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Pesquisa revela os desafios de ser cuidador no Brasil

Um estudo inédito destrincha as percepções e as dificuldades de 2 534 familiares e profissionais que zelam pela saúde dos outros no país

Por Goretti Tenorio
15 set 2021, 16h12

A história é conhecida em boa parte dos lares: alguém da família passa a precisar de uma ajuda na hora de tomar os remédios, ao se alimentar ou nas saídas para ir ao médico, e a pessoa mais próxima acaba assumindo essa função. Com o tempo, o quadro de saúde exige uma dedicação maior, e se estabelece assim a figura do cuidador familiar. Dependendo das necessidades e das possibilidades, a família opta, então, por contratar um profissional.

Embora essa experiência seja compartilhada por tantos brasileiros, pouca atenção se vinha dando a essas pessoas que se dedicam a manter a qualidade de vida de outras. E é para lançar uma nova luz ao assunto que VEJA SAÚDE e o Instituto Lado a Lado pela Vida (LAL) realizaram, com o apoio da farmacêutica Novartis, a pesquisa Cuidadores do Brasil.

O estudo entrevistou pela internet 2 047 cuidadores familiares e 487 profissionais de todas as regiões do país para entender os desafios do dia a dia de quem exerce uma atividade que, com o envelhecimento populacional, ganha cada vez mais relevância. “Um dos achados que mais chamam a atenção é o fato de estarmos diante de uma geração de idosos cuidando de idosos”, destaca Marlene Oliveira, presidente do LAL.

Ela se refere ao dado de que seis em cada dez cuidadores familiares têm pelo menos 50 anos e quase 30% estão na casa dos 60 ou mais. “Apesar de ter um papel-chave atendendo a um parente ou exercendo essa ocupação profissionalmente, o cuidador muitas vezes fica à margem e suas necessidades não são enxergadas, sofrendo impactos físicos e emocionais dentro de uma jornada em geral desgastante”, analisa Marlene.

gráficos com dados da pesquisa
(Gráficos: Thiago Lyra/SAÚDE é Vital)

Com uma carga de trabalho diária, realidade de oito entre dez dos respondentes da pesquisa, 90% dos cuidadores familiares relatam que tiveram de assumir o papel por ser o parente mais próximo ou não dispor de condições financeiras para arcar com o custo de um profissional. Para complicar, mais de um terço não tem sequer com quem revezar nessa tarefa.

“Mesmo quando somos contratados, com horários de entrada e saída determinados, não é raro ter que esticar um pouco mais o período”, conta a paulistana Eloísa Mascarenhas, que tem experiência tanto como cuidadora profissional quanto ajudando familiares e amigos que recorrem a seus conhecimentos obtidos em cursos profissionalizantes.

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“Veja, se administro um medicamento novo, tenho que acompanhar para anotar se os efeitos são os esperados. Então, se for preciso, fico um pouco mais além do expediente”, exemplifica.

“Isso sem contar o vínculo com a pessoa a quem estamos dando assistência, o que nos leva a estender a jornada quando percebemos que nossa presença é necessária para acalmar um idoso com demência num momento de crise ou convencê-lo a tomar banho ou a comer”, continua Eloísa.

Foi o que ela vivenciou recentemente ao auxiliar um tio com Alzheimer. “A relação de afeto não diminui a preocupação. Ao contrário, aumenta a responsabilidade, o temor de não dar conta da situação quando ele ficava mais agitado. É preciso ter habilidades emocionais para lidar com o estresse da situação”, relata a cuidadora.

A idade avançada e a presença de doenças neurodegenerativas, que tendem mesmo a exigir mais apoio nas tarefas básicas, respondem por um quarto das necessidades das pessoas atendidas pelos participantes do levantamento. E o quadro ganha contornos mais preocupantes quando se observa que quase 80% dos cuidadores familiares não têm cursos na área de saúde.

“O impacto emocional não é pequeno entre essas pessoas. Uma queda que não conseguem evitar pode despertar o sentimento de culpa. Na pandemia, muitos temeram a possibilidade de levar o vírus para a casa dos idosos”, conta a geriatra Maisa Kairalla, da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG). Não à toa, na sondagem, 73% dos cuidadores familiares e 48% dos profissionais relatam sofrer com estresse. Também são comuns queixas como insônia e dores nas costas.

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Por essa razão, diz a médica, no Ambulatório de Gerontologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), sob sua coordenação, montou-se um grupo de atenção à saúde de quem acompanha o idoso. “Se essa pessoa não está bem cuidada, o paciente também não será bem atendido”, justifica.

gráficos da pesquisa
(Gráficos: Thiago Lyra/SAÚDE é Vital)

Enfrentando desafios como ter que manter a calma em situações de emergência e o esforço para ganhar a confiança da família, o cuidador é um agente fundamental no acompanhamento da saúde do paciente.

“Ele integra uma rede de apoio importante na adesão ao tratamento e nas ações voltadas ao bem-estar, sobretudo na população que exige cuidados de longa duração”, afirma a fisioterapeuta especialista em gerontologia Monica Perracini, professora da Universidade Cidade de São Paulo (Unicid).

gráficos da pesquisa
(Gráficos: Thiago Lyra/SAÚDE é Vital)

Entre os cuidadores familiares, 88% estão ao lado do paciente nas consultas médicas — no grupo dos profissionais, 82% se fazem presentes. “Muitas vezes, somos os únicos responsáveis por essa tarefa porque nenhum parente pode comparecer no dia marcado. Então é preciso redobrar a atenção para registrar e seguir as recomendações do médico”, diz a cuidadora Eloísa.

“Já cheguei a ligar para um laboratório para entender melhor os efeitos de um medicamento prescrito”, recorda. O anseio de estabelecer uma via de comunicação com as empresas responsáveis pelos tratamentos, aliás, é expresso por quase 80% dos brasileiros que responderam ao questionário.

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“Se a pessoa não está bem informada, existe o risco de ocorrer o que chamamos de insuficiência de cuidado, que leva a um aumento de idas ao pronto-socorro e de internações, e consequentemente mais demandas dos serviços de saúde”, explica Monica.

Nesse sentido, a pesquisa aponta uma necessidade de expandir os canais de orientação, uma vez que sete em cada dez respondentes não conhecem associações que dão suporte a pacientes e a quem dá assistência a eles.

“Precisamos desenvolver programas de atenção capazes de ajudar na transição de cuidados após a alta hospitalar, até para evitar reinternações”, defende Monica. “Não adianta fazer tecnicamente um trabalho muito bom, como uma cirurgia de quadril bem-sucedida, e mandar o paciente para casa sem que a pessoa que vai acompanhá-lo receba as recomendações adequadas, porque isso vai resultar em comprometimento futuro”, ilustra.

De fato, o estudo mostra que há uma sede por conhecimento e orientação do lado dos cuidadores. “Até porque, como vemos na amostra, a maior parte cuida do pai ou da mãe e, assim, deseja retribuir de alguma forma aquilo que recebeu durante a vida”, analisa a professora da Unicid.

Não surpreende, portanto, que, embora tenha passado pela cabeça de 46% desses familiares abrir mão da atividade, apenas 3% o fizeram. E que a palavra “gratidão” seja a mais lembrada entre todos os participantes para definir o que sentem por exercerem essa ocupação.

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gráficos da pesquisa
(Gráficos: Thiago Lyra/SAÚDE é Vital)
Gráficos da pesquisa
(Gráficos: Thiago Lyra/SAÚDE é Vital)

Para Maisa Kairalla, é urgente pensar em ações em prol do reconhecimento da função de quem cuida. Só assim será possível reverter a percepção de 40% das pessoas ouvidas de que a atividade é totalmente desvalorizada no Brasil.

“A sociedade precisa ter uma visão da importância desse profissional. As famílias estão mais enxutas e as mulheres, que por uma questão cultural sempre assumiram essa tarefa, hoje estão ocupadas com a sua carreira”, argumenta a geriatra. Nesse cenário, diminui a chance de um familiar poder zelar integralmente pela necessidade de um ente querido.

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Na opinião de Monica Perracini, para diminuir a precarização das relações de trabalho do cuidador, é necessário mudar o olhar para essa ocupação. “A gente tem a tendência a qualificar quem exerce essa profissão como uma pessoa heroica, que se doa em benefício de outra, o que não deixa de ser uma característica do perfil”, avalia.

“Mas isso também acaba gerando sobrecarga, uma mistura entre as atribuições do cuidar e as demais tarefas domésticas, além de contribuir para a baixa remuneração”, diz.

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A mudança desse panorama, de acordo com Luiz Edmundo Rosa, diretor da Associação Brasileira de RH, passa por capacitação e treinamento. “A defesa de uma profissão se baseia na formação. E a remuneração está vinculada a isso. Nesse sentido, a meu ver, os programas existentes hoje no país pecam pela falta de padronização, desde a estipulação da carga horária até o conteúdo”, afirma Rosa.

Segundo ele, seria fundamental promover um debate sobre quais são as competências necessárias a um cuidador e a partir daí definir os conhecimentos básicos e as eventuais especializações, seja para trabalhar com criança, seja para trabalhar com idoso ou com portadores de doenças crônicas.

Na visão da deputada federal Carmen Zanotto (SC), que é enfermeira de formação, a elaboração de políticas públicas que contemplem a organização da categoria é o caminho para que esses profissionais sejam reconhecidos como parte importante do sistema de saúde.

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“Não podemos negligenciar esses trabalhadores. A atividade hoje é regulamentada pela lei complementar que trata dos direitos do empregado doméstico, mas precisamos avançar”, diz.

Ela conta que o tema vem despertando interesse no Congresso, tanto que existem hoje em tramitação mais de 60 projetos de lei voltados a cumprir as demandas da classe. “Esperamos que esse estudo contribua para romper a invisibilidade dessa legião de pessoas que fazem parte da solução de saúde no país. Já passou da hora de elas terem suas necessidades atendidas”, ressalta Marlene Oliveira.

gráficos da pesquisa
(Gráficos: Thiago Lyra/SAÚDE é Vital)
gráficos da pesquisa
(Gráficos: Thiago Lyra/SAÚDE é Vital)
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