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Tá na internet, tá na TV, tá nos livros... tá no nosso dia a dia. O jornalista André Bernardo mostra como fenômenos culturais e sociais mexem com a saúde — e vice-versa.
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50 anos do Joelma e cinco do Ninho do Urubu: traumas podem ser superados?

Psicóloga americana afirma que sim. Mas ela ressalva: sempre deixarão marcas em seus sobreviventes

Por André Bernardo
21 Maio 2024, 13h38
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Uma arte em um muro foi pintada em homenagem às vítimas do incêndio no Ninho do Urubu (Crédito: Nossos 10, por Aira Ocrespo e Rafaela Cassiano/Veja Saúde)
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Na manhã do dia 1º de fevereiro de 1974, Mauro Ligere Filho, de 24 anos, tinha uma reunião no Edifício Joelma, em São Paulo. Funcionário do Citibank, tentaria incorporar o banco Crefisul. Na tarde de 8 de fevereiro de 2019, Cauan Emanuel Gomes Nunes, 14, tinha um treino no Maracanã, no Rio de Janeiro. Atleta do Flamengo, testaria o VAR (“árbitro assistente de vídeo”). 

Por uma infelicidade, nenhum dos dois compromissos aconteceu. O fogo não deixou. 

Às 9h em ponto, Mauro foi indagado por Evaldo Amaral, diretor do banco onde trabalhava: “Preparou o material?”. 

Não teve tempo de responder. Ouviu o barulho de vidros explodindo, vindo dos andares inferiores do prédio. 

Por volta das 5 da manhã, Cauan acordou com uma fumaça negra e os gritos dos companheiros. Dividia o quarto 2 do Ninho do Urubu com outros três jogadores: Athila, de 14 anos, Jhonata e Francisco Dyogo, ambos com 15. 

Mauro tentou escapar pelas escadas. Uma nuvem de fumaça impediu sua fuga. Em seguida, pegou uma mangueira para combater o fogo. Não havia água. 

Por último, procurou esconderijo no banheiro mais próximo. “Queimado eu não vou morrer”, pensou. Tão logo saltou da beliche onde dormia, Cauan sentiu o chão do dormitório queimar. 

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Tentou arrancar as grades de alumínio da janela, mas não conseguiu. “Socorro, eu vou morrer aqui!”, berrou. 

Mauro encontrou refúgio no parapeito de uma janela do 22º andar. Ele e mais seis pessoas. Foi lá, naquele minúsculo espaço, que foi resgatado, seis horas depois, pelo corpo de bombeiros. 

Como fugir pela porta corrediça não era mais uma opção, Cauan escapou do contêiner em chamas se espremendo entre as grades da janela. Ele, Jhonata e Francisco. Ainda tentou acordar Athila uma última vez, mas o amigo não respondeu ao chamado. 

“De onde eu estava, conseguia ver algumas pessoas pulando para a morte. Passados alguns segundos, ouvia o barulho delas se espatifando no chão. Outra lembrança: toda vez que o helicóptero sobrevoava o topo do Joelma, empurrava a fumaça em nossa direção. A sensação que eu tinha é que, a qualquer momento, morreríamos sufocados”, relata Mauro.  

“O momento mais difícil foi quando descobri, já no hospital, que alguns dos meus colegas não estavam mais vivos. Foi muito doloroso, sabe? Eram praticamente meus irmãos. Passava mais tempo com eles do que com a minha própria família”, relata Cauan, que mandou tatuar os nomes dos dez companheiros mortos no braço direito. 

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“Se uma história não é contada, é como se ela não tivesse existido”

As histórias de Mauro, hoje com 74 anos, e Cauan, de 19, foram contadas pelos jornalistas Adriano Dolph e Daniela Arbex nos livros Fevereiro em Chamas – As Histórias que Abalaram a Cidade de São Paulo nos Incêndios do Andraus, Joelma e Grande Avenida (RG Editores, clique para comprar) e Longe do Ninho – Uma Investigação do Incêndio que Deu Fim ao Sonho de Dez Jovens Promessas do Flamengo de Se Tornarem Ídolos no País do Futebol (Intrínseca, 2024). 

O incêndio do Joelma deixou 181 mortos. Pelo menos 20 deles, no auge do desespero, tiraram a própria vida, e outros 13 nunca foram identificados. 

Jorge Okajima, de 23 anos, é uma das vítimas fatais. Ele é tio da psicóloga Karina Okajima Fukumitsu, de 53 anos. 

Deprimida, sua mãe, Yooko, passou a fazer uso de álcool e a não sair mais de casa. Por diversas vezes, tentou cometer suicídio. Dona Yooko morreu em 2013, de problema do coração. 

“Uma das partes mais difíceis de uma investigação jornalística dessas é localizar as vítimas, os sobreviventes e seus familiares”, conta Dolph. “É preciso explicar a cada um que o trabalho é de cunho jornalístico e não sensacionalista. O objetivo do livro é homenagear cada uma das vítimas do incêndio e desfazer algumas lendas urbanas. Um exemplo? As 13 vítimas não foram encontradas em um elevador do Joelma”. 

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Já o incêndio do Ninho do Urubu matou dez atletas: Athila, Arthur, Bernardo, Christian, Gedinho, Jorge, Pablo, Rykelmo, Samuel e Vitor. Os pais de Bernardo, Lêda e Darlei, mantêm o quarto do filho do jeito que ele deixou, há exatos cinco anos. 

Diana e Damião, quando sentem saudades do filho Athila, abrem um de seus cadernos escolares: “Mãe, eu te amo. Só tenho a agradecer a você e ao meu pai por terem me colocado no mundo”, escreveu o jovem em uma página. 

O Joelma é um edifício de 25 andares que fica no centro de São Paulo – do primeiro ao sétimo andar, funciona o estacionamento. O fogo começou no departamento jurídico do extinto banco Crefisul, que ficava no 12º andar. 

Foi rebatizado de Praça da Bandeira. O contêiner onde dormiam os atletas do Flamengo tinha seis dormitórios (com três beliches cada), quatro banheiros e apenas uma porta de entrada e saída. No local, foi construída uma capela ecumênica.

 

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Dolph relata os apuros enfrentados pelos bombeiros: as escadas Magirus, de 45 metros, só chegavam até o 13º andar. Para alcançar os andares mais altos, amarraram umas escadas às outras. 

Segundo a corporação, a temperatura no interior do Joelma pode ter chegado a 800 graus. Enquanto aguardava o resgate, Mauro fez uma promessa à Nossa Senhora. Um mês depois, pegou a roupa que usava no dia da tragédia e a deixou no Santuário de Aparecida.  

Já Arbex, assim que colocou o ponto final em Longe do Ninho, fez questão de ler o livro, ela mesma, para as famílias das vítimas. Queria contar que oito dos dez atletas mortos no incêndio tentaram fugir do contêiner em chamas. 

Ao contrário do que seus pais imaginavam, seus filhos não morreram dormindo. E mais: um deles, Samuel, morreu carregando outro, Jorge, nas costas. Por causa da temperatura de 600 graus, suas ossadas foram fundidas numa só. 

“A construção da memória coletiva é um caminho para a busca da justiça”, afirma a autora de Todo Dia a Mesma Noite: A História Não Contada da Boate Kiss (Intrínseca, 2018) e Arrastados: Os Bastidores do Rompimento da Barragem de Brumadinho, o Maior Desastre Humanitário do Brasil (Intrínseca, 2022), entre outros. “Um dos objetivos do meu trabalho é combater a cultura da impunidade. A impunidade alimenta a próxima tragédia. Esquecer uma tragédia é negar a própria história”.  

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“Um osso fraturado nunca será tão saudável quanto outro que nunca se partiu”

O incêndio do Edifício Joelma, em 1974, e a tragédia do Ninho do Urubu, em 2019, deixaram traumas em Mauro e Cauan. Durante muito tempo, o primeiro não conseguia dirigir e evitava multidões. Já o segundo tentava dormir e não conseguia: ouvia as vozes dos colegas implorando por socorro. 

A palavra trauma vem do grego traumatos e quer dizer: ferida. Em bom português, trauma pode ser entendido como “estado resultante de ferimento grave”. 

“Tanto o corpo quanto a mente podem sofrer traumatismos”, explica a psicóloga Faith Harper, autora de Destrave Seu Cérebro: Uma Abordagem Científica e Bem-Humorada para Lidar com Traumas e Gatilhos Emocionais (Sextante, 2024). “Por mais que tratemos nosso trauma, nunca conseguiremos voltar a ser o que éramos antes de sofrê-lo. É como quebrar um osso. Um osso fraturado nunca será tão saudável quanto o outro que nunca se partiu”. 

Segundo os especialistas, traumas são divididos em agudos ou crônicos. Os agudos têm curta duração, como um ataque terrorista, um acidente de carro ou o diagnóstico de uma doença. Já o crônico nasce de uma exposição prolongada a um evento estressor qualquer, como uma pandemia de Covid-19 ou abusos recorrentes (infantis ou de violência doméstica, por exemplo). 

Outro detalhe: traumas causam diferentes reações nas vítimas, desde fisiológicas, como insônia e taquicardia, até emocionais, como raiva ou medo. Um estudo com 68,8 mil voluntários de 24 países revelou que sete em cada dez pessoas já foram expostas a um ou mais traumas. 

“Não há receita ou fórmula para superar um trauma. Cada um precisa encontrar o melhor caminho para reduzir o impacto dele em sua vida”, completa Harper. 

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“Um trauma desses, a gente não supera nunca”, observa Mauro. “Ainda hoje, quando vou ao cinema ou ao teatro, a primeira coisa que eu faço é traçar uma rota de fuga. Saio à procura dos extintores de incêndio e das saídas de emergência. Só depois é que eu me sento no meu lugar para assistir ao filme ou à peça”. 

“Carrego traumas até hoje: medo, culpa, ansiedade, depressão…”, endossa Cauan, um dos oito sobreviventes entrevistados por Daniela Arbex para o livro. “Tento ser forte e seguir adiante, mas não é fácil. Me culpo muito por não ter conseguido ajudar meus colegas. Poderia ter dado mais de mim. Deixei a desejar”. 

Agudos ou crônicos, traumas podem ser tratados. Os episódios de menor repercussão, como o fim de um relacionamento ou a perda de um emprego, tendem a desaparecer espontaneamente, sem a necessidade de intervenção, depois de alguns dias ou semanas. 

Já os de maior gravidade requerem cuidados profissionais. Muitas vezes, a superação envolve sessões de psicoterapia e prescrição de remédios, como antidepressivos. 

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