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Erguendo a bandeira da divulgação científica, um seleto grupo de pesquisadores se une para esclarecer, debater (e se divertir com) os temas mais complexos e polêmicos da biologia e da medicina
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Pílula anticoncepcional causa depressão: mito ou verdade?

Nossa colunista mergulha em um dos assuntos mais polêmicos envolvendo os métodos contraceptivos. Veja seu veredicto

Por Dra. Natalia Pasternak Taschner*
Atualizado em 5 nov 2018, 14h36 - Publicado em 15 nov 2017, 16h42
pilula anticoncepcional causa depressão
Antes de traçar conclusões precipitadas, precisamos entender as pesquisas que levaram a elas (Ilustração: Jonathan Sarmento/SAÚDE é Vital)
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O suposto fato comprovado cientificamente de que a pílula anticoncepcional leva à depressão foi motivo de alarde e controvérsia na mídia global, gerando manchetes como:

“Estudo histórico liga a pílula à depressão”

“A pílula pode causar depressão, e os médicos não podem mais ignorar esse fato”

“Meninas, cuidado: a pílula pode causar depressão”

“Não é coisa da sua cabeça, seu anticoncepcional pode ser a causa da sua depressão”

Todas as reportagens citam um estudo publicado em um dos periódicos da Associação Médica Americana, o JAMA Psychiatry. Ele é descrito como um trabalho inovador e revelador, que coloca métodos anticoncepcionais hormonais como responsáveis por uma doença séria, a depressão.

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Algumas matérias a respeito, veja só, foram até escritas em primeira pessoa. Foi o caso do jornal inglês The Guardian, que trouxe um texto com uma intensidade tão passional que deixava evidente que a autora foi uma usuária descontente da pílula.

No entanto, cabe esclarecer que o estudo nada tem de histórico, e os autores não concluem que a pílula causa depressão. E nem poderiam, uma vez que a pesquisa não foi desenhada para estabelecer uma relação de causa e efeito.

Pois bem, como já falamos por aqui, nem toda correlação pressupõe uma causa. Especialmente na área da saúde. O trabalho que liga os anticoncepcionais hormonais à depressão apenas observa, na realidade, dois fenômenos que parecem ocorrer simultaneamente. Além disso, contém falhas metodológicas que prejudicam até mesmo o estabelecimento dessa correlação. A interpretação passional dos jornalistas ao divulgá-lo também não foi correta.

Vamos entender melhor os motivos.

Pílula no tribunal da ciência

O estudo acompanhou 1 milhão de mulheres na Dinamarca, incluindo aquelas de 15 a 35 anos, no período de 1995 até 2013. Para isso, utilizou um cadastro de pessoas físicas, como o nosso CPF. A diferença é que, na Dinamarca, todas as prescrições médicas e internações ficam registradas junto a esse CPF.

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Assim, era uma boa maneira de ter acesso aos dados médicos sem ter que fazer um acompanhamento próximo. Ou seja, não houve qualquer tipo de contato entre os autores do estudo e os grupos estudados. As mulheres não foram voluntárias e, muito importante, não se usaram critérios tradicionalmente empregados nos trabalhos clínicos, como a divisão aleatória dos participantes em grupos, o não conhecimento dos envolvidos (incluindo os cientistas) a respeito do grupo em que caíram e a comparação entre a intervenção de verdade e uma falsa, o placebo.

O trabalho dinamarquês foi somente um levantamento de dados com uma análise estatística. As mulheres foram divididas entre aquelas que usavam qualquer tipo de anticoncepcional hormonal (pílula combinada, mini-pílula, adesivos, implantes e DIU hormonal) e outras que não usavam nada, o grupo controle. Só que a escolha desse grupo controle foi equivocada.

Teria sido mais acertado comparar o grupo que usava controle hormonal com um grupo que fazia um controle não hormonal, como o DIU de cobre. Dessa maneira, ao menos estaríamos comparando dois grupos sexualmente ativos, com acesso regular ao médico.

Por que isso faz diferença? Principalmente porque a incidência de depressão foi medida de acordo com o número de prescrições de antidepressivos e internações em clínicas psiquiátricas. Ou seja, os autores simplesmente tinham acesso ao “CPF” do grupo de mulheres escolhido, e sabiam se elas receberam prescrições de anticoncepcionais e antidepressivos.

Mas, quando você tem um grupo de mulheres que vai regularmente ao médico, comparado com outro grupo que não vai, não há como eliminar o viés de que as moças que vão ao médico encaram uma probabilidade muito maior de obter uma prescrição de outro remédio. Imagine que você (ou sua parceira) toma pílula e, portanto, faz acompanhamento com o ginecologista. Você começa a sentir sintomas de tristeza constante e apatia e comenta com ele. O profissional chega à conclusão que pode ser depressão e receita um medicamento.

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Será que a situação seria a mesma para uma mulher que não frequenta o médico regularmente? Será que, mesmo com sintomas, não ia demorar mais para que ela pedisse uma prescrição? Será que uma mulher  acostumada a tomar um medicamento diário como a pílula também não estaria mais propensa a aceitar um antidepressivo? Será que, por outro lado, uma mulher que optou por não utilizar nenhum método anticoncepcional por ser adepta de um modo de vida mais natural e sem intervenções médicas também não estaria menos inclinada a buscar fármacos para qualquer outra condição? Será que algum desses grupos faz mais exercício físico por ser mais ou menos preocupado com saúde em geral?

O viés está justamente nesses “será que”! Quando temos muitas maneiras de fazer essas perguntas, isso significa que existem inúmeras variáveis que não foram levadas em conta e podem comprometer o resultado da pesquisa.

Outro ponto importante é que antidepressivos e pílulas podem ser prescritos para diversas condições além daquelas para as quais foram inicialmente desenvolvidos. Há mulheres que tomam pílulas porque sofrem de TPM, endometriose, acne, enxaqueca, ciclos irregulares e ovários policísticos. E antidepressivos são receitados também para distúrbios de sono, ansiedade, enxaquecas e até para emagrecer.

Nenhuma dessas variáveis poderia ser contemplada com a metodologia utilizada no estudo, justamente porque nenhuma mulher foi entrevistada ou acompanhada. Sabemos muito pouco sobre a vida delas.

A imprensa também tem sua parcela de culpa

Os números também foram mal interpretados pela mídia, e os resultados acabaram ficando distorcidos e pouco informativos. Fez-se muito alarde, por exemplo, com um suposto aumento de 80% na probabilidade de usar antidepressivos entre as jovens de 15 a 19 anos que usavam pílulas combinadas de estrogênio e progesterona. Muitas reportagens mostraram esse número.

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Mas a realidade é que esse percentual é um aumento relativo, e os números absolutos são bem baixos. O número de prescrições para adolescentes que não faziam uso de pílulas combinadas foi de 1,7%, e aumentou para 2,2% entre as jovens que usavam pílulas combinadas. A diferença no número de internações foi ainda menor, passando de 0,28% para 0,30%.

Ou seja, podemos ter um aumento relativo de 100% de um valor absoluto para outro e ainda estarmos falando de valores bem baixos. Para efeito de comparação, saiba que o risco absoluto de qualquer mulher desenvolver depressão pós-parto é de 15% (este, sim, um valor realmente alto).

Quando uma reportagem mostra um risco relativo de 80%, isso pode levar muitas mulheres a interpretar que de 100 moças que tomam pílula, 80 correm o risco de desenvolver depressão! E essa interpretação pode levar mães conscienciosas a rever a decisão de aprovar o uso da pílula para sua filha adolescente que está iniciando a vida sexual, ou que precisa da pílula para controlar outros efeitos indesejáveis da puberdade, como cólicas, ciclos irregulares e intensos…

Mas, se essa mãe é corretamente informada de que a probabilidade de a filha ter depressão passa de 1,7% para 2,2%, a decisão tende a ser bem diferente. As mulheres têm direito a obter a informação real e correta sobre o custo-benefício de um medicamento. É isso que deve impactar suas escolhas – não informações distorcidas.

Outra questão que precisa ser levada em consideração é que a adolescência é um momento conturbado, especialmente para jovens iniciando a vida sexual. Isso costuma ser um fator de confusão e angústia, que, por sua vez, pode ser confundido com depressão. Esse equívoco, vale dizer, pede atenção a despeito da idade. Na pesquisa, não se sabia se as mulheres que usaram antidepressivos tinham realmente o diagnóstico de depressão.

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Ainda em relação às adolescentes, pode-se argumentar que essa fase já suscita maior sensibilidade às mudanças hormonais naturais e, portanto, as jovens podem ser mais sensíveis a métodos hormonais. O mesmo estudo aponta que, após seis meses de uso, a diferença desaparece, e outros trabalhos já reportaram que a utilização de anticoncepcionais hormonais está inversamente relacionada à depressão. Ou seja, mulheres que usam métodos hormonais sofrem menos de depressão!

A única conclusão que se pode tirar do estudo do JAMA é que hormônios podem interferir no humor, e mulheres respondem de forma diferente a esses hormônios. E isso não é exatamente uma novidade ou um fato histórico.

Já sabemos há tempos que algumas mulheres são mais sensíveis a mudanças hormonais, induzidas pelo próprio organismo ou por medicações. Basta observar que nem todas as mulheres são acometidas por variações de humor durante o ciclo ou no pós-parto. E isso não quer dizer que aquelas que sofrem com isso não mereçam a devida atenção médica. Mas, definitivamente, não há motivo para tanto alarde por causa de um único estudo que estabelece uma possível correlação.

Falamos de um trabalho interessante mais pelo fato de chamar atenção de médicos e pacientes para eventuais sintomas associados ao uso da pílula. Mas não dá para recriminar ou demonizar métodos anticoncepcionais hormonais com base nele. Devemos lembrar (sempre) que nenhum medicamento é livre de efeitos colaterais. Daí porque se requer indicação e acompanhamento médico.

Se o método contraceptivo que você escolheu causa algum desconforto, converse com seu ginecologista. Há diversas opções no mercado. E se você está entre esse pequeno percentual de mulheres que não se adaptam de jeito nenhum aos métodos hormonais, saiba que existem alternativas não hormonais que o médico poderá indicar. E sempre há o bom e velho preservativo.

Aqui abordamos um caso clássico de muita conclusão para pouco estudo. E conclusões assim, quando veiculadas com tamanha paixão e pouca ciência, podem levar as pessoas a fazer escolhas erradas.

* Dra. Natalia Pasternak Taschner é bióloga, pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, coordenadora dos projetos Cientistas Explicam e Pint of Science no Brasil e uma das idealizadoras e colaboradoras do blog Café na Bancada

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