No início de janeiro deste ano, o jornalista Rafael Silva, de 36 anos, teve uma parada cardíaca enquanto apresentava um jornal na TV Alterosa (afiliada do SBT em Minas Gerais) e desmaiou ao vivo. Silva passou por uma morte súbita abortada – a reversão de uma arritmia grave, que poderia matar em minutos.
Da cidade onde estava, Varginha (MG), à Belo Horizonte (MG), para onde foi transferido, teve outras paradas cardíacas e foi reanimado. O jornalista está bem e já voltou ao trabalho, com um desfibrilador implantado no coração – se suspeita de uma possível explicação genética para o que houve, que poderia levar a novas síncopes.
Só que a história (assim como várias outras) acabou caindo nas garras do movimento antivacina. Médicos, influenciadores digitais e políticos como a deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP) divulgaram que Silva teve um mal súbito por ter sido imunizado contra a Covid-19.
É uma história recorrente. Entre as vítimas de mentiras semelhantes estão um fisioterapeuta do Instituto do Coração (Incor), em São Paulo/SP, que sofreu um infarto na virada do ano dois meses depois de tomar a segunda dose, e atletas que sofreram mal súbito quando ainda nem tinham se vacinado.
O mal súbito em jovens é um evento que já ocorria antes da vacinação contra a Covid-19, e geralmente sua origem tem a ver com doenças cardiovasculares até então desconhecidas pela vítima.
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Mesmo que a incidência não tenha aumentado depois do início da imunização global, essas fatalidades são utilizadas para desinformar e gerar dúvidas na população.
Para sanar algumas delas, VEJA SAÚDE conversou com o cardiologista Henrique Barroso Moreira, membro da equipe de Arritmias do Instituto Orizonti, em Belo Horizonte.
Moreira, que cuidou do jornalista mineiro, dá dois recados claros: o acontecimento nada teve a ver com a vacina e deixar de receber o imunizante é infinitamente mais perigoso.
VEJA SAÚDE: O que exatamente aconteceu com o Rafael? Qual foi sua participação no caso?
Henrique Barroso Moreira: Recebemos o Rafael com o histórico de morte súbita abortada. São arritmias que, se não tratadas em poucos minutos, levam à morte. Desde então, fizemos uma série de exames, como ecocardiograma e ressonância magnética.
Não encontramos alterações cardíacas que poderiam justificar a arritmia, apenas uma alteração chamada disjunção do anel da válvula mitral [estrutura que coordena a passagem de sangue de um compartimento do coração a outro]. Com base nisso, implantamos um desfibrilador em seu coração para corrigir rapidamente novas arritmias que possam acontecer.
Ainda não podemos afirmar, contudo, que a causa da arritmia foi a disjunção, porque não encontramos outros indícios disso nos exames. Diante das circunstâncias, pedimos um estudo genético para avaliar possíveis fatores congênitos envolvidos. Mas existe uma porcentagem pequena de pessoas em que não conseguimos detectar um gatilho.
A vacina pode desencadear um evento do tipo? É algo que, como cardiologista, te preocupa?
O Rafael recebeu o imunizante da Pfizer. Em estudos, temos a descrição de miocardite e a pericardite [inflamações cardíacas] como efeitos colaterais muito raros dessas vacinas. Em algumas situações, esses quadros podem deixar cicatrizes no coração e levar a arritmias do tipo.
Mas, no caso específico que tratamos, não havia nenhum sinal de miocardite e pericardite. Ou seja, não podemos dizer que existe uma relação com a vacina. Não temos nenhum caso do tipo descrito no mundo, nem de mal súbito relacionado à vacina. Somente as inflamações. É uma distância bem longa entre as duas coisas.
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E no coração de quem pega Covid? O que pode acontecer?
A Covid pode provocar exatamente isso – uma inflamação que gera uma cicatriz, que pode levar a uma arritmia fatal. Mas, nesse caso, mais severa, e muito mais frequente do que pode acontecer com a vacina.
Veja: a Covid tem uma capacidade maior de provocar miocardite grave, então não é o imunizante que deve ser tachado como um vilão. Inclusive porque, na maioria dos casos, a vacina evita isso.
O que você costuma dizer para quem está com receio de se vacinar por conta dessas notícias falsas?
Os estudos que liberaram as vacinas foram bem desenhados e acompanhados com rigor pela comunidade científica. Nós acreditamos e confiamos neles.
Além disso, pela proporção de vacinados [mais de 10 bilhões de doses já foram distribuídas no mundo] e de efeitos colaterais detectados, podemos confirmar que reações adversas preocupantes são muito raras e contornáveis.
Na medicina, sempre temos que comparar o risco e o benefício antes de recomendar um tratamento. E entendo que o benefício das vacinas é infinitamente maior do que qualquer risco, perto do que a doença em si pode fazer [e uma observação nossa: mesmo com a variante Ômicron, que nem sempre é “leve”].