Mel nativo: o ouro do Brasil
Os produtos das abelhas nativas sem ferrão movimentam criadores e consumidores em busca de opções nutritivas, sustentáveis e muito saborosas
Elas viajam quilômetros entre flores, frutos e plantas e, ultimamente, têm visitado mais e mais restaurantes, quintais e varandas das grandes cidades, além de centros de pesquisa de todos os cantos do país. São as abelhas nativas sem ferrão — ou abelhas-da-terra ou, ainda, indígenas.
Uruçu, mandaçaia, guaraipo e jataí são os nomes de algumas dessas espécies que habitam o país da costa aos sertões. Umas são listradas, outras totalmente negras; há as de olhos verdes; e aquelas que mais parecem mosquitinhos. Até as alcunhas variam: a jupará é chamada de jandaíra em alguns lugares, enquanto a tubuna é apelidada de canudo em outros.
Em comum, dispõem de um ferrãozinho atrofiado, sem serventia, e são bem diferentes daquela imagem usual, que evoca a espécie de DNA estrangeiro que não só pica como se espalhou e povoou o Brasil.
Entre os mais de 20 mil tipos de abelhas que voam pelo mundo, centenas compõem esse grupo especial que prefere áreas tropicais, e ao menos 250 são de berço tupiniquim.
Embora sejam velhas conhecidas dos povos indígenas — pelos nomes dá para perceber —, nos últimos anos têm sido redescobertas e valorizadas inclusive nos centros urbanos.
“Houve um aumento na procura por cursos de criação de abelhas sem ferrão”, afirma o biólogo Cristiano Menezes, da Embrapa Meio Ambiente, no interior paulista. “Boa parte desse público quer ampliar o contato com a natureza ou ter um novo hobby.”
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Fora o apelo em prol da preservação da fauna e flora, outro ingrediente dessa popularização é o mel que esses insetos fabricam. “Chefs de cozinha, entre outras personalidades, contribuem com o movimento”, relata o engenheiro-agrônomo Bruno de Almeida Souza, da Embrapa Meio-Norte, no Piauí.
Se há uma miríade de criaturinhas do tipo pelo país — mesmo enfrentando ameaças como a destruição de florestas e o uso massivo de agrotóxicos —, imagine a variedade de tons, texturas, aromas e sabores de seus méis. “É um mundo a ser explorado”, anima-se a chef Heloisa Bacellar, de São Paulo.
Comparado ao tradicional, obtido pela apicultura — ou seja, dos insetos que dominam o setor produtivo —, o mel das sem-ferrão concentra mais nutrientes e compostos antioxidantes, segundo análises de laboratório. E tende a ser menos doce, mais líquido e com maior acidez.
Mas cada espécie dá seu toque na formulação, assinando a obra na colmeia. O resultado também vem temperado pelo clima, o solo e a florada visitada.
“As características dependem do local onde vivem as abelhas”, resume Eugênio Basile, sócio-proprietário da Mbee e da Academia do Mel, em São Paulo. “É como se elas fizessem uma fotografia da paisagem e a imprimissem na forma de mel”, descreve.
Trata-se do que os experts chamam de terroir, termo francês emprestado do universo vinícola que considera fatores como a geografia, a forma do cultivo, entre outras coisas, para a qualidade do produto final.
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Voltando às colmeias, elas abrigam os sabores do habitat das coletoras de néctar. Vale destacar que essa interação faz muito mais que agregar qualidades sensoriais. “A abelha é um importante agente polinizador”, ressalta o agrônomo André Sezerino, da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri).
A atividade desses bichinhos contribui para a perpetuação dos ecossistemas de cada um dos biomas. Estimativas revelam que são responsáveis pela polinização de cerca de 30% das espécies da Caatinga e do Pantanal, por exemplo.
Além das matas, atuam no cultivo de alimentos, aumentando a produtividade. “Observamos ótimos resultados nas safras de maçã”, ilustra Sezerino. “As abelhas são as grandes semeadoras da vida, carregam material genético para todos os lados e mantêm rica a nossa biodiversidade”, vibra o chef paraense Saulo Jennings, do restaurante Casa do Saulo, que tem unidades no Pará e no Rio de Janeiro.
Todo o zum-zum-zum em torno das abelhas sem ferrão, que ganhou asas na última década, além de trazer ao prato o delicioso alimento de cor dourada, contribui para frear o declínio da população de algumas espécies. “A uruçu-capixaba está desaparecendo”, comenta o ecólogo Jerônimo Villas-Bôas, organizador do livro 67 Receitas com Mel de Abelhas Nativas (Instituto Atá).
O risco de extinção, nesse caso, tem tudo a ver com seu lar, a Mata Atlântica, que é um dos biomas brasileiros mais devastados. Para preservar esses insetos, são urgentes medidas como combate ao desmatamento e a queimadas, assim como o emprego mais racional de agrotóxicos nas lavouras. “É fundamental tornar as práticas agrícolas mais amigáveis”, afirma Villas-Bôas.
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A meliponicultura também ajuda. O termo refere-se à criação da tribo Meliponini, classificação para esse grupo tão peculiar — a diferença vem até no nome, basta lembrar que a criação da abelha convencional e importada se chama apicultura. Assim como suas primas famosas, dotadas de ferrão, nas colônias das nativas há a rainha, as operárias e os machos.
De modo geral, funciona da seguinte maneira: cabe à soberana botar ovos e garantir a organização das colônias; já a ala masculina tem papel reprodutor.
As trabalhadoras, por sua vez, exercem diversas funções. “Elas são as defensoras das colmeias e usam várias estratégias com essa finalidade, inclusive a de morder com suas minúsculas mandíbulas”, descreve Souza.
Algumas produzem bolotas pegajosas que grudam nas asas e imobilizam inimigos, outras se emaranham nos cabelos dos visitantes. “Não é uma experiência agradável”, recorda a nutricionista Maísa Mota Antunes, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que passou pela experiência na fazenda do avô, em Montes Claros, mas, ainda assim, é fã do mel.
As proletárias são dotadas de um tipo de cesto acoplado às pernas traseiras, a corbícula, que transporta barro, resina e outros materiais utilizados na construção dos ninhos. O dispositivo também carrega pólen, recolhido das plantas, que serve de alimento, sobretudo como fonte de proteína.
“Outra função das operárias é coletar o néctar das flores”, diz a engenheira-agrônoma Fábia de Mello Pereira, da Embrapa Meio-Norte. E aí vem a parte mais saborosa da história.
Esse ingrediente fica guardado em uma bolsinha, ou melhor, em um órgão chamado vesícula nectarífera, durante a viagem, e já começa a ser processado com enzimas ali.
Na colmeia, recebe novos tratamentos, até mesmo ventilação, proveniente das asas, que ajuda na desidratação. Ainda assim, tende a apresentar até 30% de água, ante os 18% dos méis de abelhas africanizadas.
Na carteira de identidade, lê-se Apis mellifera, mas, no dia a dia, é chamada de abelha africana ou europeia. A espécie mais popular do Brasil tem raízes nos dois continentes. Descende de família trazida por padres, no século 19, habituados a consumir mel e a produzir velas com a cera das colmeias. E tem ainda rainhas ancestrais vindas da África para fins de pesquisa, no idos de 1950. Naquela época, houve um cruzamento, por acidente, e elas se espalharam graças à capacidade de se adaptar em diferentes lugares. São bravas, com seus ferrões e venenos, mas também exímias produtoras de mel.
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Na etapa seguinte, a mistura passa por uma fermentação realizada por leveduras e outros micro-organismos. “É essa fase essencial que confere os sabores e aromas”, nota Basile.
A acidez mais acentuada, que tanto agrada os cozinheiros, também é fruto desse processo. E é por causa dele que se aconselha manter os méis de abelhas nativas sem ferrão na geladeira.
Como hábeis ceramistas, os insetos ainda confeccionam potes para esse fim: são elaborados com cera e resina de plantas. “Eles desempenham papel semelhante ao dos barris de carvalho do vinho, que transferem compostos e intensificam gostos e perfumes”, explica Menezes.
Outras cumbucas, de alas separadas, acomodam o pólen, que, junto do mel, alimenta toda a população do ninho e deve ser armazenado para momentos de carência de comida.
Entre os meliponicultores, quando há redução drástica no estoque devido à estação ou a mudanças no habitat, há quem sirva alternativas para suprir as necessidades da colmeia.
“Mas há todo um cuidado para que esses méis não se misturem com os elaborados exclusivamente da matéria-prima das flores e plantas da região”, observa Fábia. Afinal, os detalhes do preparo fazem a diferença no resultado da receita.
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Embora o brasileiro conviva há tanto tempo com as abelhinhas, o consumo desses méis ainda é baixo por aqui — a exceção fica por conta de algumas comunidades, onde são mais apreciados. “Mas existem pinturas rupestres, em São Raimundo Nonato, no Piauí, que remetem à sua coleta”, destaca Fábia.
Prova de que os povos originários já o utilizavam como fonte de energia. “Hoje, além do uso culinário, as pessoas procuram pela ação bactericida, principalmente quando estão com a garganta irritada”, comenta a nutricionista Vanderlí Marchiori, da Associação Brasileira de Fitoterapia (Abfit).
O grande rival do mel à mesa, porém, é o açúcar. O favoritismo é histórico: vem desde o século 16, início do ciclo de produção da cana-de-açúcar. “Enquanto europeus consomem quase 2 quilos de mel per capita, ficamos na média de 60 gramas”, compara Sezerino.
O preço também pesa no bolso: os potinhos diferenciados podem custar cinco vezes mais que o tipo comum. As discrepâncias têm a ver com o volume de produção. As nativas fabricam bem menos que as africanizadas.
Se, como dita o chavão, os melhores perfumes estão em pequenos frascos, digamos que os méis nativos — ou meles, como alguns preferem — têm um chamariz e tanto. “Há produtos delicados, vindos de flores minúsculas visitadas por abelhas pequeninas. São preciosos”, diz Heloisa, que adora uma degustação.
Mas será que dá para introduzir na rotina sem medo das calorias e dos carboidratos ali reunidos? “Com equilíbrio, pode-se incluir no rodízio de opções que adoçam o cotidiano”, responde a nutricionista Tarcila Campos, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo.
Apesar de ele abrigar substâncias especiais, a professora Maísa faz uma ponderação: “Ainda que os méis das sem-ferrão sejam ricos, não devem ser encarados como fonte de nutrientes diários”.
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Ok, mas o que encontramos nesse presente da natureza? Pesquisas indicam que as obras de jataí, uruçu e companhia possuem minerais como potássio, ferro e cálcio, além de vitamina C.
Alguns trabalhos revelam, ainda, componentes de ação prebiótica, ou seja, aliados da microbiota intestinal. Também encontramos ali os antioxidantes, que blindam as células de estragos.
“Vemos compostos fenólicos, caso da quercetina e do ácido gálico, entre outras substâncias”, relata a engenheira de alimentos Suelen Ávila, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). A pesquisadora está envolvida em estudos — com as espécies guaraipo, mandaçaia, manduri e tubuna — para determinar parâmetros de qualidade e, assim, dar suporte aos criadores da região.
Sem dúvida, a formulação do mel apresenta componentes valiosos, mas sua maior concentração é de carboidratos, pois o néctar açucarado é sua principal matéria-prima. Ainda na barriguinha da abelha, ele começa a ser quebrado até resultar em diversas moléculas, sobretudo as de glicose e frutose, que são açúcares simples, de absorção rápida.
A nutricionista e chef de cozinha Maria Cecilia Corsi, à frente do Cecilia Corsi Food Coach, na capital paulista, ensina um macete para brecar essa velocidade: “É só combiná-lo com alimentos proteicos e ricos em fibras. Dessa maneira, a resposta glicêmica no organismo será gradual”. O truque, claro, não é sinônimo de passe livre para exageros.
A quem tem diabetes, o consumo deve ser liberado após conversa com o profissional de saúde. “O mel não é proibido, desde que haja orientação sobre a quantidade”, afirma Tarcila.
Tudo depende do balanço de ingredientes nos pratos. “Que tal uma salada de folhas com molho de limão, hortelã e um fio de mel?”, sugere.
Cozinheira de mão cheia, Maria Cecilia ainda recomenda o alimento para finalizar o salmão grelhado com cogumelos e a panqueca de aveia ou mesmo enriquecer receitas como mingau ou overnight oats, um combo vitaminado, proteico e fibroso.
Para o chef Saulo, que faz questão de honrar as origens amazônicas, uma boa combinação é a de mel da canudo no tucupi, o sumo extraído da mandioca. “Sua acidez me agrada muito”, diz. Aliás, essa mesmíssima abelha é personagem de uma bela lenda indígena.
Na história, que remonta à origem do mundo, a índia Uniawamoni não quis subir ao céu junto de seu irmão, que se transformaria no Sol. Ela escolheu ficar na Terra, ao lado da tribo sateré-mawé, para proteger o guaraná, assumindo a forma do inseto. E tem cumprido sua missão, pois, além de produzir o ouro doce, poliniza a flora da região. É divina ou não é?
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Bichos de estimação
Todos os pesquisadores ouvidos nesta reportagem são entusiastas da criação de abelhas, mesmo em centros urbanos. “Minhas filhas, Valentina e Helena, gêmeas de 7 anos, vivem encantadas com a casinha de mandaçaia por aqui”, conta Sezerino. A colmeia fica na varanda do 8º andar, em Caçador, Santa Catarina.
Para quem se interessa, uma orientação: “É preciso seguir a legislação ambiental do estado e optar por espécies nativas da região”, diz Villas-Bôas.
Nada de importar abelhas nordestinas para o Sul. Para quem quer receber a visita esporádica desses insetos e tem espaço, existem plantas mais atrativas, como manjericão, cosmos-amarelo, alecrim, girassol e erva-doce.