Violência contra a mulher: sofrimento silencioso
Episódios recentes colocam um facho de luz na violência obstétrica. Entenda o que denuncia esse e outros tipos de abuso contra a mulher
Um show de horrores.” É assim que a influenciadora digital Shantal Verdelho, de 33 anos, descreve, em entrevista à TV, o vídeo do parto de sua filha, realizado em setembro de 2021 em um hospital particular paulistano. Ela acusa o médico Renato Kalil de violência obstétrica.
Durante o trabalho de parto, que durou ao redor de 48 horas, o profissional proferiu ofensas como “Faz força, porra!” e submeteu a paciente à manobra de Kristeller — técnica cada vez mais contraindicada que consiste em pressionar a barriga da parturiente para expulsar o bebê.
A certa altura, insistiu para Shantal fazer uma episiotomia (corte no períneo a fim de facilitar a passagem da criança), mas ela se recusou. “Xingamentos e humilhações são apenas a ponta do iceberg”, afirma a ginecologista e obstetra Melania Amorim, professora da Universidade Federal de Campina Grande, na Paraíba.
“É preciso dar nome ao problema para poder enfrentá-lo. Parte da categoria não concorda com o termo, mas somos nós que temos o direito de definir como vamos chamar os maus-tratos de que somos vítimas. É e sempre foi violência obstétrica”, diz.
Melania esclarece que a expressão se refere a qualquer ação praticada por profissionais de saúde sem consentimento e entendimento da gestante ou parturiente.
No Brasil, uma em cada quatro mulheres é vítima de abusos em alguma fase da gravidez, do pré-natal ao pós-parto (e até em casos de abortamento), segundo estudo da Fundação Perseu Abramo de 2010 contemplando a assistência pública e privada.
A violência obstétrica inclui a adoção de procedimentos considerados desnecessários e sem evidência científica, como a episiotomia, ou sem indicação médica para a paciente, caso da cesárea.
Um levantamento da OMS aponta que o Brasil é o segundo país em número de cesarianas. Em 2018, 55,7% do total de nascimentos ocorreu pela via cirúrgica — só ficamos atrás da República Dominicana. A recomendação da própria OMS é que essa taxa não exceda os 15% do total de partos. Enquanto no setor público a proporção é de 46%, no privado chega a 88%.
De acordo com a biomédica Tatiana Henriques, doutora em saúde pública pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), o perfil mais exposto à violência obstétrica engloba mulheres negras, de baixa escolaridade e mães de primeira viagem.
“Ter acesso a informação de qualidade e estar com acompanhante, direito previsto em lei, são fatores de proteção”, sinaliza. Perceba: a cesariana em si não é o problema; o problema é a realização sem critério, e tantas vezes sem conhecimento ou anuência da gestante.
Para evitar práticas abusivas assim, a advogada Ruth Rodrigues, presidente do coletivo Nascer Direito, orienta as mulheres a elaborarem um plano de parto.
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“Costumo dizer que a gestação é uma faculdade e o plano de parto é o trabalho de conclusão do curso, o TCC. Se a mulher não quer ser chamada de ‘mãezinha’ ou sofrer episiotomia, por exemplo, deve deixar isso claro e dizer que não aceita”, explica.
“Toda decisão deve ser tomada em conjunto com a equipe, e não é isso o que nós vemos. A única ocasião em que o médico pode e deve tomar uma decisão sem consultar a paciente é em caso de emergência”, completa.
A violência obstétrica ocorre tanto em hospitais públicos quanto particulares. A pesquisa Nascer no Brasil, da Fiocruz, concluiu que 45% das pacientes do SUS e 30% das atendidas na rede privada sofreram alguma injúria do gênero num universo de 23,8 mil mulheres que deram à luz em 191 municípios.
“Parto não é um ato médico. Nem aquele desespero retratado nos filmes, como se a mulher fosse uma bomba-relógio. É algo natural e fisiológico. Queremos resgatar a autonomia da mulher e evitar que um momento de alegria vire sofrimento”, defende Ruth.
A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) diz, em nota, promover cursos e protocolos para aprimorar os profissionais da área, mas não endossa o termo “violência obstétrica”, que instituiria a visão do médico como um “ser violento”.
“Caso a gestante ou parturiente perceba que está recebendo um tratamento inadequado ou que está sendo desrespeitada, deve registrar o ocorrido junto ao Conselho Regional de Medicina do estado onde foi atendida”, orienta a entidade. Investigado pelo Cremesp e a polícia, Renato Kalil nega as acusações.
- 25% das mulheres brasileiras já sofreram algum tipo de violência obstétrica (do pré-natal ao pós-parto)
- 55% dos partos no país são cesáreas, boa parte delas sem indicação formal. A OMS orienta no máximo 15% de cesarianas
Em 1993, quando procurou a clínica do maior especialista em reprodução assistida do Brasil para engravidar, a empresária Vanuzia Lopes Gonçalves não podia imaginar que, em vez de realizar um sonho, viveria um pesadelo. Na terceira e última tentativa de inseminação, tomou o remédio dissolvido em um copo plástico e adormeceu.
Quando o efeito do sedativo passou, deparou com uma cena grotesca: estava sendo molestada pelo médico. Médico ou monstro? Da clínica correu para a delegacia. Vanuzia foi a primeira das dezenas de vítimas do ex-médico Roger Abdelmassih a denunciá-lo por estupro.
“Não existe médico abusador. O que existe é abusador que vira médico e ataca as pacientes”, afirma a empresária, hoje com 61 anos. Em 2011, ela fundou o grupo Vítimas Unidas e, em 2015, lançou o livro “Bem-Vindo ao Inferno”, da Matrix Editora (clique aqui para comprar). “Toda vez que conto essa história, revivo aquela violência. Não existe cura para o estupro”, desabafa.
Encarcerado em 2014, Roger Abdelmassih foi condenado a 278 anos de prisão pelos crimes envolvendo 56 pacientes. Ofensas e abusos não são, evidentemente, um mal circunscrito a consultórios médicos. Mas não dá para menosprezar o que acontece ali.
Uma pesquisa online feita pelo portal Catraca Livre com 700 mulheres constatou que 53% delas já sofreram assédio moral ou sexual em consultas com ginecologistas.
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Há relatos de piadas machistas, perguntas descabidas e insinuações sobre a vida sexual e até pedidos para que a paciente fique inteiramente nua sem necessidade clara.
“Tanto a violência obstétrica quanto a ginecológica desconsideram a importância da autonomia das mulheres como seres capazes de realizar escolhas que impactam seu corpo e sua vida”, analisa a médica de família Nathália Cardoso, do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde.
Só que, das 371 brasileiras que relataram casos de assédio naquele levantamento, apenas 14 chegaram a fazer denúncia. Umas por não saberem identificar os sinais de abuso — o argumento da “linha tênue” é corriqueiramente usado. Algumas por medo ou vergonha de dividir o horror com terceiros.
E outras pela dificuldade de poder comprovar algo cometido em sala fechada e sem testemunhas. “Esse tipo de violência é o legado de uma medicina misógina, patriarcal e controladora que não consegue ver a mulher como sujeito, e sim como objeto do seu processo de cuidado”, interpreta a médica de família Luiza Cadioli, do mesmo coletivo.
A atriz paranaense Nina Marqueti tinha 16 anos quando sua mãe lhe pediu para passar no consultório do médico Alessio Fiore Sandri Júnior, em Umuarama (PR), e deixar o resultado de alguns exames.
Em vez de olhar a papelada, o médico preferiu examinar a garota de cara. Durante a consulta, abaixou a calcinha e ficou tocando suas partes íntimas. “Onde dói?”, repetia, insistindo no “exame”.
De tanto ouvir a pergunta, Nina resolveu transformá-la no nome de uma campanha que, desde 2019, encoraja outras mulheres a compartilhar casos de violência sexual por profissionais da saúde e oferece orientação jurídica e apoio psicológico às vítimas.
- 19% das brasileiras contaram com um acompanhante na hora de dar à luz, direito garantido por lei desde 2015
- 36% das gestantes foram submetidas à manobra de Kristeller, técnica de pressão sobre a barriga não recomendada pela OMS
“Depois de muitos anos em silêncio, decidi compartilhar minha experiência através da peça solo A Flor da Matriarca”, relata a atriz, de 31 anos, no vídeo da campanha #OndeDói. “E foi compartilhando essa minha experiência que encontrei apoio e forças para denunciar na Justiça o médico que me violentou. Juntas nós somos mais fortes”, declara Nina.
Em 2021, Alessio Fiore Sandri Júnior foi condenado a 14 anos de prisão por estupro de vulnerável — ainda cabe recurso.
A violência obstétrica ou ginecológica não é nem de longe a única mazela a lesar a saúde física e mental das mulheres. Na madrugada de 29 de maio de 1983, a farmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, à época com 38 anos, acordou com um estrondo em seu quarto. Tentou levantar da cama, mas não conseguiu.
Tinha acabado de levar um tiro de espingarda nas costas. À polícia, seu marido, o professor universitário Marco Antonio Viveros, contou que a família tinha sido assaltada. Paraplégica, Maria da Penha voltou para casa depois de quatro meses internada. Mantida em cárcere privado por 15 dias, sofreu nova tentativa de homicídio.
O homem queria eletrocutá-la no banho. Incansável, Maria da Penha levou 19 anos e seis meses para colocar seu agressor atrás das grades, em 2002. Quatro anos depois da prisão, emprestou seu nome à lei que pune os crimes de violência doméstica no Brasil.
“Ter meu nome batizando uma lei que pode salvar vidas e proporcionar recomeços é uma grande responsabilidade. Não me permito parar. Tenho consciência da minha missão”, afirma a ativista de 77 anos.
A julgar pelos números de uma pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2021, a missão é das mais árduas. O relatório, baseado em dados de 2 mil participantes de 130 municípios, revela que uma em cada quatro mulheres acima de 16 anos afirma ter sofrido violência durante a pandemia.
Em números absolutos, dá em torno de 17 milhões. Desse total, 48% foram agredidas em casa e 19% na rua — no espaço público, houve desde ataques verbais (cantadas e comentários desrespeitosos) até físicos. Para ativistas e especialistas, esse é um reflexo da chamada cultura do estupro.
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“É aquela que, desde cedo, transforma meninas em objetos sexuais, permite que elas sejam importunadas sexualmente nas ruas por homens e diz que mulheres que não se dão ao respeito merecem ser estupradas”, expõe Amanda Kamanchek, gerente da ONG Think Olga.
Entre as formas de violência dentro de casa, a mais citadas foram ofensa verbal, agressão física e tentativa de estupro. Entre os agressores, sete em cada dez são conhecidos da vítima, sendo 25% deles maridos, companheiros ou namorados.
“A violência doméstica vai muito além da agressão física, e independe de idade, religião, cultura, orientação sexual ou estado civil”, sentencia a advogada Bianca Alves, coautora do livro Violência Doméstica: Histórias de Opressão às Mulheres, da Dita Livros (clique aqui para comprar).
É um assunto de saúde pública, e, não por menos, o periódico científico The Lancet acaba de publicar uma revisão de dados com um alerta sobre o problema em escala global.
No ranking macabro do feminicídio, o Brasil ocupa o vergonhoso quinto lugar entre os países que mais matam mulheres, atrás de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia. Só em 2020, o país registrou 1,3 mil casos, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública — Mato Grosso é o estado com a maior taxa; Rio Grande do Norte tem a menor.
- 53% das brasileiras ouvidas numa pesquisa relataram algum tipo de ofensa ou assédio em consulta ginecológica
- 25% das mulheres com mais de 16 anos relataram ter sofrido violência em casa ou na rua durante a pandemia
No país do “Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”, três mulheres são vítimas de feminicídio por dia, uma a cada sete horas. Em 80% dos casos, os assassinos são o atual ou o ex-companheiro, que não se conformam com o fim do relacionamento.
“A origem da violência doméstica está ligada à desigualdade de gênero. Não basta que a vítima queira sair da situação de abuso. O Estado precisa garantir sua proteção, monitorar situações de risco e oferecer serviços humanizados”, argumenta a jornalista Marília Moreira, coordenadora do PenhaS, projeto de enfrentamento à violência contra a mulher do Instituto AzMina.
Parafraseando a filósofa americana Angela Davis: não basta não ser machista, é preciso ser antimachista. Isso, acredite, pode salvar vidas.
Como denunciar a violência obstétrica?
Há dois caminhos: um é o do conselho regional do estado em que aconteceu o delito (CRM no caso de médicos e Coren no de enfermeiros ou técnicos de enfermagem). O órgão vai abrir sindicância para apurar e serão ouvidos acusado e testemunhas. Se comprovada a denúncia, o profissional é advertido, suspenso ou até cassado.
A vítima também pode levar o caso à ouvidoria do hospital ou à secretaria de saúde. Outro caminho é o da delegacia. A mulher ainda pode contratar advogado ou recorrer à Defensoria Pública e ligar para a Central de Atendimento à Mulher (180).
Violência contra LGBTQIA+
Se a quinta colocação no ranking do feminicídio é vergonhosa, o que dizer, então, do primeiro lugar entre os países que mais matam pessoas da comunidade de gays, lésbicas, travestis e transexuais? A cada 29 horas, uma vítima é assassinada ou levada ao suicídio no país.
Segundo o relatório Observatório de Mortes Violentas de LGBTI+ no Brasil, 153 das vítimas eram homossexuais masculinos, 110 travestis e transexuais e 12 lésbicas. Matam-se mais homossexuais e transexuais por aqui do que nos 13 países do Oriente e da África onde existe pena de morte para eles.