Meninos não choram? Quando o sofrimento vira violência nas escolas
Pesquisadora analisa impacto de desafios psíquicos e sociais entre os jovens na origem de ataques a outras pessoas e instituições
O recente ataque e assassinato de crianças em uma creche em Santa Catarina, a morte de uma professora em um colégio de São Paulo e uma série de ameaças a escolas disseminadas pelas redes sociais desafiam nossa capacidade de compreensão devido aos vários níveis de horror que representam.
A tentativa de entender como algo assim pode acontecer engloba múltiplos elementos que constituem e impactam a sociedade.
Eles incluem discursos e práticas violentas, instabilidade econômica, famílias disfuncionais e fenômenos como o copycat — a repetição de episódios violentos como desejo dos agressores de atenção das mídias.
Tudo isso pode contribuir para uma tempestade perfeita e devastadora.
Infelizmente, casos do gênero se repetem em diversos países. E há estudos analisando o perfil das pessoas com maior probabilidade de se envolver nessas situações.
Uma das constatações bem claras é que quase sempre os agressores são homens, particularmente jovens.
O centro de pesquisa The Violence Project, que mantém um banco de dados sobre os massacres à bala ocorridos nos Estados Unidos nos últimos 50 anos, constatou que 97% deles foram realizados por homens e mais de metade desses indivíduos tinha até 34 anos.
Esses agressores estão, na maioria das vezes, passando por crises pessoais.
Por momentos difíceis como perda do emprego, separação, morte dos pais, rejeição… E que fogem da sua capacidade de lidar com eles.
Frequentemente, os ataques são antecipados e sinalizados por mudanças de comportamento: extremo isolamento em alguns casos, aumento na agressividade no dia a dia em outros.
Grande parte desses homens apresentava atitudes e comportamentos crescentemente impulsivos, às vezes até suicidas. E, não raro, chegam a divulgar seus planos de violência tanto para indivíduos próximos como por meio das redes sociais.
O mais recente ataque ocorrido nos Estados Unidos, que deixou quatro pessoas mortas em um banco na Louisiana, chegou a ser transmitido ao vivo pelo assassino.
De fato, alguns estudos apontam que a vida real e a que ocorre nas mídias sociais desses sujeitos não são mutuamente exclusivas, mas tendem a conter os mesmos temas e sinais de alerta.
Pesquisas também revelam que o compartilhamento de assuntos e mensagens violentas nas redes tende a impactar as ações de pessoas já sob o risco de agirem com agressividade através da normalização de atitudes e ações que, em geral, antes eram vistas por elas como inaceitáveis.
É o que chamamos de contágio social, moldado à era da internet.
Uma quantidade expressiva de indivíduos envolvidos nessas situações de violência de massa (mais precisamente, cerca de 30% deles) está deprimida ou enfrenta mudanças nítidas e constantes de humor.
Esse é um ponto muito importante a se destacar. Homens, especialmente jovens, podem expressar sofrimento psíquico, caso da depressão, de forma diferente das mulheres.
Neles, em vez (ou além) da tristeza profunda e da falta de esperança e de prazer, o problema costuma aflorar como irritação, raiva, comportamento abusivo e controlador e rompantes de violência (em casa ou fora dela).
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Prevenir é mais seguro que remediar
Acontece que esses sinais são comumente detectados somente a posteriori.
Uma das razões é que não estamos prestando atenção a esses indícios ou os camuflamos sob o manto da desinformação e do preconceito.
E isso tem tudo a ver com as normas sociais conservadoras tradicionalmente consideradas masculinas, como o preceito de ter que dar conta sozinho dos desafios da vida, a exigência de ser sempre um vencedor, a interpretação de insucessos como humilhações e a negação de admitir para si e os outros as fraquezas internas ou que algo não vai bem.
Embora a coisa tenha começado a mudar de figura, ainda é difícil para muitos homens demonstrarem vulnerabilidade e procurarem ajuda psicológica logo que necessário — realidade oposta à das mulheres.
Se mais meninos e homens feitos pudessem pedir apoio e orientação muito antes das situações extremas de impulsividade, hostilidade e destruição, teríamos meios mais eficazes de inibir ações tão drásticas como as que vemos no noticiário.
Além disso, é óbvio que, qualquer que seja a circunstância, é fundamental restringir o acesso a armas, sobretudo as de fogo, que transformam sofrimentos individuais em tragédias coletivas.
Não há dúvida de que episódios de extrema violência têm uma gama de fatores causais, e nem sempre todos eles podem ser evitados.
Ainda assim, existem formas de minimizar ou prevenir os ataques alimentados pelo ódio e pelo sofrimento psíquico.
O primeiro passo é partirmos do pressuposto de que indivíduos não nascem monstros, mas podem trilhar caminhos que levam à destruição e à violência.
As evidências científicas mostram que pessoas perto de cometer atos de extrema violência de massa anunciam, várias vezes explicitamente, suas intenções antes do fato — e não é à toa que o monitoramento das redes sociais virou uma ferramenta para agir antes que isso aconteça.
Não se trata de mera questão policial. Mas também de estender a mão e apoio a pessoas que estão vivenciando um momento de desesperança e, com baixa capacidade de regular as próprias emoções (incluindo a agressividade), externalizam sua dor psicológica contra o mundo e os outros.
É essencial estarmos atentos às comunicações, pessoais e digitais, desses jovens que, acreditando na ideia arraigada de que homens não devem chorar, acabam transformando sentimentos e sofrimentos em ideação suicida ou homicida, amparada numa raiva incontrolável diante da comunidade, das instituições e dos seres humanos.
Precisamos conscientizá-los de que existem outros caminhos, outras opções. Se cuidarmos melhor deles, estaremos cuidando de toda a sociedade.
* Ilana Pinsky é psicóloga clínica e pesquisadora ligada à Fiocruz. É autora de Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis (Contexto) e foi consultora da OMS e professora da Unifesp e da Universidade Colúmbia (EUA). Hoje também é colunista de VEJA