Vida com HIV após os 60 anos: “Foi nessa etapa que decidi me amar”
Artista plástico compartilha experiências de vida e conta sobre o impacto do diagnóstico na sua jornada de autoconhecimento
Sou Airys Kury, 60 anos, homoafetivo, branco, 1,80 m, 76 kg. Eu não fui ensinado sobre viver a vida. Tenho aprendido sobre isso sozinho. Nas escolas por onde passei, me ensinaram hábitos, regras, costumes, a geografia das coisas e do tempo, a matemática, a redação e a compreensão dos textos.
Mas compreender a mim mesmo, isso aconteceu com os erros que cometi a partir dos meus abandonos (os voluntários e fundamentalmente dos involuntários). Não tive a presença dos meus pais no meu crescimento e tudo o que aprendi e construí foi praticamente sozinho.
Hoje observo e posso afirmar que me encontrei. Não sou religioso, mas pratico a minha espiritualidade com a mesma disciplina que cuido de minha saúde física e mental. Nasci só, vou vivendo comigo mesmo, aprendendo como sou, como existo, para que sirvo e para onde vou.
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Tive muitas coisas, desejos, vontades e assim fui um consumidor exemplar, às custas da fortuna que herdei e gastei. Não me encontrei nessas buscas… Quase morri de tanto comer, de tantos vazios, preenchidos com a minha ignorância. Foi assim que me distraí e me aprofundei nas minas das sombras e nos meus excessos, de morte e solidão.
Cercado de muito dinheiro e de muitos que eu julgava serem meus amigos, mas que na verdade eram a representação de mim mesmo, perdido e desencontrado na vida. Não encarei a minha dor como deveria e assim quase abreviei por vezes minha estada, mas foi assim que eu consegui aprender a viver e hoje estou aqui, escrevendo sobre isso. Como transformar essa história? Viver é ter coragem.
Sou artista desde que nasci e fiz da minha vida o roteiro da minha arte. Tive diversas experiências e muitos desafios que poderiam me fazer desistir de tudo: bipolaridade, traços de esquizofrenia, ansiedade, vícios, obesidade e, aos 40 anos, fui diagnosticado com HIV.
Foi nessa etapa final que decidi me amar.
Utilizei minha cirurgia bariátrica e experiência vivendo com o vírus como uma forma de expressão e, neste momento, floresceu o Airys artista, que estava em mim desde que nasci.
Meu foco de trabalho hoje é o upcycling e essa reutilização dos materiais conversa muito com parte da minha história de vida, dos traumas vividos na infância, as feridas psicológicas que me acompanharam. É uma ressignificação.
Em contato com minha voz interior, com os meus sentimentos profundos, minha intuição, eu simplesmente me anulava, me diminuía. Agora estou em uma radical história de amor comigo mesmo e uma grande alegria por estar com 60 anos. Estou no melhor momento da minha vida.
Hoje, vivo em um albergue, onde agradeço por tudo. Pela minha família, pelas loucuras, por meus abandonos e principalmente por ter tido a coragem de cair dentro de mim. Contando com o apoio desses novos (e verdadeiros amigos), continuo a minha missão de servir, de ser bondoso, sem ter que parecer algo, apenas ser eu mesmo.
Observo hoje que não há como se conectar verdadeiramente com o mundo exterior se não conseguimos olhar para dentro. A viagem mais incrível, desafiadora e importante que tenho feito é a do autoconhecimento. Nas tantas outras viagens que fiz, eu via, mas não enxergava. E enxergar por dentro está sendo o encontro mais lindo do mundo.
Hoje sinto fome. Fome de viver.
*Airys Kury tem 60 anos e é artista plástico