Durante a maior parte do século 20, brasileiros com transtornos mentais — ou que sequer tinham esse diagnóstico, mas não se enquadravam nas normas da sociedade — eram relegados aos manicômios. Nesses lugares, onde viviam indefinidamente, procedimentos como a lobotomia, uso de camisa de força, excesso de medicamentos e abusos físicos eram parte da rotina.
Confinados e com direitos violados, os pacientes corriam risco de vida e perdiam seus vínculos familiares e sociais. Foi o esforço coletivo para mudar essa história que deu origem ao Dia da Luta Antimanicomial, comemorado em 18 de maio.
É uma memória registrada em detalhes no livro Holocausto Brasileiro (Intrínseca), da jornalista Daniela Arbex (clique para comprar*). E que deveria ficar no passado, mas permanece viva como uma infecção latente, que vira e mexe ameaça voltar.
A despeito da Lei 10.216/2001, que estabelece a Política Nacional de Saúde Mental, extinguindo a internação compulsória e privilegiando programas multidisciplinares, que visam incluir o indivíduo na sociedade, o momento é de preocupação no país, alertam especialistas.
“Nos últimos anos, o poder Executivo tentou revogar portarias, mudou legislações e deixou de repassar recursos. O único serviço que ajustou seu valor foi a diária do hospital psiquiátrico, e o único investimento polpudo foi feito nas comunidades terapêuticas”, aponta o psiquiatra Leon Garcia, do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (IPq-USP).
As comunidades terapêuticas são entidades particulares, em geral ligadas a igrejas, com modelo assistencial para dependentes químicos baseado no isolamento e em ensinamentos religiosos.
Por não serem consideradas instituições de saúde, são pouco fiscalizadas. Também não há estudos científicos que comprovem sua eficácia.
A reforma psiquiátrica promovida no Brasil principalmente a partir de 2001 foi considerada um exemplo no mundo, por oferecer suporte com intervenções que iam muito além da internação pura e simples. Por outro lado, há quem defenda que a atual política de saúde mental deixa pessoas desassistidas. O que até faz sentido, mas poderia servir de argumento para fortalecer iniciativas comprovadamente eficazes.
“Nosso sistema é deficitário. Os melhores modelos, como os centros de atenção psicossocial (CAPS), não recebem investimento e capacitação adequados”, aponta o psiquiatra Dartiu Xavier, coordenador do Serviço de Álcool e Drogas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Entender como chegamos até aqui é fundamental para evitar que as cenas tristes dos manicômios se repitam.
Os marcos e conquistas da luta antimanicomial no país
A organização em prol do fim dos manicômios começou entre as décadas de 1970 e 1980. É a soma de dois movimentos: o que culmina com a construção do Sistema Único de Saúde (SUS), que pregava a saúde gratuita a todos, e o fim da ditadura militar, que trazia de volta a democracia ao país.
“Ambos têm a ver com a reforma psiquiátrica, porque garantir liberdade e direitos iguais significava ir contra o regime de confinamento e violência vigentes até então”, comenta Garcia.
O dia 18 de maio foi escolhido porque, nessa data, aconteceu em 1987 a primeira Conferência Nacional de Saúde Mental do Brasil.
A partir daí, nos anos 1990, começou a ser construído o projeto de lei 10.216, que só seria aprovado em 2001. O texto substitui o modelo centrado na internação e cria a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), um conjunto de serviços que focam na reinserção do indivíduo e preconiza as internações curtas, sempre como último recurso.
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O principal exemplo dessa rede é o CAPS. São espaços de atendimento que contam com médicos, assistentes sociais, psicólogos e outros profissionais. O advento da legislação, contudo, não extinguiu de vez os manicômios. “Ainda existem pessoas morando em hospitais psiquiátricos”, aponta Garcia.
De acordo com o Ministério da Saúde, o Brasil possui 1, 8 mil leitos em hospitais gerais (que deveriam ser a preferência) e mais de 13 mil em 109 hospitais especializados. Não está claro, contudo, quantas pessoas estão internadas de maneira permanente.
“A internação deve ser destinada a indivíduos que estão muito mal ou apresentam alto risco de suicídio, que representam menos de 5% do total de indivíduos com transtornos psiquiátricos”, destaca Xavier.
As mudanças recentes
De acordo com Xavier e Garcia, nos últimos seis anos se intensificou o desmonte dessas políticas públicas. Como marco, em 2015, o médico Valencius Wurch Duarte Filho foi nomeado coordenador de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde.
Wurch foi diretor-técnico da Casa de Saúde Dr. Eiras de Paracambi, que chegou a ser o maior manicômio da América Latina. Ele foi fechado após diversas denúncias de violações de direitos.
Wurch foi exonerado em poucos meses. Hoje, quem ocupa o cargo é Rafael Bernardon Ribeiro, psiquiatra abertamente defensor dos hospitais psiquiátricos e alvo de críticas por entidades de saúde coletiva.
O ritmo de expansão dos CAPs dá ideia da mudança de tom. Até 2019, o número de unidades vinha crescendo ano a ano. Entre 2020 e 2021, houve pela primeira vez uma queda, de 2 749 para 2 742 unidades.
Uma revisão conduzida por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) faz um apanhado dessa mudança de rumo. O estudo chama a atenção para a ascensão problemática das comunidades terapêuticas.
Outro levantamento, lançado recentemente pela Conectas Direitos Humanos e pelo Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), corrobora a tendência. O documento aponta que, entre 2017 e 2020, mais de R$ 560 milhões foram investidos em instituições do tipo por governos estaduais, municipais e pela União.
Os novos manicômios
Uma das principais pautas da luta antimanicomial hoje é o fato de as comunidades terapêuticas terem se tornado o centro da política antidrogas do governo, recebendo recursos públicos para financiar vagas de tratamento gratuito.
O conceito surgiu nos anos 1950, na Inglaterra, baseado na ideia de readaptação social. “Mas, aqui, trata-se de um modelo mais focado na religião. As pessoas são tratadas por ex-dependentes convertidos, que muitas vezes colocam a adesão à religião como meio de sair do problema da droga”, aponta Xavier.
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Além disso, há diversas denúncias e casos comprovados de abusos físicos e mentais. Uma inspeção conduzida em 2017 pelo Ministério Público Federal em 28 comunidades constatou infrações graves, como internação involuntária, castigos físicos, violação à liberdade religiosa, falta de infraestrutura básica e de profissionais treinados.
À época, o então presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Rogério Giannini, chegou a declarar que a análise revelou “uma das maiores situações de violação e direitos humanos da atualidade, feita de forma sistemática”.
Segundo dados do Ministério da Cidadania levantados pela Agência Pública, a quantidade de vagas financiadas pela União nesses locais cresceu de 2,9 mil, em 2018, para aproximadamente 11 mil, em 2019. Trata-se de um aumento de mais de 350%.
“E tem o agravante de elas sequer serem fiscalizadas pelo Ministério da Saúde, por estarem no escopo de outra pasta. É muito dinheiro investido, com pouco controle sobre ele. O que acontece lá dentro? Que resultado se obtém?”, questiona Garcia.
De fato, não há dados comprovando a eficácia do sistema. “Mais de 90% dos internados têm uma recaída depois de três meses da alta”, diz Xavier. No CAPS, esse número fica em 70%. “Não é o ideal, mas não faz sentido trocar por algo mais caro e menos eficaz”, destaca o profissional.
Pandemia pressiona mais a rede
Com a crise econômica agravada pela Covid-19, é provável que mais e mais brasileiros precisem de ajuda. “Muitas vezes, no atendimento, descobrimos que o sofrimento vem de uma demissão, do desemprego, uma doença na família… Esses fatores socioeconômicos são determinantes para a saúde mental”, diz Xavier.
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Nesse sentido, a saúde mental dos habitantes de um país é um reflexo das condições de vida oferecidas nele. E as nossas estão cada vez mais precárias.
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