“Indústria dos ultraprocessados prega ideias falsas”, diz médico
Em Gente Ultraprocessada, infectologista inglês Chris Van Tulleken explica por que estamos viciados em produtos que ele alega não serem comida
Você já parou para pensar em quantos alimentos ultraprocessados consome em um dia normal?
O médico britânico Chris Van Tulleken não apenas pensou, como também resolveu seguir uma dieta com 80% desses alimentos durante um mês.
Resultado: 6 quilos a mais, indisposição, ansiedade, constipação (com hemorroidas e fissuras anais de brinde) e hormônios que regem fome e saciedade totalmente desregulados.
No livro Gente Ultraprocessada (Elefante – Clique para comprar), ele conta essa experiência, entrevista diversos especialistas, pessoas que trabalham na indústria alimentíciae resgata histórias sobre a evolução da alimentação para desvendar uma questão: por que viramos uma sociedade tão dependente de ultraprocessados?
Em entrevista à VEJA Saúde, Tulleken rebate mitos relacionados a esses produtos e conta mais sobre seu livro. Confira!
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VEJA SAÚDE: Chris, você começa o livro contando sobre o seu experimento e convidando o leitor a fazer o mesmo enquanto lê. Conte um pouco mais sobre esse convite.
Chris Van Tulleken: Havia uma coisa muito importante que eu queria deixar claro ao leitor do livro: a cientista brasileira Fernanda Rauber [pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP (NUPENS)], me deixou enojado com a comida. Ela acendeu um interruptor no meu cérebro!
Quando comecei a jornada do livro, eu era muito viciado nesses produtos. Mas, depois de falar com Fernanda, eu não queria mais comer! Foi como uma libertação de um vício, e temos boas evidências de que, se você se envolver com uma substância ou comportamento viciante enquanto aprende sobre ele, a informação pode ajudá-lo a parar. Funciona com muita gente tabagista, por exemplo.
Por isso, escrevo o livro com esse convite, para que o leitor participe ativamente da leitura e coma alimentos ultraprocessados enquanto lê. Não há julgamentos. A melhor maneira de aprender sobre a comida é comendo-a.
Espero também que as pessoas que estão lutando contra doenças relacionadas à alimentação entendam, ao ler o livro, que não é culpa delas. Há muitos entrevistados da indústria alimentícia porque quero que os leitores vejam o quão inteligentes são os cientistas que criam essa comida viciante.
A indústria dos ultraprocessados prega ideias falsas como a que as causas da obesidade são, na verdade, exercícios, força de vontade ou genética, e não seus produtos. Espero que o livro seja uma ferramenta para vencer uma discussão com alguém que discorda.
Outro ponto é que fico muito entediado lendo livros de não ficção. Então, fui colocando histórias suficientes para que você queira saber o que vai acontecer comigo, meus filhos, meu irmão, meus pacientes, os entrevistados. Mas não foi fácil! Como não sou um jornalista experiente, houve muito material desperdiçado.
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Dentre essas histórias pessoais, você comenta que, antes, você julgava muito seu irmão que tinha obesidade. Mas isso mudou depois de entender a estrutura que a indústria alimentícia criou. Pode falar mais sobre essa quebra de estigma?
Sim, foi uma confissão: uma grande parte do livro sou eu tentando parar de julgar meu irmão. Quando ele tinha obesidade, eu passei muito tempo criticando ele e dizendo que ele deveria se esforçar e perder peso. Eu não sabia o que estava dizendo, e ele só perdeu peso quando eu parei de falar sobre isso. Quando eu fiquei quieto.
Felizmente, meu irmão me permitiu levá-lo na jornada do livro comigo: ele também ligou para a Fernanda, eu pedi para que ela falasse com ele sobre comida. Hoje, ele não ingere mais nenhum ultraprocessado e não tem mais obesidade.
Se alguém está lendo o livro porque está preocupado com seu filho, marido ou esposa vivendo com excesso de peso, espero que, ao final da leitura, eles saibam que não julgar é o primeiro passo. Por que não é culpa das pessoas, é um grande sistema muito maior que elas que induz o ganho de peso.
E isso vale para os médicos também, serve para todos. Apenas não julgue o corpo dos outros e fique quieto sobre o que eles comem, pois você não sabe pelo que estão passando.
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Você diz no seu livro que comida é química, e todos nós somos moléculas químicas. Acho que a maior dúvida, então, é por que ultraprocessar alimentos e adicionar componentes químicos faz tão mal à saúde. Pode explicar?
Muita gente questiona se o problema é o ultraprocessamento ou se é porque o produto tem excesso de gordura, açúcar e sal. E isso foi muito difícil para mim entender também!
Se eu pegar tigelas de açúcar, gordura e sal aqui e colocá-las entre nós, você não comerá nenhuma delas, nem misturadas, porque não é algo palatável, não vai ser legal.
Agora, se eu colocar uma equipe de 100 cientistas com PhDs para transformar o açúcar, a gordura e o sal em produtos incrivelmente viciantes, adicionando sabores, texturas e outros aditivos, além de usar equipes de marketing para desenvolver lindas embalagens e criar histórias em quadrinhos sobre esses produtos, então a história muda.
Ter as proporções exatas de açúcar, gordura, sal e calorias é uma das formas pelas quais os alimentos ultraprocessados fazem você comer demais, o que obviamente dá muito lucro para as indústrias. No Reino Unido e em outros países, estamos comendo mais calorias do que nunca.
Então, o problema é o processamento ou é o excesso de açúcar, gordura e sal? Os níveis altos destes ingredientes são parte do ultraprocessamento, então os ultraprocessados são a razão de comermos muito açúcar, gordura e sal.
Quando você cozinha em casa, você naturalmente usa menos desses componentes e acaba comendo bem menos.
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Algumas pessoas e até associações não aceitam a classificação de alimentos ultraprocessados. O que você pensa disso?
A definição de ultraprocessados é uma das mais sofisticadas da ciência, é usada por equipes de pesquisa nas melhores universidades do mundo.
A UNICEF aceita, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), a Organização Mundial da Saúde(OMS) e os governos da França, Israel, Bélgica, Argentina, México, Brasil, Canadá, etc. Então, a classificação funciona bem para pessoas que não são da indústria alimentícia.
Não existe uma definição perfeita de alimentos prejudiciais, sim, isso é verdade. Mas as evidências, a classificação brasileira de alimentos ultraprocessados é a mais importante em nutrição neste século, possivelmente uma das mais importantes em saúde pública e medicina.
As únicas pessoas que invalidam essa definição são cientistas financiados pela indústria alimentícia. E acrescento: ninguém que acredita nas evidências sobre ultraprocessados está dizendo que devemos proibi-los, taxá-los da mesma forma, ou que todos são igualmente prejudiciais. O que dizemos é que comer muitos causa danos ao seu corpo e ao planeta.
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Outros argumentam que a recomendação de evitar ultraprocessados pode confundir as pessoas e fazê-las se sentirem mal com suas dietas. Principalmente pessoas mais pobres, que muitas vezes não têm opção. O que acha?
O que faz as pessoas se sentirem mal com suas dietas é a indústria alimentícia ter criado um ambiente onde a população não pode pagar por comida de verdade, e onde são vendidos produtos prejudiciais que as levam a ganhar peso e se sentir mal consigo mesmas.
A desigualdade no sistema alimentar foi criada pelas indústrias, elas que fazem lobby em torno de preços, subsídios e não pagam pelos custos do plástico, pelos efeitos ao meio ambiente e pelos custos de saúde das pessoas.
Dizer a população que muito do que elas comem é prejudicial é algo a serfeito com compaixão e gentileza quando as pessoas não têm escolha.
A indústria alegar que se deve criticar os produtos porque vai envergonhar as pessoas não faz sentido, o que envergonha é ser forçado a comer coisas prejudiciais. É como a indústria do cigarro dizer que você não deve criticar os cigarros porque envergonha os fumantes.
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Você estudava vírus. Por que essa luta contra alimentos ultraprocessados se tornou uma missão?
Eu trabalhei em comunidades muito pobres, comunidades indígenas na África Central e no Sul da Ásia, e lá tratava crianças morrendo de infecções.
Mas, o grande problema, a razão maior pela qual elas contraíram as infecções era o marketing de fórmula infantil. As mães pararam de amamentar, economizaram para comprar a fórmula, mas acabavam fazendo para os bebês com água suja, ou diluíam ao máximo para durar mais.
E, assim, anos depois, comecei a fazer investigações sobre essas indústrias e isso levou a um interesse maior.
Quando finalmente me deparei com o trabalho de Carlos Monteiro, a classificação de ultraprocessados e todo o combo que vem junto, eu notei que as empresas que fazem a comida para bebês também fazem comida para adultos.
Acho que o que realmente importa, e isso eu aprendi no Brasil, com a equipe do Carlos, é que a comida ultraprocessada não é só um produto. Ela é parte de um conjunto de indústrias que funcionam da mesma forma. Elas têm os mesmos donos e criam poder corporativo, mandam no mercado.
Uma lente realmente útil para ver tudo isso são os determinantes comerciais da saúde [termo que engloba a influência de indústrias no nosso bem-estar]. Além dos alimentos, podemos citar álcool, tabaco, produtos farmacêuticos, jogos de azar, plásticos, tecnologia automotiva, combustíveis fósseis e agronegócios.
Por isso é importante conectar comida e tabaco, porque agora as pessoas aceitam que precisamos controlar o tabaco graças ao trabalho de diversos ativistas. Embora a comida seja um problema muito mais difícil, temos uma experiência positiva com o tabaco, e precisamos persistir para que haja também uma regulação dos alimentos ultraprocessados.