Será que eu já tive Covid-19?
Um especialista usa um caso real para discutir os mistérios por trás do diagnóstico do coronavírus - e o que significa testar positivo na prática
É curioso lembrar como o coronavírus entrou em nossas vidas em um piscar de olhos. No início de março deste ano, um amigo sexagenário foi a uma grande festa de casamento — o que parecia normal na época hoje é impensável. Passou um tempinho e ele ficou gripado. Como a febre não cedia mesmo após cinco dias, foi a um pronto-socorro. A essa altura a ficha já tinha caído. Apesar de sintomas respiratórios leves, o nível de oxigênio estava baixo e a Covid-19 foi confirmada.
Por sorte, o quadro pulmonar evoluiu bem. A esposa, companheira e fiel escudeira, não teve sintoma algum, apesar de estar presente em todos os momentos, do casamento à internação. Após cerca de um mês da alta, o casal me ligou. Em que momento poderiam voltar a dormir juntos?
Os dois estavam particularmente preocupados com a sogra, que ficou longe da confusão, mas tinha idade avançada e morava na mesma casa. Decidimos, então, fazer um exame sorológico nos três para pesquisar a eventual presença de anticorpos contra a Covid-19. Esse exame detecta dois tipos de imunoglobulinas: IgM, que aumenta na fase aguda da doença, e IgG, que é produzido em maior escala na fase tardia dela e indica imunidade contra o vírus.
Como era de se esperar, meu amigo testou positivo. Mas, para espanto geral, os resultados da sua esposa vieram negativos, enquanto sua sogra tinha sorologia positiva tanto para IgM como IgG. Ou seja, ela também foi infectada pelo Sars-CoV-2, porém não manifestou qualquer sintoma.
Idade avançada, diabetes, obesidade e apneia do sono são fatores de risco para formas grave de Covid-19. No entanto, essa regra está cheia de exceções. Essa doença é uma roleta russa: você nunca sabe ao certo quem vai pegar uma forma mais severa e quem nem vai senti-la. Não é incomum ver idosos se dando bem e jovens saudáveis sofrendo complicações sérias.
Não sabemos também porque muitos familiares de pacientes, apesar do contato próximo, não são diagnosticados com Covid-19. Uma possibilidade envolve as taxas de erro dos exames sorológicos, que variam de acordo com a marca, o método e por aí vai. Outra é a de que alguns pacientes não desenvolvem anticorpos detectáveis por esses testes, mas criam o que chamamos de imunidade celular — outra forma de defesa do organismo que parece especialmente importante contra o Sars-CoV-2.
No meio dessa confusão, muita gente torce para fazer o exame de sorologia e descobrir que, lá no passado, foi infectado pelo coronavírus e nem percebeu. Afinal, a maior parte das pessoas mal tem sintomas (80%). “Se eu fizer um teste de coronavírus e der positivo, fico mais tranquilo”.
Mas a verdade não é bem essa. Primeiro porque, na minha experiência, a maioria dos indivíduos que fazem o teste aqui em São Paulo para saber se já tiveram a doença recebem um resultado negativo — e ficam frustrados com isso.
A professora Ester Sabino, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), tem realizado, todos os meses, exames de sorologia para Covid-19 em cerca de 1 mil doadores de sangue de diferentes cidades. Na capital paulista, 22,4% da população testou positivo em agosto. Ou seja, a maior parte dos moradores de São Paulo não foi infectada pelo coronavírus, de acordo com essas pesquisas.
E mais: do ponto de vista individual, saber que você desenvolveu anticorpos contra o Sars-CoV-2 não é uma licença para sair por aí despreocupado, mesmo porque o vírus está continuamente sofrendo mutações. Existe sempre a possibilidade de que cepas novas driblem sua imunidade e causem doença.
O que fazer? Tomo como exemplo inúmeros colegas médicos que já tiveram Covid-19, em suas mais variadas intensidades. Todos seguem tomando os mesmos cuidados, com uso de máscara e proteção pessoal. A melhor resposta para essa pandemia é assumir uma postura de grupo. Respostas individualistas, que buscam apenas se safar dos cuidados necessários diante dessa crise, não são o melhor caminho.
*Geraldo Lorenzi Filho é professor de Pneumologia da FMUSP e diretor do Laboratório do Sono do InCor