Por que não existe remédio para dengue? “Não é um problema científico”
Diretor de entidade dedicada às doenças negligenciadas discute avanços e desafios no combate à infecção que está se espalhando mundo afora
Com as mudanças climáticas, doenças antes restritas aos países subdesenvolvidos estão chegando ao “primeiro mundo”. O principal exemplo é a dengue, que agora preocupa a Europa e os Estados Unidos.
Por um lado, a situação preocupa. Por outro, a expansão pode acelerar a busca por remédios e vacinas mais eficientes contra enfermidades conhecidas há décadas, mas que não recebiam a atenção devida da comunidade internacional.
Essa é a visão do médico Luis Pizarro, diretor executivo da Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, na sigla em inglês), projeto criado pela organização não-governamental Médicos sem Fronteiras.
Em entrevista exclusiva à VEJA SAÚDE, o franco-chileno compartilha seus insights depois de uma agenda intensa de compromissos com autoridades brasileiras. Confira!
VEJA SAÚDE: Qual foi o foco da sua agenda no Brasil?
Luis Pizarro: Nosso parceiro principal no país é a Fiocruz, então primeiro tivemos uma reunião sobre nossa aliança estratégica. Conversamos sobre como avançar nos estudos sobre enfermidades importantes no Brasil, como dengue, Chagas, leishmaniose e hepatite C.
Além do progresso científico, discutimos a esfera política, sobre como avançar pelo continente e promover uma cooperação global para o desenvolvimento de vacinas e medicamentos.
Também participamos de uma cúpula para preparação de pandemias e fomos à Brasília conversar com os ministérios da Saúde e o de Ciência, Inovação e Tecnologia, pois o governo tem uma agenda importante nessas pastas, que nós apoiamos. O Brasil é uma referência e pode ser um ator chave para uma saúde global mais equitativa.
Muito se fala sobre a importância de desenvolver novos medicamentos e vacinas sem depender das grandes indústrias farmacêuticas. Mas como conseguir isso? Em que pé estamos?
Para nós, é muito importante que os governos invistam dinheiro público para pesquisa e desenvolvimento, e que tenham regras que melhorem o acesso.
Isso não existiu com o coronavírus. Pelo contrário, a pandemia de Covid mostrou as terríveis desigualdades no acesso às vacinas, tratamentos e diagnóstico. Os países ricos investiram dinheiro em soluções e as indústrias fizeram o que queriam.
Mas não podemos ser maniqueístas e achar que há dois lados, países ricos e pobres. Primeiro, as pandemias e epidemias não têm fronteira. Segundo, nem todos os países e nem todas as indústrias são iguais: alguns colaboram mais, outros menos.
O Brasil é um exemplo mundial, porque tem parcerias público-privadas interessantes e empresas como Farmanguinhos e Butantan, que conseguem desenvolver e entregar remédios e medicamentos à população. Apoiamos que esse modelo seja replicado em outras regiões da América Latina e na África.
Na DNDi temos a possibilidade de trabalhar com todas essas pontas. A ciência tem que ser um bem comum e compartilhado para enfrentar pandemias. Sou otimista, e penso que vamos avançando degrau por degrau.
Como as mudanças climáticas devem impactar a transmissão de doenças infecciosas nos próximos anos?
Eu vivi no Níger [país da África Ocidental] e em outros países da região por quatro anos. Ali, há temperaturas acima de 50 graus de maneira cada vez mais constante, é impossível cultivar alimentos, ter animais de criação, etc.
Creio que será muito difícil continuar vivendo nesses locais. As emigrações vão aumentar, não só lá, e essa é uma primeira consequência epidemiológica, pois dissemina vírus e bactérias até então de circulação restrita.
Outro ponto é que os mosquitos que transmitem doenças estão se disseminando pelo mundo. No Chile, não pensávamos em dengue, e agora temos o primeiro caso registrado. Ela também chegou na Argentina, no Peru, nos EUA.
Ou seja, há uma modificação do mapa da infecção. O efeito positivo é que todos passam a se sentir mais responsáveis por isso, porque mais gente vai pensar: “Bom, isso pode me afetar também”.
A dengue é considerada uma doença negligenciada?
Sim, ela está na lista da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre o assunto. Ela é negligenciada do ponto de vista científico. Remédios contra a Covid foram desenvolvidos rapidamente, enquanto a dengue é conhecida há mais de 40 anos e não temos tratamento para ela.
Nosso papel é mudar esse cenário, mas também trabalhar para que a população em países mais pobres tenha acesso aos avanços terapêuticos. É sempre bom lembrar que não são apenas doenças negligenciadas, são pessoas negligenciadas.
Em que etapa estamos no processo de desenvolvimento de um medicamento contra a dengue?
Nos interessa encontrar um tratamento para os casos mais severos, que precisam de hospitalização. Agora estamos em uma etapa intermediária. Laboratórios já propuseram moléculas que deram resultados animadores, e boa parte deles já está na fase 2 das pesquisas em humanos [estudos com um número pequeno de voluntários, para verificar segurança e começar a medir eficácia].
Há medicamentos em potencial sendo desenvolvidos em vários países, e agora vem a parte difícil, que é confirmar esse efeito em testes de fase 3, com mais pessoas, que exigem mais investimento.
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Precisamos de uma colaboração global para tornar o combate a dengue uma prioridade. No G20 – que reúne as 20 nações mais ricas do mundo – há uma proposta para fazer uma aliança internacional nesse sentido. Todos os países do grupo deveriam apoiar a iniciativa em larga escala, porque só a vacina não é o suficiente para conter a epidemia da doença.
Quando devemos ter um destes remédios disponível para a população?
Na DNDi, trabalharemos para ter os estudos de fase 3 já em 2025. E, em dois ou três anos, concluir esses estudos. Precisamos fazer tudo o mais rápido possível, pois as moléculas já existem e muitos países estão cientes desse problema.
Não podemos esperar mais do que três ou quatro anos para ter um medicamento contra a dengue.
Quais são os principais desafios nesse processo?
Sejamos muito honestos. A indústria farmacêutica hoje, é muito eficaz quando se trata de desenvolver medicamentos inovadores contra doenças muito complexas, como o câncer ou doenças autoimunes.
Na pandemia de Covid, a tecnologia de RNA se desenvolveu em muito pouco tempo. Quando existe boa vontade econômica e política, as coisas são feitas. O problema é que doenças infecciosas não interessam tanto a indústria.
Não é um problema técnico nem científico, é de motivação. Então temos que alcançar um bom equilíbrio entre público e privado. Os governos devem investir nesse tipo de investigação, mas a indústria também deve ser parte da solução. Ela tem a responsabilidade social de contribuir com esse esforço coletivo.