Vício em bets: o que acontece na cabeça de um jogador compulsivo?
Estruturas do cérebro são superestimuladas com jogos e apostas online, desencadeando alterações comportamentais que podem trazer prejuízos sérios

Oportunidade, custo e frustração. Esse conjunto de palavras ajuda a definir, de forma certeira, a experiência de um jogador compulsivo. As novas formas de aposta, como as bets, e os riscos para a saúde mental foram destaques do Congresso Brain, realizado em Fortaleza, no Ceará.
Estudioso do tema há mais de 20 anos, o médico psiquiatra Hermano Tavares, professor da Universidade de São Paulo (USP), afirmou em palestra no evento que parte do fascínio pelo jogo pode ser explicada pelo envolvimento de questões caras à psique humana: a chance de fazer previsões e de se obter lucro.
“É a combinação de duas coisas que são muito relevantes para o ser humano do ponto de vista evolutivo: a possibilidade de antecipar o que vai acontecer e de ganhar alguma coisa. Particularmente, dinheiro é mais relevante, uma vez que ele se estabelece como um valor de troca universal”, resumiu Tavares.
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Apostar é motivador, mas por quê?
Para entender como funciona a mente de uma pessoa que joga de maneira descontrolada, é preciso jogar luz sobre estruturas associadas ao sistema de recompensa do cérebro humano.
A dependência como um todo, incluindo o vício em apostas, álcool, nicotina e substâncias ilegais, geralmente está associada ao núcleo accumbens. A pequena região, localizada próximo à parte frontal do crânio, é conhecida como “área do prazer” ou “via da recompensa”.
Outro ponto importante envolve a dopamina, neurotransmissor relacionado à sensação de bem-estar liberado quando estamos diante de atividades agradáveis. A substância, que atua na modulação da informação, também tem relação com aquilo que é relevante e potencialmente gratificante.
Os elevados níveis de dopamina no cérebro levam ao entusiasmo, à euforia e maior autoconfiança. Com a onda intensa de prazer, há também o incentivo para a repetição, seja de apostas ou do uso de drogas.
O psiquiatra explica que o excesso de estimulação sensorial leva à tolerância. Em resumo, um indivíduo que sofre de dependência precisa recorrer a doses cada vez mais altas do incentivo para obter a descarga de prazer inicial.
O fato da recompensa ser intermitente — isto é, não se ganha sempre — torna o enredo ainda mais excitante para o cérebro.
Nesse cenário, as consequências tendem a ser extremamente nocivas, como a ocorrência de overdose no caso de compostos ilícitos e o rombo financeiro diante do jogo desenfreado.
“Essa é a vida do adicto: dar uma importância enorme a alguma coisa que já não é mais tão gostosa. E, eventualmente, se torna francamente sofrida”, diz Tavares. “Jogar, em si, é mais motivador do que ganhar. O que incentiva é a possibilidade de vencer”, acrescenta.
O professor da USP sugere que o fenômeno pode ser explicado a partir da perspectiva evolutiva do ser humano. Em condições naturais, as chances maiores de sobrevivência estariam associadas a sair da zona de conforto e arriscar-se em busca de alimento, abrigo, etc.
O problema é que, na vida real, isso prejudica a tomada de decisão. “Esse sistema de gratificação hipersensibilizado pela frequência das apostas faz com que o indivíduo tenha um imediatismo, que significa o seguinte: ele topa ganhar menos se for para ganhar agora”, explica o psiquiatra.

Os efeitos no comportamento e no pensamento
Em parte, a perda do controle no jogo está vinculada às dificuldades para projetar as consequências das ações ao longo do tempo, como o risco de falência, a perda de relacionamentos afetivos e prejuízos para a família, por exemplo.
“O indivíduo começa a ter o que chamamos de ‘wishful thinking’, algo como o pensamento cheio de desejo, um arrazoado influenciado por aquilo que se quer que aconteça. Basicamente, o jogador problemático nega a existência do acaso”, pontua Tavares.
Imagine a seguinte cena: ao jogar um dado dez vezes, o resultado foi um número par nas oito rodadas e ímpar em apenas duas. Qual é a chance de aparecer par na próxima vez? De 50%.
“O jogador problemático fica tentando buscar padrões para melhorar sua capacidade de previsão. Ele tem um plano, por exemplo, toda vez que ganha dá uma quebrada de munheca, uma assoprada nos dados, faz alguma coisa e consegue o resultado, ou seja, tem uma ilusão de controle”, resume o especialista.
A ludopatia
O vício em apostas tem nome: ludopatia. Em geral, o tratamento envolve a psicoterapia e o acompanhamento psiquiátrico que pode incluir o uso de medicações, além do tratamento de comorbidades comuns, como depressão e ansiedade.
Em caso de problemas com apostas, consulte o portal dos Jogadores Anônimos, que disponibiliza uma linha de ajuda nacional (clique para acessar).
Apostas ao longo da História
Estima-se que as primeiras apostas esportivas datem de cerca de 10 mil anos atrás.
Espécies de disputas envolvendo a sorte são mencionadas até mesmo na Bíblia, com notoriedade para a partilha entre soldados das roupas de Jesus Cristo após a crucificação e morte. Na mitologia grega, céus, mares e o submundo foram divididos entre os deuses Hades, Poseidon e Zeus por meio de um jogo de azar.
Com versão apenas em inglês, o livro Historical Perspectives on Sports Economics (Edward Elgar Pub – clique para comprar*), editado pelos estudiosos John K. Wilson e Richard Pomfret, descreve aspectos históricos da relação por vezes conturbada entre os esportes e a jogatina.
Relatos pontuam que o jogo de azar também estava presente nas Olimpíadas originais e em outros eventos na Grécia Antiga, assim como em corridas e lutas na Roma Antiga. Da mesma forma, os problemas associados à prática também são observados ao longo do tempo.
Na obra citada, Wilson e Pomfret destacam que o jogo desenfreado em Roma fez com que César Augusto limitasse a atividade a apenas um festival de uma semana, chamado “Saturnália”. Enquanto o imperador Cômodo transformou o palácio real em um cassino, levando a prejuízos aos cofres, contribuindo para o declínio gradual do Império Romano.
Com o avanço da tecnologia, os jogos migraram das casas de aposta e alcançaram a palma da mão. Com apenas um celular com acesso à internet, é possível dar lances valendo dinheiro nos mais diversos sites e aplicativos.
Com design amigável e lúdico, os joguinhos se disfarçam de inofensivos, enquanto propagandas cada vez mais atraentes convidam o público para uma “brincadeira” séria que pode, no final das contas, custar economias de famílias inteiras e arruinar vidas ao longo do caminho.
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