Trigo, pão e glúten: excluí-los do cardápio pode ser um tiro no pé
A ciência discorda de quem diz que eles deveriam estar na lista de alimentos proibidos
Essa matéria faz parte do dossiê Tribunal da Comida, publicado na edição de outubro (508). Clique aqui para ler os outros conteúdos.
Comecemos o julgamento dos alimentos polêmicos pelo mais amado e odiado de todos: o trigo.
Está no DNA do brasileiro comer um pãozinho no café da manhã e tomar uma cervejinha no fim de semana.
Mas, atualmente, todas as massas de tortas, bolos, doces e até mesmo a bebida precisam ter uma versão sem glúten, elemento presente no cereal que há tempos é acusado de ataques contra a saúde.
Algumas teorias alegam que o trigo foi modificado geneticamente e agora tem muito mais glúten, ocasionando um salto nos casos de intolerância e prejuízos ao organismo, como aumento da inflamação e ganho de peso. Será que faz sentido?
Bom, o trigo integra a alimentação do ser humano há milênios. Os cereais estão entre os primeiros produtos cultivados quando grupos ancestrais resolveram se fixar, garantindo o aporte de calorias em tempos de falta de proteína animal. Hoje, se ocorresse uma devastação nas plantações, cerca de 1/3 da população teria sua alimentação severamente comprometida.
Além disso, ao contrário do que muita gente diz, o trigo não é pobre nutricionalmente. “Ele fornece carboidratos complexos, sendo uma boa fonte de energia, além de fibras e outras substâncias importantes em nossa alimentação”, afirma o nutrólogo Mauro Fisberg, coordenador do Centro de Excelência em Nutrição e Dificuldades Alimentares do Instituto Pensi/Sabará Hospital Infantil, em São Paulo.
Veja: dietas consagradas, como a mediterrânea, têm o trigo como base do portfólio. E, nesse pedaço do globo, ninguém reclama de desconforto por comer um pão.
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Mas e o glúten? Vamos lá: ele nada mais é que a combinação de duas classes de proteínas bastante comuns em cereais como trigo, cevada e centeio.
Quando a farinha é misturada com água e agitada, essas moléculas se combinam e formam uma rede elástica. É graças a isso que o pão e o bolo conseguem reter os gases liberados pelafermentação, resultando em uma massa aerada, cheia e volumosa.
O glúten, portanto, confere uma textura macia e fofa ao alimento. É o trunfo da indústria de panificação. Contudo, infelizmente algumas pessoas desenvolvem uma reação indesejável a essa proteína.
Quem é alérgico ao glúten tem a chamada doença celíaca, um problema autoimune marcado pelo ataque do organismo quando a proteína se faz presente no sistema digestivo, situação que gera uma série de incômodos e repercussões.
Nesse caso, o sujeito realmente tem que cortar o glúten da dieta, e, não à toa, desde 2003, uma lei obriga os produtos a estampar a presença do ingrediente no rótulo.
Ocorre que menos de 1% da população convive com essa condição. Os casos menos severos de reação são denominados de intolerância ao glúten, um quadro que varia consideravelmente de pessoa para pessoa.
Tirando essa turma — que, cabe reforçar, é uma minoria —, não há nenhum indício de que o glúten faça mal à saúde. “Nenhum estudo até hoje o associou ao aumento da inflamação no organismo. Só que muita gente engorda ou tem dor abdominal e, sem investigar direito, resolve cortá-lo”, aponta Fisberg.
É claro que não se deve abusar do carboidrato que vem junto ao glúten no pacote do trigo — mas esse recado, lembre-se, se aplica a qualquer nutriente.
“Muita gente chega ao consultório achando que tirar o glúten ajuda a emagrecer”, observa Josefina. Porém, as coisas não são tão simples assim.
Aliás, a professora relata que celíacos que excluem a proteína podem engordar após a mudança, devido à melhora da absorção de nutrientes no intestino ou mesmo a um maior consumo de gordura.
“Além disso, diversos produtos sem glúten são mais calóricos que os convencionais, porque é preciso aumentar a quantia de outros ingredientes para substituí-lo”, revela.
Dessa forma, podar o glúten sem necessidade e orientação pode acabar virando um tiro no pé… e no peso.
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Outro mito propagandeado é o de que o trigo de hoje teria mais glúten ou seria mais nocivo, em razão de transformações genéticas, que o de antigamente. Não passa de teoria da conspiração.
“O cereal passou por diversos melhoramentos nos últimos anos, até para se adaptar ao solo e clima do Brasil”, explica Ricardo Castro, pesquisador da Embrapa Trigo. “Mas o teor de glúten não foi alterado, e sim a capacidade de ligamento dele, o que chamamos de força de glúten. Isso foi essencial para garantir um trigo brasileiro mais adequado à panificação.”
Apesar da aura negativa que ronda o alimento, durante a pandemia houve um aumento da procura por massas, elevando em 15% a demanda por trigo no Brasil.
“Ah, mas toda vez que como sinto que o pão não cai bem”, você pode rebater. Ok, em primeiro lugar, saiba que trigo não inflama do jeito que falam por aí. Depois, se você costuma comprar o produto industrializado, que tal tentar umas receitas mais naturais?
“Quem nunca comeu um pão de fermentação natural, feito apenas com farinha, água e sal, não conhece o sabor do pão de verdade”, diz Marta Carvalho, da Martoca Padaria Artesanal, na capital paulista. Após mais de dez anos de experiência e estudos na área, a padeira afirma que pães feitos desse modo, com fermento biológico e sem conservantes, tendem a ser mais bem digeridos.
“Infelizmente, eles ainda são mais caros em nosso país. Mas não é preciso ter mais do que três ingredientes para fazer o seu.” E aí, vai arriscar?
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