Existe um projeto de homem, de masculinidade, ainda muito corrente na sociedade, que ousaria afirmar que deu errado. Mas, quando reflito sobre o horror da situação que vemos no mundo atual (crises econômica e climática, a volta do fascismo, guerras e por aí vai), cada vez mais vejo que esse cenário caminhou, em seu “desenvolvimento rumo ao fracasso”, junto com o desenvolvimento deste projeto de masculinidade que chamamos, hoje, de tóxica.
Projeto que hoje produz, nos homens, um risco de cometer suicídio quatro vezes maior do que as mulheres. Seis em cada dez homens afirmam enfrentar algum nível de sofrimento emocional.
Além disso, os homens são vítimas de 83% dos casos de homicídios e compõem 95% da população prisional no Brasil.
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A masculinidade de hoje é uma construção social que afasta os homens do autocuidado e dos temas da saúde mental e emocional.
Nos Estados Unidos, 80% dos homens sofrem de “alexitimia”, segundo estimativa da Associação Norte Americana de Psicologia.
Ou seja, quatro em cada cinco homens daquele país sofrem de uma condição caracterizada, entre outras coisas, pela dificuldade em identificar e expressar os próprios sentimentos.
Durante a pandemia, tive a honra de coordenar um serviço de acolhimento psicológico voluntário que realizou mais de 8 500 escutas de pessoas pelo Brasil ao longo de 18 meses de funcionamento.
Os resultados da Experiência de Escuta mostram que os homens acima dos 35 anos foram os que menos procuraram o serviço, com a ocupação de apenas 10,9% dos horários oferecidos.
As mulheres, por outro lado, representaram 72% da procura. Diante dos números, é impossível não nos perguntarmos: por que os homens buscam muito menos ajuda?
A saúde mental masculina ainda é um tabu em muitos lugares e grupos.
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Esse projeto de masculinidade não foi construído do dia para a noite. Há muitos séculos ele vem associando aos homens a ideia de poder, virilidade, agressividade e domínio.
Nesse processo, as questões humanas que tocam o universo masculino e envolvem afetividade, saúde, relacionamentos e bem-estar foram associadas à fraqueza e acabaram embotadas.
Segundo esse projeto de masculinidade, para ser homem é preciso saber sofrer sozinho e calado, o que me parece uma péssima ideia.
São conhecidos pela psicanálise, sobretudo a partir dos estudos de Sándor Ferenczi, os casos em que aquele que sofre uma violência cria, como mecanismo psíquico de defesa, uma forma de identificação com o agressor.
Identificada, a vítima encontra uma saída para a sua sobrevivência: transforma-se, ela própria, em perpetuadora da mesma violência que sofreu.
Essa armadilha inconsciente é capaz de aprisionar gerações e gerações, que repetem seus traumas até que eles possam ser ressignificados.
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Alcançar a ressignificação passa tanto pelo autoconhecimento, pelo preparo e pelo letramento emocional. Mas tão importante quanto isso é questionarmos posições que assumimos como dadas quando, na verdade, foram construídas.
Quando as mulheres questionam a masculinidade, elas ajudam os homens a se perceberem ocupando um lugar que lhes foi delegado. Um lugar insustentável e, por isso, produtor e reprodutor de sofrimento.
Não se trata de naturalizar a violência masculina, nem tentar justificá-la. A masculinidade tóxica é um legado traumático, que afasta os homens do cuidado com a própria saúde mental e que precisa ser curado.
Espero viver o suficiente para ver um mundo capaz de olhar para o passado compreendendo que a masculinidade de hoje se encerra como um dos grandes traumas do mundo contemporâneo.
Há esperança. Observamos, nos últimos anos, um crescente número de grupos de homens que se dispõem a pensar o que significa ser um homem.
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Esses grupos se reúnem não para reafirmar a masculinidade tóxica, mas para se livrarem dela e estabelecerem uma relação com a vida de mais identidade e cuidado.
Se você é homem e essas questões te provocam a pensar, busque um desses grupos. Compartilho aqui o link de uma iniciativa que pode te ajudar a iniciar este percurso: Memoh.