Leite: condenado pela internet, celebrado pela ciência
A fama do leite vem piorando nos últimos tempos. Mas os resultados de estudos mostram que não há porque temê-lo
Essa matéria faz parte do dossiê Tribunal da Comida, publicado na edição de outubro (508). Clique aqui para ler os outros conteúdos.
Com certeza você já ouviu esta frase por aí: “O ser humano é o único mamífero que consome leite depois de adulto, isso não é natural”. E ainda há quem insista: “Não faz sentido ingerir a secreção mamária de outro bicho”.
São afirmações que podem causar impacto, ainda mais se pensarmos que, na natureza, somos mesmo a única espécie a consumir, com assiduidade, o alimento ao longo da vida.
Mas esse hábito milenar é prejudicial à saúde? Segundo um monte de personalidades da internet, sim. Segundo os estudiosos, não. Pelo contrário.
Vejamos os argumentos. Há profissionais e influenciadores que acusam o leite de vaca e seus derivados de uma porção de males: eles inflamam, engordam, são indigestos, provocam distensão, inchaço e gases, aumentam a concentração de muco, causam acne…
A última denúncia é espantosa: uma de suas proteínas estaria ligada à piora do autismo.
A campanha contra o leite fez com que produtos ultraprocessados nem tão balanceados ganhassem passe livre no carrinho de mercado ao apenas colocar no rótulo a tarja “sem lactose”.
Se você desconfiou de tanta condenação, saiba que está no caminho certo. Praticamente nenhuma dessas alegações tem respaldo científico.
“Ganhou força uma linha na nutrição que tenta separar alimentos em bons e ruins, o que te salva e o que te mata. E o leite é um alvo fácil porque há pessoas com alergia e intolerância a componentes dele que realmente se sentem mal ao ingeri-los”, avalia a nutricionista Giliane Belarmino, pós-doutora pela USP e diretora científica do Ganep Nutrição Humana, que realizou um simpósio dedicado ao tema.
“Mas essas reações negativas são restritas a um grupo de pessoas, não devem ser extrapoladas para a população em geral”, completa.
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No processo contra o leite, uma das maiores premissas da promotoria reside na crítica à lactose.
Para começo de conversa, ela é tão e simplesmente o açúcar do leite. E, como qualquer substância dessa classe, precisa ser processada pelo organismo para retirarmos energia dela.
Só que o corpo dispõe de uma única enzima para fazer o serviço, a lactase. Ela é abundante em bebês — claro, eles passam meses só à base de amamentação — e, esperadamente, cai em produção à medida que envelhecemos.
“A maior parte das pessoas, principalmente asiáticos, latinos e africanos, tem um decréscimo no suprimento de lactase na vida adulta. Mas isso não é algo ruim ou significa que a pessoa é intolerante e vai ter sintomas, até porque os adultos consomem um volume menor de leite que as crianças”, expõe a gastroenterologista pediátrica Mariana Deboni, do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Ou seja, ainda que em menor quantidade, teremos um estoque para metabolizar o açúcar do leite.
A coisa muda de figura em quem realmente possui intolerância — nesse caso, falta enzima para dar conta do recado e a barriga sofre.
Mas o quadro carece de exames e consultas para ser confirmado. E, aí, sim, convém privilegiar os “zero lactose” ou recorrer a sachês da enzima vendidos em farmácia antes de mandar goela abaixo um laticínio.
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Vencida essa discussão, os advogados de defesa têm outros pontos a favor do leite. É um alimento altamente nutritivo — não por menos é o que os mamíferos tomam ao nascer —, dotado de proteína, carboidrato, gordura, vitaminas e minerais.
Trata-se de uma das melhores fontes de cálcio, um composto não apenas útil à manutenção dos ossos, mas a uma série de reações químicas no corpo. Até é possível obtê-lo de fontes vegetais, mas ainda se debate quanto a versão de origem animal não seria mais biodisponível — é necessário devorar meio quilo de brócolis para chegar à cota oferecida por um copo de leite.
Tudo bem, mas eu não me sinto legal quando bebo leite ou como queijo. Significa que estou sendo inflamado pelo alimento? Não. Quem fica estufado, inchado ou com dor e diarreia precisa investigar a presença de intolerância à lactose ou alergia à proteína do leite. Só nesses casos aparecem as contraindicações.
Parar de tomar leite só porque algumas pessoas têm reações adversas a ele é o mesmo que não comer camarão porque um contingente de pessoas passa mal se experimentá-lo. Isso não faz do camarão um alimento inflamatório. Tampouco o leite.
A inflamação é, para deixar às claras, uma resposta do organismo diante de algo que ele julga agredi-lo. “Se você levar ao pé da letra, tudo é inflamatório. Ao respirar oxigênio, automaticamente o corpo já produz radicais livres que levam à inflamação. Então, pode ter certeza, só o fato de a gente estar viva já inflama mais que o leite”, brinca Mariana.
Nesse contexto, existem até indícios de que, no sentido oposto, o leite teria propriedades anti-inflamatórias.
Uma revisão em cima de 16 pesquisas envolvendo pessoas saudáveis, com diabetes ou síndrome metabólica descobriu que o consumo não apresentou efeitos nocivos em nenhuma delas.
“A história de que o leite inflama não tem base científica nenhuma. Aliás, sabemos que o alimento e derivados, principalmente os fermentados, melhoram a microbiota intestinal e reduzem a inflamação”, reforça Giliane.
E acne, pigarro e autismo? Bem, o que reproduzem por aí não passa de fake news.
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