Inconsistências na inclusão de remédios no SUS: o caso de Pompe
Advogado do movimento A Regra É Clara ressalta que a avaliação de tecnologias para doenças incidentes deve ser diferente da voltada para condições raras
Para que um medicamento seja disponibilizado pelo Estado, ele deve passar por um processo seletivo baseado em critérios científicos e éticos de avaliação. A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (CONITEC) é o órgão do Ministério da Saúde que aplica esses critérios e opina sobre a inclusão de medicamentos no Sistema Único de Saúde (SUS). As recomendações do órgão são geralmente acolhidas pela autoridade responsável pela decisão final. Portanto, uma vez recomendado pela CONITEC, o medicamento quase certamente entrará na lista daqueles que devem ser ofertados à população.
Os pareceres da CONITEC afetam todos os usuários do SUS, principalmente aqueles que convivem com doenças crônicas e graves. As recomendações do órgão praticamente determinam o tipo de tratamento a que o usuário terá acesso, o que altera o curso da doença e influencia a qualidade de vida do paciente. Por isso, os critérios que a CONITEC utiliza para avaliar os medicamentos, além de tecnicamente válidos, devem ser justos e coerentes. Infelizmente, isto nem sempre acontece, principalmente no caso de doenças raras.
A CONITEC normalmente prioriza medicamentos cuja eficácia tenha sido comprovada por meio de estudos clínicos de grande porte, que envolvam um número significativo de pacientes e que ofereçam evidências científicas de ótima qualidade. De maneira geral, este critério é adequado, porque realmente não faz sentido gastar recursos públicos com tecnologias ineficazes ou cuja eficácia não tenha sido suficientemente comprovada. Contudo, no caso de medicamentos indicados para doenças raras, este critério é injusto, porque discrimina os pacientes.
Doenças raras são aquelas que acometem até 65 em cada 100 mil pessoas. A baixa incidência dificulta o recrutamento de voluntários e tende a inviabilizar estudos clínicos de grande porte. Por conta disso, ainda que um determinado medicamento realmente beneficie os pacientes, é difícil produzir evidências científicas robustas da sua eficácia.
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Assim, quando a CONITEC utiliza o mesmo rigor para avaliações de universos tão díspares, ela tende a dificultar o acesso ao tratamento medicamentoso de qualidade para pacientes acometidos por doenças raras.
Outro critério utilizado pela CONITEC para recomendar a incorporação de medicamentos baseia-se na priorização de tecnologias eficientes. A eficiência é uma relação entre o benefício que a tecnologia proporciona para o paciente e o custo que representa para o sistema. Se dois medicamentos proporcionam o mesmo benefício, aquele que tiver o menor custo é o mais eficiente.
A CONITEC procura, deste modo, fazer avaliações econômicas para comparar diferentes medicamentos e recomendar os mais eficientes. De novo, este critério é adequado para boa parte dos casos, mas insuficiente para avaliar medicamentos indicados para doenças raras, que normalmente são considerados ineficientes porque propiciam certos benefícios adicionais a custos bastante elevados.
Nestes casos, a ciência não oferece ferramentas adequadas para a avaliação, porque a questão envolvida é mais ética do que científica. Os medicamentos para pessoas que convivem com doenças raras devem ser examinados a partir de critérios éticos, baseados na disposição da sociedade a pagar mais para propiciar alguns benefícios a este grupo.
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Em 2019, a CONITEC avaliou um medicamento para a doença de Pompe. Essa é uma condição genética rara, que afeta progressivamente os músculos do corpo e causa grave comprometimento neuromuscular e respiratório. O tratamento foi recomendado e incorporado para a forma precoce da doença, mas os pacientes diagnosticados após os 12 meses de vida ficaram sem o remédio. Apesar de não haver qualquer indicativo de quanto a sociedade estaria disposta a pagar para beneficiar esses pacientes, o custo do tratamento foi o principal obstáculo apontado pela CONITEC.
Em 2021, a CONITEC avaliou novamente o medicamento e, mais uma vez, decidiu não recomendar a incorporação para a forma tardia da doença. Os principais argumentos, desta vez, foram o custo elevado da tecnologia e a insuficiência das evidências científicas de eficácia.
Contudo, assim como ocorreu em 2019, a recomendação negativa não se baseou em indicativos de quanto a sociedade estaria disposta a pagar. A decisão também desconsiderou o fato de que o medicamento é indicado para uma doença rara, cuja baixa incidência inviabiliza o desenvolvimento de estudos clínicos de grande porte, o que dificulta a produção de evidências clínicas mais robustas.
Em junho deste ano, pelos mesmos fundamentos, o órgão novamente recomendou a não incorporação do medicamento. Assim como das outras vezes, a CONITEC utilizou critérios gerais para um medicamento indicado para uma doença rara. Infelizmente, como se não bastasse o infortúnio de serem acometidos por uma doença rara e grave, os pacientes de Pompe vêm sendo discriminados, nas avaliações da Conitec, em razão da pouca prevalência da doença que lhes acomete.
O movimento A Regra É Clara, do qual eu participo e é organizado pelas associações Amigos Múltiplos pela Esclerose (AME) e Crônicos do Dia a Dia (CDD), produziu um vídeo sobre esse assunto, solicitando uma audiência pública para que mais atores envolvidos nessa discussão possam dar suas contribuições:
É necessário que a sociedade civil se mobilize em benefício dos pacientes que convivem com doenças raras e graves, como a de Pompe, para convencer a CONITEC de que está disposta a tolerar evidências científicas de menor qualidade em nome da solidariedade, e a renunciar a certos ganhos de eficiência em nome da equidade.
*Paulo Benevento é advogado, consultor jurídico em advocacy das associações Amigos Múltiplos Pela Esclerose (AME) e Crônicos do Dia a Dia (CDD) e do movimento A Regra É Clara