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Lançamentos ajudam a ler e entender tempos de pandemia

Livros recém-publicados explicam como surge uma crise como a do coronavírus e o que pode ser feito para minimizar seus reflexos e prevenir outras epidemias

Por Diogo Sponchiato
Atualizado em 30 jun 2020, 15h08 - Publicado em 30 jun 2020, 10h06

Não era para ser uma surpresa. Mas foi. Em um efeito dominó extremamente rápido, o mundo foi surpreendido pelo coronavírus. E, em três meses, nasceu uma pandemia. No entanto, se você mergulhar nas páginas de pelo menos três livros recém-publicados no Brasil e protagonizados por infecções e epidemias, vai perceber que a Covid-19 não pode ser classificada como algo inesperado.

Avisos do que estava por vir já estavam contemplados em obras como A Grande Gripe, do historiador John M. Barry (lançada lá fora originalmente em 2004) e Inimigo Mortal, do epidemiologista Michael Osterholm e do escritor Mark Olshaker (2017), que chegam ao país pela Editora Intrínseca, além de Contágio, do autor expert em ciência e natureza David Quammen (2012), que desembarca nas livrarias e lojas online pelas mãos da Companhia das Letras.

Em comum, essas publicações provam que os aprendizados do passado são uma lanterna preciosa para não comermos bola no presente e tropeçarmos lá adiante. Porque, se há alguém que vibra e se dá bem quando as lições da história e da biologia não são incorporadas pela humanidade, são eles, os vírus.

A mãe das pandemias

A gripe e a Covid têm muitas semelhanças: são doenças causadas por vírus, transmitidas por gotículas que voam pelos ares, potencialmente letais… E que, a partir de 2020, têm em seu currículo a responsabilidade pelas duas maiores pandemias da história recente. Embora quase cem anos separem uma da outra, é incrível ver os pontos que unem seus efeitos sanitários, sociais e econômicos.

É isso que se pesca lendo as 600 páginas de A Grande Gripe (clique para comprar), do americano John M. Barry. No catatau, o historiador nos conduz às prováveis origens da gripe espanhola, que na verdade brotou em solo americano — não custa lembrar que o apelido veio à tona porque a Espanha, neutra na Primeira Guerra Mundial e sem censura, noticiou os casos primeiro —, mapeia seu rastro de horror e, projetando-se pelo século 20, ainda passa por outras epidemias de influenza da pesada, a última delas a gripe suína de 2009.

Mas nenhuma pandemia de que se tem notícia (e esperamos que o marco persista) foi tão avassaladora quanto a gripe espanhola de 1917-18. São entre 50 e 100 milhões de vítimas fatais e um legado de sofrimento e colapso econômico que não poupou nenhum continente. Barry se concentra muito no desenrolar da doença nos Estados Unidos e seus reflexos na guerra travada na Europa e não se furta a descrever como penavam e morriam os alvos daquele influenza H1N1. Isso numa época em que não se sabia que um vírus estava por trás da moléstia.

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Uma peculiaridade dessa gripe foi sua capacidade de provocar quadros mais graves em adultos jovens — uma diferença nítida para a Covid-19, que tende a ser mais severa em idosos. Assim, foi de perder a conta o número de óbitos em quartéis americanos, por exemplo. Eram mortes rápidas (algumas em horas!) e causadas diretamente por uma pneumonia viral seguida de hemorragias ou detonadas pelas infecções bacterianas que se aproveitavam da fragilidade do organismo para avançar pelos pulmões.

Barry também nos mostra quanto a ciência evoluiu em busca de respostas e soluções para aquele desafio, ao mesmo tempo que autoridades sambavam para aceitar a realidade e tomar medidas eficientes — tudo mais delicado à época porque o mundo estava em guerra. E é aí que visualizamos algumas lições que nos remetem à pandemia do coronavírus. Para começo de conversa, a censura aos jornais e a hesitação dos governantes atrasaram os esforços de contenção da gripe, que se alastrou em terra americana e, de navio, desembarcou nas trincheiras europeias e em outros portos do planeta, caso do Rio de Janeiro.

Ainda que a pandemia tenha despertado a necessidade de se criar um sistema de vigilância contra doenças contagiosas, algo que só foi erigido a contento décadas depois, é angustiante como, no século 21, ainda vemos políticos negando a ciência e a realidade e permitindo, desta vez, que o coronavírus ainda tenha espaço para avançar. Naqueles tempos, como nos de hoje, também pululavam (lá nos jornais, aqui nas redes sociais) soluções milagrosas e infundadas contra as infecções.

Tem mais semelhança: é em períodos assim que valorizamos o papel heroico dos profissionais de saúde, muitos mortos pela gripe espanhola e pela Covid-19. E soa curioso que, ainda que desfrutemos hoje de antibióticos, vacinas e respiradores em UTIs, algumas das estratégias de prevenção de ambas as enfermidades sigam as mesmas. Na gripe espanhola, as pessoas (re)aprenderam a importância do isolamento social e passaram a usar máscaras, hábito que só foi recomendado oficialmente em muitas nações com a Covid-19 já em curso.

O autor do livro nos adverte para uma nova pandemia por um vírus respiratório, como outra variação mutante do patógeno da gripe. Falamos de um agente infeccioso que, circulando entre o mundo dos animais domésticos, selvagens e humanos, pode ganhar na loteria genética e aparecer com uma nova roupagem catastrófica para nossa espécie. É o que se teme, por exemplo, com a gripe aviária, por ora restrita e não transmissível pra valer entre pessoas. Mas tudo pode mudar. Se a gripe espanhola e outros episódios com o influenza nos séculos 20 e 21 não nos ensinaram a tempo, que a Covid-19 abra bem nossos olhos. Até porque uma gripe dessas pode ser algo ainda pior.

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a grande gripe
A Grande Gripe, do historiador John M. Barry. (Divulgação: Intrínseca/SAÚDE é Vital)

O que estava e ainda está no radar

Uma rede de vigilância para prever e contra-atacar surtos locais ou epidemias é algo que está no escopo da Organização Mundial da Saúde (OMS) e faz parte do cotidiano de uma legião de epidemiologistas e especialistas em doenças infecciosas. Um desses caras é o americano Michael Osterholm, da Universidade de Minnesota. Ele tem experiência com vírus respiratórios, outros disseminados por mosquitos e ataques misteriosos de bactérias (não são só os vírus que causam com a gente).

Em Inimigo Mortal, ao lado do escritor Mark Olshaker, o médico relata episódios com os quais lidou pessoalmente e outras crises globais. Ele compara o papel do epidemiologista ao de um detetive, que caça pistas, faz entrevistas, relaciona pontos aparentemente desconexos. Foi assim que Osterholm decifrou um surto de uma doença estranha, com alguns casos fatais, em garotas adolescentes no início dos anos 1980 nos EUA. Juntando peças como o elo entre o início dos sintomas e o período menstrual das meninas, ele matou a charada da síndrome do choque tóxico e permitiu que se fizesse uma mudança no mercado para prevenir novos casos (não quero dar spoiler!).

Mas a obra salta países e vasculha epidemias como o ebola na África, a dengue e o zika nas Américas, a gripe (sempre candidata a reemergir com tudo) e os coronavírus responsáveis pela Sars (síndrome aguda respiratória grave) e a Mers (síndrome respiratória do Oriente Médio), que assustaram sobretudo a Ásia nas últimas duas décadas. A edição brasileira traz um prefácio que trata en passant da Covid-19, porém, a versão original já previa o risco de um coronavírus nos assombrar — o capítulo sobre Sars e Mers fala em “arautos do que está por vir”.

O epidemiologista não se esquece das bactérias resistentes e pontua a necessidade de os Estados Unidos como líder global (e o mundo todo, se possível) empreender um projeto único e massivo para não só conter os supergermes — algo que envolve tratar a saúde humana e a animal como uma coisa só —, mas também desenvolver uma vacina universal contra a gripe e outras armas para nos defender dos vírus que pegam carona em gotículas de espirro e picadas de mosquitos. É uma tarefa que exige tecnologia, ciência, educação, muito dinheiro e vontade política. E que a Covid-19 só veio confirmar como urgente.

inimigo mortal
Inimigo Mortal, dos americanos Michael Osterholm e Mark Olshaker (Divulgação: Intrínseca/SAÚDE é Vital)

Entre bichos e homens

A previsão de uma nova pandemia também está inscrita nos alertas de Contágio. O título original, Spillover, se refere a um termo usado na ecologia para descrever quando uma doença infecciosa passa de uma espécie animal para outra. Na edição que chega ao Brasil, a obra ganha um capítulo extra em que David Quammen versa sobre o coronavírus. Mas as predições já estavam lá no livro de 2012.

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Quammen andou pelo mundo e conversou com um monte de cientistas, médicos e veterinários a fim de desenhar um panorama sobre como zoonoses, males causados por vírus, bactérias e outros parasitas, migram para o ser humano e causam doenças. Umas mais bem-sucedidas, outras nem tanto. A Covid-19 é uma delas.

Tanto animais selvagens como domésticos podem abrigar os germes capazes de virar uma epidemia. Sarampo, gripe, ebola… Tudo isso foi uma zoonose um dia. O coronavírus atual parece ter vindo de morcegos e se especula que uma espécie chamada pangolim tenha sido o hospedeiro intermediário. O ponto é que o homem avança cada vez mais pelo território de outros animais, trava contato com eles (às vezes os transforma em mercadoria ou refeição) e uma hora o bicho pega. Ou melhor, o vírus pega.

O escritor americano também temia a emergência de um vírus de transmissão respiratória que, beneficiado pelo fluxo abundante de pessoas e bens pelo planeta, desatasse uma pandemia. O influenza sempre esteve no horizonte dos especialistas. E de repente deparamos com o novo coronavírus, o que não significa que, vencida essa batalha, outras guerras não virão.

O livro Contágio, de David Quammen, sai pela Companhia das Letras primeiro em alguns e-books avulsos e depois na versão integral. (Foto: Divulgação/SAÚDE é Vital)

Coronavírus previsto?

Um livro de suspense e doses de ficção científica publicado em 1981 ganhou holofote com a Covid-19. Falamos de Os Olhos da Escuridão, de Dean Koontz, que a Editora Citadel acaba de traduzir e publicar no Brasil. A fama se deve ao fato de o autor ter colocado como pano de fundo do romance, num cenário pós-Guerra Fria em que a China é a arquirrival dos Estados Unidos, a criação de uma arma biológica chinesa, o vírus Wuhan-400. Sim, Wuhan é a cidade onde foi identificado pela primeira vez o novo coronavírus.

Mas a obra de Koontz tem como tema central a busca de uma mãe por um filho desaparecido — é daquelas ficções que se devoram numa sentada. Só não pode ser usada por teóricos da conspiração como evidência de que o vírus Sars-CoV-2 foi feito em laboratório. Essa profecia não tem nenhum amparo científico.

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(Por falar em vírus concebidos em laboratório, isso não tem nada a ver com a Covid-19, mas não é algo que se restringe à ficção científica, não. O epidemiologista Michael Osterholm trata do assunto em Inimigo Mortal num capítulo dedicado a armas biológicas e bioterrorismo. Na época da Guerra Fria, suspeita-se que um surto de gripe tenha sido causado acidentalmente quando cientistas russos manipulavam o vírus influenza em tubos de ensaio. Mais recentemente, envelopes com antraz [esporos de uma bactéria capazes de provocar quadros fatais] foram enviados a autoridades americanas no período dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. Os acordos globais de controle e restrição a armas biológicas reduziram experiências e ideias malucas nesse sentido. Por outro lado, como sinaliza Osterholm, o acesso mais fácil a novas tecnologias, inclusive em laboratórios amadores, pode abrir caminho a vírus e micróbios criados ou modificados para fins terroristas).

olhos da escuridão
Os Olhos da Escuridão, do escritor americano Dean Koontz. (Divulgação: Citadel/SAÚDE é Vital)

E a economia com isso tudo?

Por mais que se negue, um dos debates mais travados nas entrelinhas da luta contra o coronavírus foi o que os governos priorizariam: a saúde pública ou a economia. Na esteira de medidas nem sempre baseadas em ciência adotadas por cidades e nações, ficou claro para a humanidade que, além de fazer o possível para salvar vidas, é preciso se preparar para outro terrível efeito colateral da pandemia, o avanço da desigualdade social.

Como podemos minimizar o problema e suas consequências? Uma leitura essencial para compreender onde estamos e para onde vamos do ponto de vista político-econômico é Capitalismo Sem Rivais, do economista sérvio radicado nos EUA Branko Milanovic. A obra, publicada pela Todavia e elaborada antes da Covid-19, dá uma aula sobre os dois sistemas capitalistas que regem o mundo — o americano (liberal) e o chinês (político) —, como eles se comportam em relação ao crescimento dos países, à geração de riqueza e à desigualdade e o que podemos esperar de seus corolários.

Milanovic ainda propõe reflexões e receitas realistas para pavimentarmos um sistema capitalista mais sensível aos desafios sociais de um mundo hiperglobalizado e ainda governado por (e para) elites. Na era pós-Covid, essa discussão se torna ainda mais indispensável.

capitalismo sem rivais
Capitalismo Sem Rivais, do economista Branko Milanovic (Divulgação: Todavia/SAÚDE é Vital)
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