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Gripe espanhola: 100 anos da mãe das pandemias

O vírus influenza causou a epidemia mais mortal da história — foram mais de 50 milhões de vítimas. Será que algo parecido pode se repetir?

Por Dra. Natalia Pasternak Taschner*
Atualizado em 11 mar 2020, 15h44 - Publicado em 24 abr 2018, 18h51

No dia 4 de março de 1918, um soldado da base militar de Fort Riley, nos Estados Unidos, ficou de cama, com sintomas de uma forte gripe. Esse acampamento no Kansas treinava cidadãos americanos para a Primeira Guerra Mundial. Naquela semana de março, mais de 200 soldados adoeceram também. Em apenas 14 dias, mais de mil militares foram parar em hospitais — e o mal se alastrou por outros acampamentos. No pico da epidemia, mais de 1 500 militares reportaram a enfermidade em um único dia. A doença se espalhou rapidamente pelos EUA e pegou carona com os soldados americanos que embarcaram para a Europa. E de lá ganhou o mundo.  

A chamada gripe espanhola — que nada tem de espanhola — matou de 50 a 100 milhões de pessoas em 1918 e 1919. Esse número representa mais mortes do que o montante provocado pelas duas grandes guerras juntas. Mais do que a aids causou em 40 anos. Foi e ainda é a maior pandemia de que se tem notícia. E o Brasil não passou ileso por ela. Por aqui foram cerca de 35 mil óbitos, entre eles o do presidente da época, Rodrigues Alves (1848-1919).

E de onde veio o “espanhola” se a tal gripe provavelmente se originou em solo americano? A Espanha era um dos poucos países neutros durante a Primeira Guerra — um dos poucos a ter imprensa livre para noticiar a praga. Nos próprios EUA, o então presidente Woodrow Wilson (1856-1924) emitiu ordens para censurar qualquer notícia que pudesse abalar a população e os soldados. A situação foi a mesma em outras nações em guerra. Ocorre que o esforço para manter a epidemia em segredo contribuiu para sua rápida disseminação. Ora, como propagar e tomar medidas preventivas se ninguém sabe o que está acontecendo?

O vírus por trás da pandemia é um velho conhecido nosso: o influenza H1N1. Antes de você me questionar se ele aprontou de novo ou vai voltar a aprontar, permita-me descrever um pouquinho o vírus e essa sigla embutida no nome dele. As letras e os números do H1N1 se referem a proteínas na superfície viral, as hemaglutininas e as neuroaminidases.

Ao mesmo tempo que permitem ao vírus se conectar às células humanas, elas são reconhecidas pelo nosso sistema imune. Mas o influenza tem uma característica única em recombinar essas proteínas com as dos colegas virais. Assim, se dois vírus da gripe diferentes infectam a mesma célula, lá dentro eles podem dar origem a um vírus novo. Da mistura de um H5N1 com um H3N2, por exemplo, pode nascer um H5N2. Essa peculiaridade, aliada às mutações regulares que um vírus sofre, explica por que nossas defesas enfrentam dificuldade para reconhecer um agente infeccioso novo.

Mas a história não se restringe a vírus e seres humanos. Hoje se sabe que as linhagens mais virulentas da gripe vieram das aves. Normalmente, esses vírus que têm aves como reservatórios não infectam o homem. Só que eles infectam porcos. E o vírus da gripe humana também.

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Isso significa que vírus de aves e de humanos podem se encontrar e recombinar nas células do porco, gerando uma prole viral capaz de ser transmitida para (e entre) os homens. Também pode acontecer o seguinte: um vírus típico de ave consegue infectar diretamente um humano e, uma vez dentro dele, sofre mutações e recombinações que o tornam contagioso e agressivo para nossa espécie. Deu para entender agora por que falamos em gripe suína e aviária?

Na gripe espanhola, há indícios de que o vírus, cujo reservatório eram aves migratórias, teria infectado uma criação de porcos no Kansas — de onde foi parar no soldado de Fort Riley. Mas o H1N1 de 1918 era muito peculiar. Não causava os sintomas de uma gripe comum. As pessoas sangravam pelo nariz, pelos ouvidos, pelos olhos…  Ficavam azuis com a falta de oxigênio, segundo relatos da época. Caíam de cama pela manhã e à tarde estavam mortas. Geralmente, os vírus da gripe se apoderam das células do nariz e da garganta. O H1N1 do início do século 20 mantinha esse traço, mas parecia infectar expressivamente as células dos pulmões. 

Outra característica intrigante até hoje: o ataque do influenza costuma ser mais forte em crianças e idosos, que possuem sistema imune mais frágil. Em 1918, porém, as principais vítimas foram os adultos jovens — tanto civis quanto soldados no front. Uma hipótese é que, justamente por ter uma imunidade mais proativa, a resposta do organismo jovem era vigorosa demais. Resultado: uma tempestade inflamatória que agredia os pulmões e encurtava a vida. 

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A história vai se repetir?

Um episódio tão assustador nos faz pensar na possibilidade de uma nova pandemia dessa dimensão. Antes de qualquer conjectura, convém botar as coisas no contexto. Em 1918 não havia antibióticos para tratar as infecções secundárias à gripe (como pneumonias), o que elevou a escala da letalidade.

O mundo estava em guerra. E guerra de trincheiras, onde soldados doentes se aglomeravam em locais inóspitos — ambiente mais que propício ao contágio. Além disso, os recrutas que escapavam das balas carregavam o vírus pelos campos de batalha e aos seus países de origem. Os hospitais de campanha, por sua vez, alojavam uma multidão de infectados, que disseminavam a doença. Por fim, nações devastadas pelos conflitos sofriam com a escassez de suprimentos, deixando a população debilitada. Tudo estava a favor do H1N1. 

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E, de repente, em 1919, da mesma maneira abrupta com que o vírus chegou, ele sumiu… Provavelmente porque grande parte das pessoas que sobreviveram já havia criado anticorpos. Especula-se também que uma nova mutação tenha tornado o agente infeccioso mais ameno e incapaz de semear a discórdia nos pulmões. Não há um veredicto preciso. 

Cem anos depois, temos muito mais condições de localizar, diagnosticar e conter uma epidemia. Contamos com antibióticos para barrar as bactérias que se aproveitam da gripe para bombardear o sistema respiratório. Dispomos de uma rede de vigilância mundial que rastreia vírus e emite alertas para prevenir surtos. Fazemos campanhas para conscientizar a população. E, muito importante, podemos tomar vacinas, renovadas anualmente, para nos defender das novas cepas de influenza que emergem e se espalham por aí.

Por outro lado, vivemos em um mundo bem mais globalizado e conectado. Sabemos que o vírus, capaz de pular de uma espécie para outra, se origina em aves e pode passar por um estágio nos porcos — e ainda existem criações de animais em confinamento e situação precária, o que facilita a recombinação viral e o contágio.

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Sem contar que há países que ainda sofrem com a falta de acesso a vacinas e remédios. Estamos protegidos de uma nova pandemia? Creio que dificilmente vamos encarar uma gripe tão agressiva e mortal como a de 1918. Mas o influenza não pode ser subestimado. Nós, humanos, temos uma tendência a esquecer os percalços da história. Que o centenário da gripe espanhola refresque nossa memória. 

* Dra. Natalia Pasternak Taschner é bióloga, pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, coordenadora científica do Planetário de São Paulo, responsável pelos projetos Cientistas Explicam e Pint of Science no Brasil e uma das idealizadoras e colaboradoras do blog Café na Bancada

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