Afinal, o que é a cura do câncer?
Muito se fala sobre a vitória contra a doença. Mas no que isso consiste de fato? Uma reflexão sobre o que é ser bem-sucedido no tratamento
“Cura” é a palavra mais sonhada e buscada por qualquer pessoa que passa a conviver com o câncer. Então quero aproveitar nosso espaço hoje para publicar o texto do meu colega oncologista Helano Freitas, que trabalha comigo no A.C. Camargo Cancer Center. Uma reflexão sensível e necessária:
Nas mídias sociais, personalidades públicas que compartilham suas lutas contra o câncer às vezes anunciam a “cura” no dia do término do tratamento ou quando os exames mostram a doença em remissão.
Sentir-se curado é uma forma de afirmação positiva importante e ajuda a dar força física e mental no longo prazo. Não há nada de errado com isso. Mas a mensagem passada por um emissor impacta um receptor na outra ponta.
Os seguidores que acompanham essas jornadas e torcem pelo desfecho positivo, incluindo outros pacientes que enfrentam o câncer, podem ter uma percepção errada sobre as dificuldades do tratamento no dia a dia e a real perspectiva de cura no longo prazo.
A cura é o fim desejado, mas há um longo caminho até lá. Trago aqui as histórias de Maria e André* para uma reflexão sobre cura e luta pela vida contra o câncer.
Era dezembro de 2015. Uma revolução no tratamento da doença estava em pleno curso: novos medicamentos imunoterápicos vinham apresentando resultados promissores contra melanoma, câncer de rim e câncer de pulmão.
Um programa de acesso a uma nova imunoterapia para pacientes com câncer de pulmão em estágio avançado estava sendo iniciado no A.C. Camargo. Dentro desse tipo de programa, regulado e supervisionado pela Anvisa, uma nova medicação ainda não aprovada para uso pode ser utilizada em caráter experimental em alguns pacientes.
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Maria e André estavam entre os elegíveis para participar da iniciativa. Ambos tinham câncer de pulmão avançado, com metástase (quando a doença se espalha para outros órgãos e tecidos) e já haviam recebido quimioterapia anteriormente.
Eles estavam prestes a entrar em cuidados paliativos exclusivos porque não queriam receber mais uma quimioterapia com baixa probabilidade de benefício. André aceitou participar imediatamente. Maria hesitou, recusou e retornou após duas semanas decidida a tentar.
Ambos receberam imunoterapia por dois anos e não apresentaram efeitos colaterais muito incômodos. Ela teve coceira no corpo, às vezes intensa, mas que melhorava com antialérgicos e corticoide. Ele não teve reações adversas relevantes. Os dois apresentaram excelente resposta, com redução do tumor superior a 90% e, melhor ainda, manutenção dessa resposta no longo prazo.
O tratamento deles foi concluído em janeiro de 2018. André continua sem sinais de retorno da doença até hoje, mesmo estando sem qualquer tratamento oncológico há mais de quatro anos.
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Maria teve uma recidiva em 2019, um ano após o término da imunoterapia. Recebeu radioterapia e ficou mais dois anos em remissão. Em 2021, a doença voltou e reiniciamos a imunoterapia. Mas, dessa vez, o tumor não respondeu ao tratamento e atualmente ela está em cuidados paliativos.
Nossa paciente foi submetida, no início deste ano, a sessões de radioterapia para estancar um sangramento. A sua tomografia mais recente mostra a doença estabilizada. Ela tem mais de 80 anos, está na luta contra o câncer de pulmão metastático há mais de sete e segue firme.
Mora no interior de São Paulo e, quando vem ao hospital para se consultar, não perde a oportunidade de dar uma volta no shopping de Higienópolis, seu passeio preferido.
Você pode estar pensando que a história do André teve sucesso, mas não a da Maria. Afinal, ele estaria “curado” e ela continua “lutando”.
Acontece que a cura do câncer depende de inúmeros fatores: o tipo de tumor, o estágio da doença no momento do diagnóstico, o acesso aos melhores tratamentos, a tolerância e a resposta de cada indivíduo aos medicamentos etc.
Ainda é cedo para afirmarmos que a imunoterapia é capaz de curar os pacientes com câncer de pulmão avançado, mas casos como o do André e da Maria nos mostram que agora é possível ter boas perspectivas de longo prazo.
Para alguns, como o André, isso significa remissão prolongada ou talvez até cura. Mas a maioria dos pacientes enfrenta batalhas mais frequentes, como no caso da Maria.
E, para quem é tratado no SUS, com suas restrições de acesso à maioria das novas terapias-alvo e imunoterapias, as batalhas são ainda mais duras.
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Maria e André são exemplos de jornadas bem-sucedidas. São, ao mesmo tempo, um reflexo dos avanços recentes e uma lembrança de que ainda temos muito a aprimorar, até que sejamos capazes de curar todos os pacientes com câncer.
Seis em cada dez indivíduos com câncer de pulmão são diagnosticados já com metástase e, há alguns anos, isso significava uma sentença de morte em poucos meses. Na última década, surgiram inúmeras opções de tratamento específicas para cada um dos novos subtipos da doença identificados.
O resultado é que agora é possível ter expectativa de longo prazo e continuar fazendo planos para o futuro, mas a cura definitiva ainda é um sonho distante para a maioria dos pacientes.
Antes, era comum morrer de câncer. Hoje está ficando mais comum viver com câncer e apesar do câncer. E, para avançarmos ainda mais, precisamos de tratamentos cada vez melhores e acessíveis a todos os pacientes. Precisamos valorizar a vida, com qualidade, todo dia.
Todos nós, cuidadores e pacientes, estamos do mesmo lado nessa luta.
* Os nomes dos pacientes citados foram alterados para preservar sua identidade
Helano Freitas é vice-líder do Centro de Referência de Tumores de Pulmão e Tórax do A.C. Camargo Cancer Center