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O bruxismo está à solta

Apertar e ranger os dentes tem tudo a ver com estresse. E a incidência do problema deu um salto! Saiba o que ele pode aprontar e como escapar dos seus danos

Por Thais Szegö
18 out 2021, 18h53
ranger dentes dormindo
30% da população apresenta bruxismo, segundo estimativas de antes da pandemia. (Ilustração: Felipe Mayerle/SAÚDE é Vital)
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A tensão dos últimos tempos não poupou ninguém. Nem a boca. Um dos reflexos de toda a reviravolta que enfrentamos por causa da Covid-19 foi o aumento nos casos de bruxismo, uma condição que faz a pessoa pressionar e desgastar inconscientemente os dentes, inclusive ao dormir.

A constatação vem de estudos mundo afora. Um deles reuniu pesquisadores poloneses e israelenses e analisou quase 1 800 cidadãos desses dois países. Os cientistas apuraram e cruzaram os efeitos da ansiedade e da preocupação despertadas pela pandemia com os índices de bruxismo e disfunção temporomandibular (DTM), quadro que provoca alterações e dores na articulação que liga a mandíbula ao crânio. O resultado foi claro: ambos foram intensificados.

Especialistas brasileiros chegaram a conclusões semelhantes examinando os próprios… dentistas. Num trabalho envolvendo a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade de São Paulo (USP) em Bauru, observaram, entre 641 profissionais de odontologia, que ficar confinado teve mais repercussões negativas no estado dos entrevistados do que trabalhar ativamente. De modo geral, a situação levou a uma piora na qualidade do sono e a sintomas de bruxismo em mais da metade do grupo.

Na mesma linha, um levantamento englobando 50 alunos de pós-graduação em odontologia e psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) revela, em seus achados preliminares, que os casos de bruxismo durante o sono mais que triplicaram (pulando de uma incidência de 8 para 28% no período pandêmico) e os do chamado bruxismo de vigília, aquele que ocorre com a pessoa acordada, dobraram (mudança de 6 para 12%).

Os profissionais têm sentido o impacto detectado pelos estudos no seu dia a dia de consultório. “Não há dúvida de que este momento tão complicado que estamos encarando tem ligação com esse tipo de problema. Inclusive, uma análise feita pela Associação Americana de Odontologia indica que queixas de bruxismo tiveram um aumento de mais de 50% por lá, e aqui não é diferente”, diz a dentista Juliana Stuginski Barbosa, pesquisadora da USP de Bauru e membro da Sociedade Brasileira de Disfunção Temporomandibular e Dor Orofacial.

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Sua colega Maria de Lourdes Rodrigues Accorinte, presidente da Câmara de Disfunção Temporomandibular e Dor Orofacial do Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (Crosp), sentiu o mesmo clima de tensão e bruxismo no ar. “Em minha clínica diária, acolhi um número maior de pacientes com sintomas, muitos deles preocupados por fazerem parte do grupo de risco para Covid-19, com a saúde de seus familiares e amigos, com o emprego e a situação financeira, ou mesmo tristes pela perda de pessoas próximas”, conta a dentista.

De fato, o estresse crônico maltrata a cabeça… e os dentes. Tanto é que, numa revisão da literatura técnica, uma equipe da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) também confirmou que as alterações psicossociais deflagradas pela pandemia geraram um aumento e um agravamento nos quadros de bruxismo e disfunções na articulação temporomandibular.

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O duro é que tudo isso faz parte de um círculo vicioso: a turma que está com a mente em ebulição vê sua qualidade de vida piorar ainda mais em função do apertar e ranger dos dentes. Porque não é só o parceiro que pode se incomodar com os ruídos emitidos na madrugada ao lado da cama. A boca e o corpo se ressentem.

Começa com dores que tendem a se intensificar tanto na região dos dentes como da musculatura da mandíbula, particularmente na área da bochecha perto das orelhas. Depois tem estalos na articulação ali, dificuldades para abrir a boca e mastigar, mordidas involuntárias na língua e na gengiva e alteração na mobilidade dos dentes. Olha que estresse!

No longo prazo, se o problema não for devidamente tratado, ocorrem desgastes e espaçamentos na dentição e retração gengival, quando esse tecido vai se afastando da base do dente e deixando a raiz dele exposta, o que acarreta aumento na sensibilidade. Nem mesmo as restaurações e as próteses se livram do tormento e podem acabar comprometidas. Num extremo, o paciente sofre com dores constantes e trincas e fraturas dentais.

De onde vem esse nome?

Apesar de à primeira vista lembrar algo relacionado a bruxas, o termo “bruxismo” é originário do grego bouyuóc, que significa “ranger os dentes”. Segundo registros, em 1907 a palavra “bruxomania” foi usada pela primeira vez na literatura odontológica, e, em 1931, acabou substituída pela forma como conhecemos o problema hoje.

Atualmente, outros nomes técnicos podem ser empregados para se referir ao bruxismo, como neurose do hábito oclusal, neuralgia traumática, briquismo, apertamento e parafunção oral.

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Repercussões e propensões

As encrencas que atingem a face de quem vive com o bruxismo já são o suficiente para tirar a paz de qualquer um, mas os incômodos vão além. “O paciente pode apresentar dores de cabeça, no pescoço e nos membros superiores, tonturas, zumbido nos ouvidos, desorientação e má qualidade do sono”, lista o dentista Vinícius Pedrazzi, professor da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto da USP.

Esse pacote de sintomas só deixa o indivíduo mais irritado e tenso, piorando, adivinhe, o próprio bruxismo. Círculo vicioso, lembra?

Outro sinal dos tempos de que a condição vem estorvando mais gente — e as pessoas estão em busca de orientação — é que as procuras pelo termo “bruxismo” no Google cresceram quase 20% no final de 2020, em comparação com o mesmo período do ano anterior. O perfil de quem se preocupa com o ranger dos dentes é bem diverso: inclui homens e mulheres, crianças, jovens e adultos.

E pode até ter um fator hereditário envolvido. “Apesar de precisarmos de mais evidências, alguns estudos mostram que de 20 a 50% dos chamados bruxômanos apresentam pelo menos um parente direto com o mesmo diagnóstico”, conta o dentista Alexandre Annibale, que é especialista em odontologia do sono e atua na capital paulista. Isso provavelmente ocorre porque a nossa ossatura, musculatura e formação dental seguem padrões genéticos.

E os fatores emocionais, claro, também pesam. “Os mais ansiosos, perfeccionistas e introspectivos têm mais propensão a sofrer com o apertamento dos dentes”, afirma Annibale.

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Para entender mais a fundo como o bruxismo se manifesta, precisamos esclarecer que existem dois tipos do problema, e eles até podem conviver. Há o bruxismo de vigília e o do sono.

“O primeiro tem bastante ligação com o estado mental e é mais comum em adultos, enquanto o segundo também costuma estar relacionado a distúrbios respiratórios, refluxo gastroesofágico e até mesmo ao uso de algumas medicações, além de ser mais visto em crianças”, resume a dentista Karen Oliveira Peixoto, pesquisadora da UFRN e uma das autoras daquele estudo que investigou o bruxismo entre dentistas brasileiros.

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Por falar em infância, não é raro que os pequenos sejam mais suscetíveis a problemas que dificultam a passagem de ar pelo nariz e, para compensar, avancem e mexam a mandíbula diversas vezes à noite para liberar o fluxo e respirar pela boca.

Faixa etária à parte, outras questões aumentam as chances de o bruxismo dar as caras, caso de sinusites e otites recorrentes, desalinhamento dos dentes e má oclusão.

“A ingestão de álcool também está relacionada ao aumento do bruxismo noturno, pois a bebida relaxa a musculatura e restringe a passagem de ar durante o sono”, nota Juliana. A dentista da USP de Bauru lembra que o consumo etílico também cresceu com a pandemia, o que afunila a relação entre o período da Covid-19 com o ranger dos dentes.

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Outra situação mais comum após a chegada do coronavírus e a necessidade de fazer o isolamento social foi o ganho de peso. E até ele pode se intrometer na nossa história. “A língua e a região do pescoço também ganham volume com o excesso de gordura, o que pode obstruir ou aumentar a resistência para a passagem de ar pela região”, explica Maria de Lourdes. É um prato cheio para ronco, apneia do sono e bruxismo.

Só que muitas vezes a pessoa nem se dá conta de que está apertando os dentes, principalmente se isso acontece ao dormir. Daí a importância de ficar atento a alguns sinais, ainda mais se não tiver um parceiro por perto para delatar algo estranho.

“Se você sente dores nos músculos que envolvem a boca, na região dos dentes ou na cabeça, especialmente ao acordar, o indicado é procurar ajuda profissional”, recomenda o dentista e cirurgião bucomaxilofacial Victor Abuharun, diretor da Clínica Cove Dental, em São Paulo.

Há um elo com a DTM?

As disfunções na articulação temporomandibular, a que movimenta a boca, têm uma forte conexão com o bruxismo. Mas cabe ponderar que o ranger dos dentes, isoladamente, não causa DTM — outros fatores e predisposições entram em jogo para sua ocorrência. Assim, o indivíduo pode ter apenas bruxismo e não ter DTM, e vice-versa. E é fundamental procurar um dentista especializado porque as condutas de tratamento são diferentes.

Como se espanta o bruxismo

O primeiro passo para quem desconfia que pode estar sofrendo com bruxismo, portanto, é procurar um dentista. E é bom fazer isso logo para agir de forma preventiva, evitando complicações e melhorando desde já a qualidade de vida. Em algumas situações, aliás, o ranger dos dentes chama a atenção para outros problemas, respiratórios ou gástricos, que demandam olhar e tratamento médico.

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À caça do bruxismo, o profissional vai levantar a história e as queixas do paciente, fazer uma inspeção da boca e dos dentes, checar se há desgaste do esmalte dentário, pequenas fraturas e mesmo traumas na língua e na parte interna da bochecha. Fora isso, apalpando os músculos do rosto e avaliando a simetria facial, colhe outros dados para chegar ao diagnóstico.

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“Depois pode haver a necessidade de exames complementares, como uma radiografia panorâmica. Eles ajudarão a avaliar a densidade dos ossos que ficam em volta dos dentes, a relação entre as duas estruturas, os desgastes nas articulações, entre outras características”, explica Pedrazzi.

A depender do quadro, além do dentista, outros profissionais devem entrar em cena, como médicos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos e psicólogos. É que, como a origem do bruxismo é multifatorial, a melhor abordagem acaba sendo a multidisciplinar, aquela que intervém em todos os fatores que predispõem o indivíduo a apertar os dentes.

Pensando na boca em si, o dentista costuma mandar fazer uma placa personalizada, em geral de acrílico, para ser usada à noite ou mesmo durante o dia. Ela evita que as arcadas dentárias tenham contato direto e que a articulação da mandíbula fique sobrecarregada. Também podem ser prescritos medicamentos para conter sintomas como as dores. Fica a critério do profissional, apto a receitar analgésicos, anti-inflamatórios ou relaxantes musculares.

Tendo em vista que a tensão e a ansiedade costumam estar no pano de fundo do bruxismo, o apoio de um psicólogo ou de um psiquiatra não deveria ser incomum. Pense: não vai adiantar só tomar remédio para acalmar a dentição. Com frequência, será preciso acalmar primeiro a mente. E aí o paciente se beneficia de sessões de psicoterapia e, se o médico julgar adequado, de ansiolíticos ou antidepressivos.

No caso do bruxismo de vigília, é aconselhável que a pessoa passe a prestar atenção em seus comportamentos durante o dia: o que você faz nos picos de estresse? Repare se está tensionando ou rangendo os dentes. E, para aplacar os ânimos e evitar que as emoções sejam descontadas na boca, recorra a artifícios como técnicas de respiração profunda ou meditação.

Outra dica é escrever lembretes ou baixar aplicativos no celular que mandam avisos constantes para recordar os momentos de relaxar, desencostar os dentes e poupar as articulações e a musculatura da face.

Mais recentemente, quem veio ampliar o arsenal terapêutico do bruxismo foi a toxina botulínica, o popular Botox. É que as injeções, quando bem aplicadas, aliviam os músculos da região. Veja: elas minimizam o problema, não tratam suas causas. Daí que não são uma unanimidade entre os dentistas.

Até porque não existe um tratamento mágico, e o paciente também é convidado a rever e mudar hábitos para espantar a tensão dos dentes. Não tem segredo: os profissionais recomendam praticar exercícios, comer com equilíbrio, ter hobbies e prezar a higiene do sono, o que envolve desligar aparelhos eletrônicos meia hora antes de se deitar, apagar as luzes, criar e respeitar um horário para dormir, verificar se colchão e travesseiro estão ok…

Também é prudente evitar a mania de ficar mordendo objetos como canetas ou mesmo deixar o queixo ou a lateral da cabeça apoiados nas mãos. Tudo isso deixa a mandíbula sob pressão. Por fim, devemos ter consciência de que o bruxismo não tem uma cura total, mas, se cuidarmos da boca e da cabeça, são altíssimas as chances de ele parar de nos assombrar.

Roer as unhas piora as coisas?

Sim! Dependendo da intensidade e frequência, esse hábito pode não só agravar o bruxismo como sobrecarregar a articulação da mandíbula e provocar o desgaste de dentes e restaurações. Roer as unhas não está diretamente ligado ao ranger dos dentes, mas também é um comportamento típico de situações de estresse e ansiedade. Então vale a pena ficar de olho e procurar ajuda se estiver difícil de parar.

Por que não dá para deixar passar

É importante ficar atento aos sintomas e danos provocados pelo bruxismo para não ter que arcar com as complicações mais tarde:

+ Desgaste dentário: apertar e ranger os dentes com frequência, seja de noite, seja de dia, faz com que, no médio e longo prazo, a superfície da dentição se degrade.

+ Problema na articulação: a sobrecarga provocada pelos movimentos e choques contínuos nos dentes é capaz de prejudicar a articulação temporomandibular (ATM).

+ Trincas e fraturas: se o problema não for tratado corretamente, em casos extremos chega a propiciar danos em dentes e obturações, podendo ocasionar uma perda dental.

+ Dor na face e no corpo: por causa da tensão crônica, os músculos da boca, da cabeça, do pescoço, dos ombros e até dos braços tendem a ficar mais doloridos.

+ Impacto no sono: o bruxismo noturno está ligado à piora no relaxamento e na qualidade do repouso. Sem perceber, a pessoa acorda cada dia mais cansada.

O que engloba o tratamento

Como o bruxismo é multifatorial, seu controle pode envolver mais de um profissional e mais de um recurso terapêutico

Placas bucais: feitas normalmente de acrílico, evitam que os dentes de cima e os de baixo fiquem se encostando e diminuem a sobrecarga nos músculos e nas articulações.

+ Psicoterapia: as sessões trabalham os sentimentos e as emoções que fazem a pessoa ficar ansiosa e estressada. Com isso, há menos chance de os dentes padecerem.

+ Remédios: podem ser receitados comprimidos para relaxar os músculos e combater a dor e a inflamação — e outros para tratar a ansiedade e a depressão.

+ Toxina botulínica: ela é aplicada para relaxar os músculos da face e minimizar a intensidade dos rangidos. Por não tratar a causa do problema, tem ação transitória.

+ Lembrete e relaxamento: no caso do bruxismo de vigília, é recomendado deixar avisos em post-its ou no celular para se lembrar de desencostar os dentes e tirar a tensão da região bucal.

 

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