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Saúde mental: a evolução dos tratamentos psiquiátricos no Brasil

Muita coisa mudou na psiquiatria nas últimas décadas. Contamos os progressos e as perspectivas em terra brasileira

Por André Bernardo
Atualizado em 7 nov 2019, 11h02 - Publicado em 20 nov 2018, 10h35
história da psiquiatria no brasil
Dos manicômios aos tratamentos, muita coisa mudou na psiquiatria (Ilustração: Jolygon/iStock)
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Rio de Janeiro, 1944. Quando soube que um dos internos do Hospital Pedro II estava encarcerado havia mais de dois dias numa cela, a médica Nise da Silveira (1905-1999) correu para libertá-lo. “Trata-se de um psicótico com alto grau de agressividade”, protestou o profissional que o mandara trancafiar. “Ele só precisa ser tratado como um ser humano!”, argumentou Nise. A cena faz parte do filme Nise – O Coração da Loucura (2015) e sintetiza o papel da mulher que mudou o tratamento psiquiátrico no Brasil.

Mais do que se rebelar contra os maus-tratos a pacientes, Nise transformou o setor de terapia ocupacional da unidade num ateliê de pintura e modelagem, interagiu com esquizofrênicos por meio das artes plásticas e encorajou os psicóticos a conviver com cães e gatos, aos quais chamava de “coterapeutas”. “Nise da Silveira sempre atuou da forma mais íntegra, humana e social possível, sendo um exemplo para nós, psiquiatras”, diz o médico Antônio Geraldo da Silva, diretor da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).

Quando chegou ao antigo Centro Psiquiátrico Nacional, Nise encontrou um ambiente, para dizer o mínimo, desumano. Seus pavilhões, superlotados, lembravam os de uma penitenciária. Na maioria das vezes, os portadores de doenças mentais viviam confinados em hospitais psiquiátricos como o de Juqueri, em São Paulo, isolados de tudo e de todos, até a morte. Muitos eram submetidos à camisa de força e a técnicas violentas como a lobotomia e o eletrochoque.

Estima-se que, só no Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais, mais de 60 mil internos, entre dependentes químicos, ativistas políticos e até mães solteiras, tenham morrido, vítimas de negligência, isolamento social e tortura. “Os manicômios não foram construídos com o objetivo de tratar, mas, sim, de excluir aqueles que não se encaixavam no que se pensava ser um cidadão normal”, analisa o psiquiatra Marco Aurélio Soares Jorge, doutor em saúde pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Esses “depósitos de gente”, como os próprios médicos se referiam a tais instituições, foram quase todos desativados no Brasil. Ainda existem 161 espalhados pelo país. O Pedro II, onde Nise trabalhou de 1946 a 1974, quando foi aposentada compulsoriamente, aos 69 anos, cedeu espaço ao Museu de Imagens do Inconsciente.

Mas não foram só as instituições que mudaram. Os critérios para diagnosticar um transtorno também sofreram uma evolução gradual. Um exemplo clássico é o homossexualismo. Só em 1990 ele foi excluído da lista de distúrbios mentais.

A mudança na definição dos transtornos psiquiátricos

“Em linhas gerais, podemos dizer que tudo aquilo que foge dos padrões mais aceitos dentro de uma sociedade é considerado loucura”, explica a médica Maria Tavares Cavalcanti, diretora do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Não há uma separação nítida entre o que é normal e o que é patológico. O que há são normas que mudam de acordo com a cultura.”

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Quanto ao personagem do início deste texto, aquele descrito como “um psicótico com alto grau de agressividade”, seu nome é Lúcio Noeman (1913-1992) e algumas de suas obras estão expostas entre as mais de 360 mil que fazem parte do museu fundado por Nise em 1952.

“A loucura era até agora uma ilha perdida no oceano da razão”, escreveu Machado de Assis (1839-1908) em O Alienista. “Começo a suspeitar que é um continente.” O que diria o Bruxo do Cosme Velho se soubesse que, 136 anos depois da publicação de seu conto, os transtornos psiquiátricos passaram a atingir 23 milhões de brasileiros, quase o dobro do número de habitantes da cidade de São Paulo?

Sem diagnóstico precoce e terapia adequada, portadores de doenças mentais estão sujeitos a mazelas que vão de incapacidade social a mortalidade precoce. “Todos os transtornos, sem o devido tratamento, oferecem riscos: 96% dos casos de suicídio estão relacionados a distúrbios não tratados ou tratados incorretamente”, aponta Silva. “Quanto mais tempo o indivíduo demora a receber atendimento, mais complexo se torna o quadro e mais difícil a recuperação.”

Desde 2001, quando foi aprovada a Lei Antimanicomial no Brasil, hospitais psiquiátricos estão sendo substituídos por Centros de Atenção Psicossocial (CAPs). Em vez de serem internados por tempo indeterminado e de permanecerem isolados, os pacientes recebem atendimento humanizado em regime diário e com equipes multidisciplinares formadas por médicos, enfermeiros e psicólogos, entre outros profissionais. Os casos mais graves são encaminhados para hospitais com atendimento psiquiátrico.

Pioneiro, o CAP Itapeva, no interior paulista, surgiu em 1986 e, hoje, atende cerca de 500 pessoas, entre egressos de hospitais psiquiátricos, pacientes indicados por médicos e outros que procuram a instituição por conta própria. Lá, têm direito a três refeições, corte de cabelo, atividades recreativas e oficinas de geração de renda, como costura, marcenaria e informática.

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Quando o paciente não tem onde morar, pode ficar nas residências terapêuticas. Ao todo, são 489 em todo o país. “Quando comparados aos hospitais psiquiátricos, os CAPs custam menos e funcionam mais”, avalia o psiquiatra Rodrigo Leite, coordenador dos Ambulatórios do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. “Se a procura é baixa, atribuo ao fato de que muitas pessoas custam a aceitar que precisam de ajuda, temem sofrer preconceito ou desconhecem a existência do serviço.”

Felizmente, o número de CAPs saltou de 516 em 2004 para 2 462 em 2017. Enquanto isso, o de leitos de hospitais psiquiátricos caiu de 51 393 em 2002 para 25 009 em 2015. Mesmo assim, ponderam os especialistas, isso não basta. Outras medidas são necessárias, como uma política de prevenção ao uso de álcool e drogas e a ampliação do número de residências terapêuticas. “Todas as ações devem ser pensadas com um único objetivo: oferecer o que há de melhor para o paciente psiquiátrico”, enfatiza o diretor da ABP.

Que as lições de Nise da Silveira se juntem aos avanços terapêuticos para continuar mudando essa história.

Marcos da psiquiatria no país

1831: José Martins da Cruz Jobim (1802-1878), pioneiro na psiquiatria, publica o primeiro escrito sobre doenças mentais no Brasil.

1852: É inaugurado o Hospício de Pedro II, o “Palácio dos Loucos”, na Praia Vermelha, Rio de Janeiro. É o primeiro do gênero por aqui.

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1881: Um decreto do governo cria a cadeira de Doenças Nervosas e Mentais nas Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro.

1883: O médico Teixeira Brandão (1854-1921) vira professor de psiquiatria no Rio e é considerado o primeiro alienista brasileiro.

1907: Criada, na capital fluminense, a Sociedade Brasileira de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal.

1921: Inaugurado o famigerado Manicômio Judiciário, órgão que se encarrega dos doentes mentais que cometem delitos.

1987: Realizada a primeira Conferência Nacional de Saúde Mental, em que se lança o lema “Por uma Sociedade Sem Manicômios”.

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1992: O Ministério da Saúde regulamenta os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs). Internação? Só em casos extremos e sob ordem médica.

2001: Sancionada a lei que trata dos direitos dos pacientes com transtorno mental e defende a gradativa desativação dos manicômios.

2008: Criação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família, que recomendam a inclusão de profissionais de saúde mental na Atenção Básica.

2015: A história da psiquiatra Nise da Silveira ganha as telas do cinema, popularizando seu trabalho de humanização com os pacientes.

O que mudou nos tratamento psiquiátricos

Remédios

Antes: Os primeiros medicamentos começaram a ser desenvolvidos só na década de 1950. Tinham muitos efeitos colaterais.

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Depois: Nas últimas quatro décadas houve uma avalanche de fármacos para depressão, bipolaridade, esquizofrenia…

Eletroconvulsoterapia

Antes: O antigo eletrochoque era empregado de maneira indiscriminada (e sem anestesia) em pacientes considerados agressivos.

Depois: A técnica atual, feita com todo cuidado, é usada só em casos mais graves de depressão e restrita ao ambiente de pesquisa.

Cirurgia

Antes: A lobotomia era uma técnica altamente invasiva que cortava as conexões entre os lobos frontais e demais regiões do cérebro.

Depois: Abolida em 1955, foi substituída por remédios e psicoterapia. Devido aos riscos, não é mais reconhecida pelos médicos.

Psicoterapia

Antes: O tratamento parecia mais uma lição de moral. Os pacientes tinham de seguir rígidas normas, sob pena de punição.

Depois: É uma ferramenta de autoconhecimento. Há várias modalidades, sempre indicadas para o controle dos transtornos.

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