As lições (e perguntas) deixadas pelo estudo da Coronavac em Serrana
Imunidade de rebanho contra Covid-19 foi atingida com 75% dos adultos da cidade vacinados. Mas o que isso quer dizer para o resto do Brasil?
O Instituto Butantan divulgou recentemente os primeiros resultados de um estudo pioneiro que vacinou praticamente todos os adultos da cidade de Serrana, no interior de São Paulo. O principal destaque foi a obtenção da imunidade de rebanho: ao atingir 75% de cobertura vacinal, a pandemia de Covid-19 foi considerada controlada na cidade.
Entre fevereiro e abril, 27 160 maiores de 18 anos (ou seja, 95% do total de habitantes) receberam a Coronavac. Depois do período, houve uma redução de 80% dos casos sintomáticos e de 86% nas hospitalizações por Covid-19, além de uma queda de 95% nas mortes. E isso aconteceu enquanto as cidades da região enfrentavam picos da infecção.
Para os especialistas, o estudo confirma o esperado. “Ele mostra que a vacinação em larga escala é capaz de controlar a doença e proteger inclusive aqueles que não foram imunizados”, comenta a epidemiologista Denise Garrett, vice-presidente do Sabin Institute, nos Estados Unidos.
Outro achado bacana: o trabalho reforça a segurança da Coronavac, que é feita com o vírus vivo inativado. Entre as cerca de 50 mil doses da vacina administradas, menos de 5% levaram a alguma queixa de reação adversa. Tanto na primeira quanto na segunda picada, menos de 0,2% desses relatos eram considerados um pouco mais sérios: dores de cabeça e no corpo.
Os dados ainda devem ser revisados por pesquisadores e publicados em periódicos científicos, especialmente para esclarecer algumas questões, como o efeito das vacinas nos idosos. Mas, com o que temos agora, já dá para extrair aprendizados valiosos para todo o Brasil.
Imunidade de rebanho é possível com a vacina, mas depende de rapidez
Essa é a melhor notícia da pesquisa. “No início da pandemia, imaginamos que seria necessário vacinar cerca de 70% da população para obter a proteção coletiva. Depois, esse número aumentou para 90%. E, agora, podemos pensar em reduzi-lo de novo”, comenta Denise.
Como vimos, a pandemia começou a ser controlada em Serrana quando 75% do público alvo foi vacinado. Na prática, isso não quer dizer que o Sars-CoV-2 foi embora, mas sim que a taxa de transmissão do vírus (a RT) se mantém abaixo de 0,5. Ou seja, 100 infectados contaminam 50 indivíduos suscetíveis.
“Ele segue circulando, mas lentamente, de uma maneira que é possível atender a população que eventualmente adoecer”, comenta a epidemiologista Ethel Maciel, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
A prova da imunidade de rebanho em Serrana é que os casos caíram mesmo em quem não pôde receber a vacina (a exemplo das crianças) ou em quem ela tende a não funcionar tão bem (falamos dos idosos).
Mas a velocidade da imunização é fundamental para atingir esse patamar. “Observamos que a efetividade foi alta porque a vacinação aconteceu rapidamente”, destaca Ethel. Portanto, ainda não dá para presumir que a pandemia também estará controlada no país quando 75% dos brasileiros estiverem imunizados.
Com a campanha andando a passos lentos, muita coisa pode acontecer até lá. “A população é dinâmica. Pessoas nascem, morrem, chegam, vão embora, a imunidade pode cair com o tempo… Fora isso, ao manter grandes bolsões de suscetíveis, ainda podem surgir variantes que afetem a transmissibilidade do vírus”, explica Denise.
Todos esses fatores impactam nas contas. “Se estivéssemos vacinando como os Estados Unidos e Israel, aí, sim, poderíamos pensar em imunidade coletiva”, conclui Denise. No ritmo atual, estamos meio como um marinheiro tirando água de um barco, mas sem tampar os furos.
E vale reforçar que esse status de controle só pode ser atingido pela vacinação, ainda mais no caso da Covid-19. “Não existe imunidade natural com um vírus que sofre tantas mutações e que sabemos que pode infectar mais de uma vez a mesma pessoa”, resume Ethel. O caso de Manaus, que foi atingida duramente pela pandemia em dois momentos diferentes, ilustra bem essa situação.
Já o aspecto rapidez ajuda a entender por que a Coronavac tem se saído melhor na vida real do que nos estudos pré-aprovação, que apontam uma eficácia de 50% na prevenção de casos de Covid-19. “Quando a população está em sua maioria vacinada, a eficiência da fórmula aumenta”, diz Ethel. É a história da vacina ser como um goleiro, que não carrega sozinho a responsabilidade de impedir gols, já explicada aqui.
Vacinas diferentes para pessoas diferentes
O Butantan apontou uma redução de óbitos por Covid-19 na ordem de 95% em Serrana como um todo, não apenas nos vacinados. Para chegar a esse número, eles compararam o período em que os voluntários estavam sendo imunizados (fevereiro e abril) com a incidência da doença entre o meio de abril e maio.
O achado confirma o que tem sido notado em análises da vida real de outros países. A mais recente veio do Uruguai, onde a Coronavac se mostrou superior à Comirnaty, da Pfizer, em prevenir mortes.
Na nação vizinha, elas foram igualmente eficientes em reduzir internações por Covid: 95% de eficácia da Coronavac e 99% com a Pfizer.
Nos óbitos, contudo, a diferença foi maior: 97% de proteção da Coronavac ante 80% da Pfizer. E o que justifica esse resultado? “Ele indica que a distribuição da vacina foi otimizada por lá”, aponta Ethel.
A Coronavac foi direcionada aos jovens uruguaios, que tendem a construir uma resposta imune mais robusta com a picada, enquanto a Comirnaty, com uma eficácia global maior e com estudos já realizados em idosos, ficou para os mais velhos e profissionais de saúde, ambos em alto risco de infecção.
Eis duas lições importante para nós: primeiro, não faz sentido comparar o efeito individual das vacinas, porque cada uma tem suas vantagens dependendo da situação em que será utilizada.
Depois, investigações do tipo podem servir para melhorar a campanha nacional de imunização. “O Brasil precisa pensar nisso no segundo semestre. Poderíamos destinar as doses de Pfizer e AstraZeneca aos idosos e pessoas mais expostas ao vírus e a Coronavac aos jovens”, raciocina Ethel.
A especialista só destaca que, acima disso, qualquer vacina aprovada terá efeito positivo na pandemia, desde que seja aplicada em larga escala. O problema no país é justamente a (falta de) agilidade. “Mesmo se tivéssemos apenas a Coronavac e ela fosse distribuída rapidamente, funcionaria muito bem”, encerra.
Caso dos idosos ainda é incerto
Já se sabe que o envelhecimento piora a resposta a vacinas no geral, uma vez que o sistema imune vai perdendo potência com o tempo. Recentemente, um estudo nacional apoiado pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) apontou para uma eficácia de 28% da Coronavac em maiores de 80 anos.
Isso acendeu um alerta ainda maior sobre o assunto, indicando que, talvez, seja preciso implementar uma terceira dose ou revacinar os idosos de tempos em tempos. Embora deixe a questão em aberto por não ter avaliado essa faixa etária separadamente, o estudo de Serrana dá pistas de que, mesmo que tal cenário se confirme, eles podem ser protegidos indiretamente.
Entre eles, a incidência de casos, hospitalizações e mortes também caiu.
Mas há ressalvas aqui. Não se sabe o número de idosos vacinados e o total de casos entre eles. “Como a população da cidade é pequena, é possível que a amostra não tenha atingido relevância estatística”, aponta Denise. Traduzindo: às vezes, os participantes com mais de 80 anos no estudo são tão poucos que não permitem inferências sobre o grupo como um todo.
Outro ponto é que eles podem ter sido protegidos indiretamente, com a tal imunidade de rebanho. Mais estudos (e a publicação deste em um periódico científico) deverão destrinchar melhor a ação da fórmula nos mais velhos. Enquanto isso, ficamos torcendo para que o efeito Serrana seja sentido nas outras 5 569 cidades brasileiras.