidos pelo SUS. Não há fornecimento de remédios específicos para obesidade nem garantia de atendimento multiprofissional. Sem falar na infraestrutura problemática, com a falta de macas, leitos e máquinas de exames para pessoas com excesso de peso.
E é irônico constatar isso diante da alta prevalência da condição no país. Ainda estamos longe de vencer a gordofobia e dar um tratamento digno a todo mundo com obesidade. Mas novos ventos sopram, e já não dá mais para ignorar os velhos dilemas.