No último dia 1, cheguei ao Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP) animada para conhecer pessoalmente o Cíclotron. O acelerador de partículas fornece moléculas radioativas para diagnósticos no Sistema Único de Saúde (SUS).
Logo no início da visita, minha primeira surpresa: na busca pelo lugar certo, ninguém sabia me informar onde ficava o CinRad – Centro Integrado de Produção de Radiofármacos. Compreensível, afinal, o HC é o maior complexo hospitalar da América Latina. Uma verdadeira cidade, com joias desconhecidas pelos próprios funcionários.
O CinRad fica no primeiro prédio a trabalhar com medicina nuclear do país. Desde 1958, naqueles poucos andares, se desenvolvem os mais variados tipos de exames e tratamentos: radioterapia, raio-x, tomografia e etc.
A sala onde fomos recebidos guarda, inclusive, um museu, com equipamentos antigos e imagens históricas.
A medicina nuclear
A medicina nuclear, vale explicar, usa moléculas radioativas [que produzem um tipo específico de energia] para analisar o estado de órgãos ou mesmo fazer tratamentos. Essa energia é emitida porque algumas moléculas possuem átomos instáveis em sua estrutura.
Só para lembrar: toda matéria (inclusive nós) é formada por átomos, que, por sua vez, são compostos por minúsculas partículas, com cargas magnéticas diferentes.
Átomos instáveis são, por assim dizer, bagunçados. Para se tornarem mais estáveis, vão liberando energia [radioativa] até ficarem “sossegados” de novo. Esse processo é chamado de decaimento, e pode durar minutos, dias ou anos, dependendo do tipo de radiação emitida e do elemento em questão.
São várias possibilidades de uso. Um feixe de radiação de baixa intensidade atravessa o corpo para fazer uma tomografia computadorizada, marcando com sombra as áreas por onde passa com maior ou menor dificuldade. Uma radiação mais forte e diferente é usada para “queimar” uma célula maligna.
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Para obter as moléculas radioativas, os aceleradores de partículas bombardeiam átomos com partículas (alfa, beta, próton, nêutrons, etc.) para que esses átomos estáveis passem por um processo de transmutação e se transformem em átomos radioativos de outros elementos químicos.
Como já explicamos aqui no blog, alguns tipos de aceleradores permitem, por exemplo, o estudo de micro-organismos em nível atômico para melhorar o tratamento de doenças.
Já o Cíclotron, que conheci no CinRad, produz moléculas que são injetadas no paciente e marcam células específicas do corpo para fazer exames como o PET-CT. Nele, a tomografia enxerga as células marcadas pela radiação.
Para entender como isso acontece, vamos tomar como exemplo a 18F-Fluordeoxiglicose, ou 18F-FDG, para facilitar. O radiofármaco, fruto da união entre flúor radioativo e glicose, consegue se ligar às células que usam a glicose como fonte de energia, caso dos tumores de pulmão, linfomas e outros tipos de câncer.
Ao passar pela tomografia, a energia emitida pelo 18F-FDG é percebida pela máquina e os tumores aparecem em destaque.
Como funciona o acelerador de partículas Cíclotron
Durante a visita, eu e os outros jornalistas entramos em um vestiário e saímos nas entranhas do laboratório do CinRad devidamente paramentados com roupas de proteção. E com um medidor de radiação pendurado no pescoço, que não apitou em nenhum momento.
Selado em uma sala com ares de bunker, com paredes de quase 2 metros de espessura e uma porta que pesa mais de 200 toneladas, o Cíclotron é uma versão em miniatura dos grandes aceleradores de partículas, como o LHC, que fica na Suíça, e o brasileiro Sirius, usado para produzir luz síncrotron.
Basicamente, como explicamos, seu objetivo é bagunçar moléculas já existentes na natureza para que se tornem radioativas. Quem contou essa história foi o físico Rubens Abe, que conduz o Cíclotron e está na USP desde 1971.
Para fazer isso, moléculas chamadas de alvo são inseridas na máquina em formato líquido, sólido ou gasoso. Ali, entram em contato com íons negativos [um tipo de partícula subatômica] de hidrogênio, que são acelerados em uma bobina de formato circular para gerar um feixe de prótons [outra partícula] que desestabiliza a estrutura do alvo em questão.
Tomando o 18F-FDG como exemplo novamente, o flúor radioativo é feito no Cíclotron tendo um tipo especial de oxigênio como alvo. Depois da passagem do feixe de prótons, esse oxigênio sofre uma reação em seu núcleo e se transforma em flúor. A partir daí, tem 120 minutos de meia-vida – tempo para que sua energia comece a decair.
O isótopo radioativo formado no acelerador é colhido e enviado para outras máquinas, que fazem a síntese entre ele e a molécula em questão. O resultado é um líquido a ser injetado na veia dos pacientes, que precisa ser mandado rapidamente às instituições que o CinRad atende.
Cada dose é transportada em pesadas cápsulas de tungstênio ou chumbo, que podem pesar até 20 quilos e impedem qualquer vazamento de radiação.
Elas ficam guardadas em um cofre, cuja senha só é liberada após os testes de qualidade, que são conduzidos no próprio CinRad enquanto o produto viaja ao seu destino.
Tecnologia em prol da saúde pública
O Cíclotron, em operação desde 2010, é fruto de uma parceria público-privada com o Hospital Sírio Libanês, que doou os equipamentos. “É o único centro acadêmico do país a produzir radiofármacos para assistência e pesquisa”, comenta o médico especialista em medicina nuclear Carlos Alberto Buchpiguel, professor da USP que apresentou o CinRad a mim e a outros jornalistas.
Hoje, o sistema fabrica cinco compostos aprovados pela Anvisa e já distribuiu mais de 50 mil doses deles. Suas boas práticas foram reconhecidas por entidades internacionais como a Agência Internacional de Energia Atômica.
Além do PET-CT mais clássico, graças a ele é possível realizar gratuitamente tipos do exame hoje não cobertos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), como o PET-CT PSMA, para avaliar metástases do câncer de próstata, e o teste conhecido como PET Amiloide, que busca por placas no cérebro relacionadas ao Alzheimer.
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“Mais de 6 mil usuários do SUS puderam fazer exames aos quais não teriam acesso normalmente”, aponta Buchpigel. Hoje, o CinRad atende instituições próximas, como o Instituto do Coração (InCor) e o Instituto de Radiologia (InRad), no próprio complexo do HC, e o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp).
A ideia é aproveitar o know-how para expandir a produção. “Poderíamos nos tornar referência para toda a rede de hospitais públicos do estado de São Paulo”, conta o médico. Apesar do tempo geralmente curto de vida dos radiofármacos, alguns conseguem viajar num raio de 500 km.
O CinRad pesquisa ainda novas moléculas, que poderão auxiliar no diagnóstico de problemas psiquiátricos, neurológicos e cardíacos. De lá, já saíram mais de 180 artigos científicos, além de soluções para facilitar a produção de compostos cuja demanda é alta.
Para ter ideia, a pequena equipe do CinRad, composta por 13 pessoas, desenvolveu sua própria metodologia para a produção de gálio, mineral que faz parte do PSMA e outros exames, a partir de uma moeda de zinco.
Por fim, a estrutura do CinRad pode ser usada também para uma área promissora da medicina, a teranóstica: a ideia de localizar e, ao mesmo tempo, destruir um tumor. As negociações para captação de recursos e parcerias para isso já começaram.